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Viagem dos sonhos à Floresta Amazônica e uma missão nobre

Empreendedor brasileiro está empoderando as comunidades indígenas da Amazônia e levando viajantes para dentro da selva na luta pela preservação.

Por Tom Downey The wall street Journal
Publicado em
10 min
traduzido do inglês por investnews

Publicado originalmente em 15 de fevereiro de 2024.

A versão fantasiosa da Amazônia que muitas vezes seduz viajantes — a selva intocada e impenetravelmente vasta povoada por onças, bichos-preguiça e tribos indígenas isoladas — não prepara ninguém para Manaus. A metrópole de mais de dois milhões de pessoas no meio da floresta tropical é a principal zona de livre comércio do Brasil e lar de empresas multinacionais como Foxconn e Samsung.

Uma boa localização para ficar vendo as pessoas é uma mesa na janela do Caxiri, restaurante com vista para o Teatro Amazonas, a casa de ópera da Belle Époque inaugurada em 1896. Naquela época, diz a lenda, Manaus tinha tanta riqueza que alguns barões da borracha enviavam suas roupas para serem lavadas na Europa. Hoje, a frequência do Caxiri é uma mistura dos modernos agentes de poder da bacia amazônica: executivos negociadores, funcionários do governo, líderes de ONGs, ativistas e operadores turísticos, todos tentando proteger ou explorar os recursos da área. 

O Caxiri — onde as entradas incluem piranha frita crocante, com dentes à mostra — foi ideia de Débora Shornik, de 47 anos, chef que trabalha na região há mais de uma década. “Vim para descobrir a Amazônia”, conta Shornik. “Queria aprender algo diferente. Aqui encontrei frutas, legumes e peixes como em nenhum outro lugar que estive. Também conheci mentores, principalmente cozinheiros domésticos, que me ensinaram a usar esses ingredientes, todos novos para mim.” 

Shornik veio de São Paulo atraída pelo sócio Ruy Carlos Tone, 56 anos, engenheiro civil e empresário que reformou o casarão que abriga o Caxiri. Tone percorreu pela primeira vez essa região da Amazônia como turista em 2004 e gostou tanto da viagem que convidou o capitão do barco de turismo para se juntar a ele em um empreendimento que oferece expedições para pequenos grupos. 

A multidão agitada na hora do almoço no Caxiri é, de certa forma, um microcosmo das agendas conflitantes do Brasil para o futuro da Amazônia. Alguns veem a floresta como um vasto recurso que uma nação em desenvolvimento deve explorar; outros acreditam que proteger seu ecossistema a todo custo é a última grande esperança do planeta para evitar uma catástrofe climática. Embora as tendências recentes apontem para uma redução do desmatamento no primeiro semestre de 2023, as ameaças à Amazônia são abundantes: a pecuária, a agricultura, a extração de madeira e a mineração desmataram 9% de sua cobertura florestal nas duas primeiras décadas do século 21. As mudanças climáticas trouxeram uma seca tão severa que, no ano passado, a água no Rio Negro, perto de Manaus, caiu para seu nível mais baixo em mais de um século. 

A missão de Tone é levar os visitantes aos confins da floresta tropical para que possam ver o que está em jogo e conhecer as comunidades ribeirinhas que chamam a região de lar há mais de um século. Ele vai me levar pelo Rio Negro para ver a pousada ribeirinha que construiu em 2014 e visitar o local de seu último projeto, cuja construção ainda não começou, uma propriedade nas profundezas da selva.

“Antes da pandemia, as pessoas de Manaus preferiam passar férias em Miami do que dirigir três horas até minha pousada na selva”, diz ele. “Hoje, elas estão descobrindo o que está aqui e por que precisamos proteger esse lugar.”

Na saída da cidade, passamos pelo movimentado mercado de Manaus, às margens do Rio Negro, onde o açaí fica ao lado de frutas menos conhecidas, como a amarga tucuma, e onde o pirarucu, grande espécie de peixe de rio, recém-pescado, é cortado, secado e preservado para a venda. O convés de embarcações enormes transborda de passageiros, muitos descansando em redes para a longa viagem rio acima pelas florestas em direção à Colômbia, ou rio abaixo até Belém, movimentada cidade portuária perto da costa atlântica do Brasil. 

Os pais de Tone eram brasileiro-japoneses de São Paulo (o Brasil abriga a maior comunidade japonesa fora do Japão). Quando criança, ele sonhava com aventura, mas antes que pudesse ver o mundo, seu pai morreu inesperadamente. Com quatro irmãs mais novas para sustentar, ele assumiu a pequena empresa de engenharia civil da família, e a fez crescer e dar lucro. 

Depois de mais de 12 anos, Tone decidiu cuidar de seu pendor turístico de outra maneira. Sua empresa de turismo, a Katerre, é hoje tocada de um escritório no terreno de sua pousada ribeirinha, a Mirante do Gavião, localizado no município de Novo Airão. Enquanto muitas das hospedagens da área se assemelham a acampamentos de verão ou estações de pesquisa, a arquitetura modernista do Mirante evoca as embarcações de madeira que atravessam a Amazônia. 

Tone me apresenta Paul Clark, escocês, e Bianca Bencivenni, italiana, que co-fundaram uma escola em Jauaperi, área ao longo de um afluente do Rio Negro. O casal mora na região há quase três décadas, e Tone é seu principal apoiador. Clark explica que partes da Amazônia estão há décadas sob forte pressão da pesca predatória, criação de gado, caça ilegal de animais ameaçados de extinção e outros empreendimentos extrativistas. “Quando nos mudamos para cá e minha filha nasceu, há cerca de 26 anos, havia mais de 50 tipos de peixes que pescávamos e comíamos regularmente”, conta. Quando seu filho chegou, oito anos depois, o número de espécies comestíveis havia diminuído pela metade. 

Clark ajudou a organizar um movimento local que pressionou por uma lei proibindo a pesca comercial e mais tarde conseguiu designar Jauaperi uma reserva protegida federalmente. Ele e seus vizinhos também trabalharam para restaurar uma população de tartarugas que quase desapareceu devido ao consumo ilegal. Clark dormia na praia durante a temporada de eclosão de ovos e enfrentou caçadores ilegais armados de forma não violenta, dizendo: “Será que realmente vale a pena me matar apenas para obter um ovo de tartaruga?”.

Casa entre rios próximos à foz do rio Amazonas REUTERS/Ricardo Moraes

Nossa viagem pelo Rio Negro, que corre mais ou menos paralelo e algumas centenas de quilômetros ao norte do Rio Amazonas, é feita a bordo de um barco de oito cabines pilotado pelo parceiro de negócios de Tone, Oziel Rodrigues. “As pessoas imaginam que a Amazônia é desabitada, como um parque nacional ou uma reserva natural”, diz Tone enquanto passamos por vilarejos. “Mas há pequenas comunidades ao longo do rio, pessoas que estão aqui há muito tempo.” A proteção dessas áreas foi negligenciada durante a presidência de Jair Bolsonaro, de 2019 a 2022. O governo cortou o financiamento para guardas florestais e outros agentes de fiscalização, permitindo que a pesca comercial e a pecuária se expandissem, em grande parte sem controle, mesmo em regiões onde tais atividades eram proibidas. “Um dos meus objetivos”, diz Tone, “é encontrar maneiras de ajudar essas pessoas, por meio da educação, do emprego, para que elas não recorram à caça ilegal ou à pesca ilegal para sobreviver”. 

A população vivendo nas comunidades ribeirinhas do Amazonas refere-se a si mesma como caboclos, palavra semelhante a mestiço, significando uma mistura de herança indígena e colonizadora (tipicamente portuguesa). Embora já tenha sido considerado um termo depreciativo no Brasil, hoje muitos moradores estão abraçando e celebrando sua identidade cabocla. 

Saindo do grande barco, nos aventuramos mais longe na floresta em lanchas que acomodam três ou quatro pessoas, ou canoas de madeira menores. Nessa época do ano, no final da estação chuvosa, o nível da água é tão alto que, em muitos lugares, apenas a ponta das árvores é visível, e a selva passa a ser conhecida como floresta alagada. 

Navegar de canoa envolve remar ao redor das copas das árvores — aventurando-se em canais estreitos densamente tomados de vegetação, o sol equatorial do meio-dia acaba quase eclipsado.  

Ao entardecer, avistamos um bando de araras verde-brilhantes, depois um par de tucanos atravessando o céu. Nosso guia aponta para um bicho-preguiça cochilando em alguns galhos altos. O Rio Negro oferece uma vantagem distinta sobre outras hidrovias: os restos de árvores há muito deterioradas tornam a água altamente ácida, afugentando os mosquitos. Enquanto o rio Amazonas é repleto de insetos e atravessado por navios de cruzeiro, aqui comemos ao ar livre, de mangas curtas, e passamos apenas por um barco local ocasional depois de sair da cidade de Novo Airão.

Tone me contou sobre sua evolução como empreendedor de viagens, começando com a Expedição Katerre Ecoturismo, depois a pousada Mirante do Gavião, que oferece passeios de um dia. Agora, está desenvolvendo viagens muito mais longas, de cerca de duas semanas, a bordo de uma nova embarcação, La Jangada, “onde levamos os visitantes mais profundamente à natureza e ao modo de vida das pessoas que vivem no rio”. 

O cenário remoto de seu mais novo projeto, a pousada Madada — cerca de três horas de barco rio acima de Novo Airão — incluirá espaços em meio ao dossel da floresta. Seu design biomimético é baseado em uma estrutura que estreou na Bienal de Veneza de 2021, na qual a arquitetura é padronizada de acordo com a flora circundante. “Por causa de sua localização e desses novos tipos de estruturas, a ideia é que, na pousada, você esteja completamente imerso na floresta”, explica Tone. 

No meu último dia na Amazônia, visitamos o Biatüwi, restaurante que Tone e Shornik ajudaram a abrir em um bairro da era colonial de Manaus. A chef-proprietária Clarinda Maria Ramos, que faz seu doutorado em antropologia enquanto toca o restaurante, é membro dos Sateré-Mawé, grupo indígena da região de fronteira entre Amazonas e Pará; seu marido, o antropólogo João Paulo Lima Barreto, que veio dos Tukanos do Rio Tiquié, no alto Rio Negro, dirige um centro adjacente de medicina indígena. O cardápio do Biatüwi é elaborado a partir de ambas as tradições e apresenta uma sopa de peixe intensamente azeda e apimentada servida com um acompanhamento opcional: escolha entre duas variedades de formiga da selva, uma das quais tem o sabor distinto do capim-limão.

“Temos orgulho de ser o primeiro povo indígena vendendo nossa própria comida, em nosso próprio lugar”, diz Ramos. “É isso que fazemos em casa. Não é uma refeição formal. É restauradora, saudável, natural, é o que servimos para que as pessoas se sintam bem.”

traduzido do inglês por investnews