Tem uma onda gigante vindo da China.
Ela não traz turistas nem investimentos em inteligência artificial. Ela carrega contêineres: de carros, painéis solares, turbinas, baterias e máquinas industriais. É uma avalanche de produtos fabricados por uma economia construída para nunca parar — e que, neste momento, está sendo empurrada na direção dos mercados que ainda mantêm as portas entreabertas. Um deles é o Brasil.
O novo pacote tarifário anunciado por Donald Trump nas últimas semanas incluiu aumentos significativos do imposto de importação que incide sobre dezenas de categorias de produtos chineses, com destaque para os setores mais estratégicos da chamada nova economia. Carros elétricos, semicondutores, painéis solares, equipamentos de alta tecnologia e até produtos químicos passaram a ser taxados em até 245%, tornando sua entrada nos Estados Unidos quase inviável.
Diante desse bloqueio, a expectativa é de uma reação classicamente chinesa: corte de preços, ampliação de estímulos e uma desova do excedente produtivo em mercados onde ainda há espaço para absorção.
Segundo projeções da Organização Mundial do Comércio (OMC), as exportações chinesas para a América do Sul devem crescer 9% em 2025, o maior avanço regional entre todas as faixas analisadas. E entre os países da região, o Brasil é o destino mais óbvio: já tem a China como maior parceira comercial e, de longe, é o que tem o maior mercado consumidor.
A China responde hoje por 31% de toda a produção industrial global, de acordo com dados do Banco Mundial. É um volume sem paralelo na história recente da economia mundial. Com fábricas operando em ritmo acelerado, capacidade de escalar a produção rapidamente e uma rede logística altamente eficiente, o país consolidou sua posição como epicentro da indústria global.
Nos últimos quatro anos, esse poder produtivo foi ainda mais reforçado. O governo chinês injetou US$ 1,9 trilhão em crédito para turbinar setores considerados prioritários — entre eles, veículos elétricos, energia limpa, semicondutores, maquinário industrial e tecnologias digitais.
O problema é que a demanda doméstica já não acompanha esse ritmo. Desde o colapso da bolha imobiliária em 2021, a classe média perdeu renda, o consumo travou e os estímulos fiscais perderam força. Hoje, a pensão mínima paga a idosos na China é de US$ 20 por mês — um número que evidencia as limitações da retomada via consumo interno.
Parar, no entanto, não é uma opção. O aparato industrial chinês precisa seguir girando. A alternativa, como em outros momentos da história recente, foi direcionar a produção excedente para fora — e isso se reflete numa nova onda de exportações, mais agressiva, mais rápida e mais politicamente orientada do que antes.
A indústria brasileira de aço, por exemplo, há meses teme que o protecionismo trumpista insensifique ainda mais a “invasão” do aço chinês por aqui. “À medida que outros países coloquem mais proteção, o aço da China vai buscar os países que estiverem sem proteção”, disse, na ocasião, Gustavo Werneck, presidente global da Gerdau.
A solução? Para Werneck – e quase todo industrial no mundo que teme ser prejudicado pela “desova chinesa” – é estabelecer barreiras tarifárias ainda mais elevadas. “É uma escolha sobre onde vai estar o emprego: no Brasil ou na China.”
Entre todos os setores afetados por essa mudança de rota, o automotivo talvez seja o mais emblemático. Em 2023, a China superou Japão e Alemanha e se tornou a maior exportadora de automóveis do mundo, segundo dados da Associação Chinesa de Fabricantes de Automóveis. Esse avanço não é casual. Ele é o resultado de décadas de planejamento estatal, subsídios direcionados e controle verticalizado da cadeia de produção.
A BYD, por exemplo, produz internamente até 80% dos componentes dos seus veículos, incluindo as baterias — item que responde por cerca de 60% do custo de um carro elétrico. Já a CATL, líder global na produção de baterias, detém quase 40% do mercado mundial e fornece para marcas como Tesla, BMW, Toyota, Volkswagen e Stellantis. Em resumo: mesmo que o carro não seja chinês, boa parte dele já é.
Com os Estados Unidos e o Canadá aplicando tarifas de 100% sobre veículos chineses, e a Europa avançando em investigações sobre práticas desleais de comércio, a China redirecionou seus navios para portos mais receptivos — como os do Brasil.
Hoje, segundo a Anfavea, 85% dos veículos elétricos importados pelo Brasil vêm da China. Mas a ofensiva não ficou restrita às importações. As montadoras chinesas também decidiram se estabelecer fisicamente no país, transformando a presença comercial em presença industrial.
A BYD comprou a antiga planta da Ford em Camaçari (BA). A GWM assumiu a fábrica da Mercedes-Benz em Iracemápolis (SP). Ambas planejam utilizar essas unidades não apenas para abastecer o mercado interno brasileiro, mas também para exportar a partir daqui para outros países da América Latina.
A resposta das montadoras tradicionais veio logo em seguida. A própria Anfavea, que representa marcas como Volkswagen, Stellantis, GM e Toyota, acusou as empresas chinesas de praticar dumping — ou seja, vender com apoio estatal, a preços artificialmente baixos, prejudicando a concorrência.
Para tentar manter o jogo em aberto, as grandes montadoras anunciaram mais de R$ 100 bilhões em investimentos até 2030, uma tentativa de sinalizar força, modernização e comprometimento com o país. Mas o alerta está dado: o Brasil virou campo de batalha entre potências industriais, e a disputa está só começando.
Esse modelo de ocupação comercial não é exatamente novo. A China já aplicou a mesma lógica — com sucesso — no setor de energia solar.
Durante o primeiro mandato de Trump, os Estados Unidos impuseram tarifas pesadas sobre painéis solares chineses. A reação foi imediata: com os preços ainda mais baixos, a China mirou novos mercados. E o Brasil entrou no mapa.
De 2018 a 2023, o volume de painéis solares chineses importados pelo Brasil disparou. Segundo dados da Absolar (Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica), cerca de 90% dos painéis instalados atualmente no país são de origem chinesa.
Não foi apenas uma questão de preço ou eficiência técnica. Foi resultado de um modelo industrial capaz de escalar rapidamente, financiado com crédito estatal e orientado pela diplomacia econômica de Pequim. Um modelo que agora está sendo replicado em outros setores.
Enquanto Trump reaparece no palco político com uma retórica ainda mais agressiva, Xi Jinping trabalha em outra frequência.
Como descreveu o The Wall Street Journal, o governo chinês promove uma “ofensiva de charme global”, oferecendo acesso à sua cadeia produtiva, infraestrutura financiada e capital de longo prazo em troca de parcerias estratégicas e alinhamento político.
Em novembro de 2024, o presidente Lula viajou a Pequim. O resultado foi a assinatura de 37 acordos bilaterais com o governo chinês, consolidando a participação do Brasil no conceito de “Comunidade de Futuro Compartilhado”, expressão-chave da atual política externa de Xi.
Essa aproximação reforça a ideia de que o Brasil pode se beneficiar da tensão entre China e Estados Unidos. Mas também levanta uma dúvida incômoda: estamos construindo um novo protagonismo econômico ou apenas ocupando o papel de destino final da superprodução alheia?
O Brasil, que historicamente ocupou uma posição periférica na lógica das grandes cadeias produtivas globais, agora se vê no centro dessa onda.
De um lado, o país se beneficia com acesso a produtos mais baratos e tecnologias antes restritas. De outro, pode ver sua própria indústria perder ainda mais espaço, escala e relevância.
Por enquanto, a gente ainda está assistindo à onda se aproximar. Mas ela já está ganhando força. E, quando bater com tudo, o Brasil vai ter que decidir: tentar surfar de alguma maneira… ou ser levado pela correnteza.