Tornar-se um investidor imobiliário sempre foi um sonho alimentado pelo engenheiro e profissional de TI, Jorge (nome fictício). Mas com quase 50 anos, ele ainda mantinha um pé atrás em relação a apostas em propriedades para renda. Ele testemunhou várias crises, afinal: o estouro da bolha dos flats nos anos 1990, o colapso do mercado de pequenos escritórios na década passada… Há dois anos, porém, encontrou uma oportunidade que parecia boa demais para recusar.
Os argumentos do vendedor eram convincentes: a maior parte do investimento naquele estúdio de 30 m² na Bela Vista, região central de São Paulo, seria pago com o aluguel obtido no Airbnb, que costuma render até 50% mais do que os contratos de longa duração.
A locação era garantida, alegou o representante da incorporadora, já que empreendimento ficava perto da Avenida Paulista, um dos lugares preferidos de quem visita São Paulo. Na cabeça de Jorge, então, era uma oportunidade de garantir um apartamento como patrimônio desembolsando apenas 20% do valor de mercado.
Pelas contas que o vendedor exibiu, era mesmo. A renda obtida com o Airbnb permitiria a Jorge pagar o financiamento bancário depois que recebesse as chaves, e ainda sobraria R$ 1 mil por mês. O preço do imóvel, R$ 290 mil na época, parecia convidativo para a região.
Negócio fechado. Mas agora, depois de ter pagado R$ 60 mil de entrada e prestes a receber o estúdio, Jorge percebeu que as fundações de seu investimento eram de areia.
Sem atentar para os termos do contrato, descobriu tardiamente ter comprado um imóvel enquadrado como “habitação de interesse social” (HIS) – sujeito a várias restrições, incluindo a proibição de alugar por curtas temporadas. Ou seja, nada de AirBnb.
A nova regra
Em maio deste ano, as regras da cidade de São Paulo para as habitações de interesse social (HIS 1 e 2) e habitações de mercado popular (HMP) ficaram bem mais restritas.
Em tempo. As HIS 1 são destinadas a famílias com renda de até três salários mínimos; as HIS 2, até seis; as HMPs, até 10.
Até o dia 27 de maio, a regra era só essa, a das faixas salariais. A incorporadora podia vender pelo preço que quisesse; e o comprador, alugar pelo que bem entendesse. E não havia restrição a AirBnB.
Na prática, então, muitos prédios de estúdios em regiões nobres de São Paulo foram erguidos como se fossem HIS ou HMP, mas vendidos para pessoas mais ricas, a fim de investir em imóveis. Estúdios, no caso, são apartamentos pequenos, quase sempre com sala e quarto integrados ou com até 1 dormitório, e espaços entre 25 m2 a 40 m2.
Para dar uma ideia de como esse mercado escalou: no Itaim Bibi, um dos bairros mais valorizados da cidade, os estúdios são vendidos por até R$ 1,5 milhão. E os aluguéis chegam a R$ 6 mil; mesmo com a metragem diminuta. Nada que possa ser chamado de “baixa renda”, portanto.
Para resolver essa questão, a prefeitura de São Paulo endureceu as normas. As novas regras para esse tipo de imóvel agora proíbem essas unidades de serem oferecidas para locações de curta temporada. Há ainda limites estabelecidos para compra, venda e aluguel dessas propriedades (veja abaixo).
Ou seja: quem comprou um estúdio enquadrado no HMP por R$ 1,5 milhão só pode vender agora por R$ 518 mil. E se for alugar, não poderá cobrar mais do que R$ 4.554. No caso de um HIS 2, o aluguel máximo fica restrito a R$ 2.732. O limite é ainda maior do que parece: o valor que tem de incluir o condomínio e outras despesas cobradas do inquilino, como IPTU.
As restrições no valor de revenda e de locação valem por 10 anos. Nesse meio-tempo, então, a nova regra torna o imóvel basicamente inútil como investimento.
Mais de R$ 30 milhões em multas
A legislação paulistana traz incentivos para as habitações enquadradas como populares. O principal é aprovar um maior “potencial construtivo” sem custo extra, ou seja, a empresa pode erguer prédios maiores, mais altos e com mais unidades. Além disso, os projetos HIS e HMP têm incentivos tributários e um processo mais rápido de aprovação.
Para entender como isso beneficia a construtora e acaba se tornando um atrativo para o projeto arriscar na ilegalidade, é preciso observar um mecanismo chamado outorga onerosa. Funciona assim: se um empreendimento tradicional nessas áreas quiser construir além do limite básico permitido pelo terreno tem de pagar uma taxa cobrada pela prefeitura – a outorga onerosa. No caso dos HIS e HMP, pode haver um desconto significativo ou a isenção dessa cobrança, que facilmente chega a alguns milhões de reais.
O fato é que milhares de pessoas, como o engenheiro Jorge, compraram apartamentos destinados a moradia popular sem estar atentos aos riscos desse tipo de imóvel.
A prefeitura de São Paulo e o Ministério Público já abriram investigações contra diversos empreendimentos que detêm cerca de 2 mil unidades classificadas como HIS ou HMP em bairros nobres da capital como Pinheiros, Lapa, Vila Romana, e a região da Avenida Faria Lima. A administração do município já aplicou neste ano multas para seis condomínios em um valor total de R$ 31 milhões.
Nem todos os imóveis têm restrições
Mas isso significa que o mercado de estúdios para Airbnb micou? Não necessariamente. A maior parte dos prédios de apartamentos pequenos em bairros nobres, na verdade, fica de fora da classificação de imóvel popular. Mas é claro que ainda existem milhares de unidades HIS e HMP espalhadas pelas regiões mais valorizadas da cidade.
Isso ocorre principalmente porque existem áreas consideradas como “zona especial de interesse social”(zeis), na qual a legislação exige que um percentual das construções seja HIS ou HMP. Dados da secretaria municipal de habitação (Sehab) mostra que o chamado Centro expandido da cidade tem diversas áreas classificadas como zeis 2 e 3. No caso da zona 3, um empreendimento erguido em um terreno nessas especificações precisa destinar 60% das unidades para habitações de interesse social e mercado popular. Nas zeis 2, o percentual sobe para 80% das unidades. Nos dois casos, geralmente são prédios com vários estúdios nos andares baixos, e apartamentos de alto padrão nos de cima.
Apesar de numerosas, a maior parte dos terrenos dos bairros da zona oeste, como Itaim, Vila Olímpia, Pinheiros e Vila Mariana, permanece fora dessa classificação de zeis, segundo os dados da Sehab. “São poucos empreendimentos que estão ilegais comparado ao mercado como um todo”, afirma o presidente do Sindicato da Habitação São Paulo (Secovi-SP), Ely Wertheim.
“E sobre os casos em que comprovadamente o empreendimento não cumpriu a legislação, que sejam punidos de acordo com a lei.” Dados do Secovi indicam que as irregularidades atingem cerca de 2% dos condomínios na área do Centro expandido.
As irregularidades, no caso, não recaem sobre a construção dos imóveis em si, mas na venda irregular dos estúdios HIS ou HMP. Ou seja: a incorporadora paga multa se tiver vendido para compradores que não se enquadrem nas faixas de renda. E se o comprador, da faixa de renda que for, vender para um terceiro que não esteja enquadrado, paga multa também.
Ricardo Negrão, sócio do escritório NFA e especialista em mercado imobiliário, explica que, na verdade, a maior parte dos projetos de estúdios já tem sido feita dentro da classificação “não residencial (NR)”, que é justamente um tipo de imóvel voltado à locação de curta temporada.
No caso de condomínios com apartamentos com vários tipos de classificações, a lei vale apenas para aqueles enquadrados como de interesse social ou de mercado popular. “Tivemos vários casos de consultas no escritório, onde os empreendimentos tinham boa parte das unidades NR e algumas HIS e HMP. As unidades NR não são atingidas pelas restrições.”
Riscos aumentaram
De qualquer modo, apesar de as novas exigências não inviabilizarem o mercado de pequenos apartamentos para renda, as mudanças podem ter pegado de surpresa vários investidores, e ampliam um risco que poucos estavam atentos: o regulatório.
Manter cautela sobre questões legais é sempre uma postura importante para quem vai aplicar seu dinheiro em imóveis. Esse mercado exibe diversos casos de prejuízos devido a irregularidades com documentos ou embates jurídicos – por conta de licenciamento ambiental, por exemplo. Foi o caso de um edifício de luxo quase pronto, construído em uma das áreas mais nobres do Itaim, a rua Leopoldo Couto de Magalhães, que foi embargado por falta de alvará de edificação em 2023.
O episódio das habitações populares vendidas para investidores em São Paulo mostra que os riscos envolvidos vão além daqueles puramente de mercado. No caso do segmento de estúdios, os investidores já têm de lidar com o número excessivo de lançamentos desse tipo de imóvel, o que pode levar a um cenário de oferta acima da demanda e, como consequência, a queda de preços de venda e locação. As novas barreiras regulatórias adicionam mais uma preocupação.
Antes de investir em qualquer imóvel, o interessado precisa ler o contrato para saber se o estúdio se enquadra ou não como uma HIS ou HMP. De qualquer modo, qualquer projeto na planta tem de deixar clara a existência dessas unidades e quais as restrições.
Com as novas regras, há risco, inclusive, de o interessado não conseguir o financiamento no banco após receber as chaves, se estiver desenquadrado dos limites de renda. No caso de apartamentos já prontos, é preciso consultar a matrícula do imóvel, o contrato de compra e venda e o alvará de aprovação do projeto.
E de novo: quem já comprou o imóvel HIS ou HMP precisa avaliar se a renda obtida será satisfatória. Caso contrário, o proprietário pode vender a unidade, mas dentro dos valores estabelecidos na lei municipal (ver tabela). Se o preço pago foi acima dos tetos estabelecidos, o investidor vai amargar um prejuízo. É o caso do engenheiro Jorge, citado no início. Ele decidiu vender o imóvel para recuperar o máximo possível do investimento inicial.