Como era de se esperar, o CEO da Tether, Paolo Ardoino, não recebeu bem a classificação. Em suas redes sociais, ele acusou a “máquina de propaganda das finanças tradicionais” de ficar preocupada “quando qualquer empresa tenta desafiar a força da gravidade do sistema financeiro falido”. (No final do texto tem mais da resposta dele)
Vamos contar essa histórica por partes.
O problema nas reservas
O último relatório da Tether, publicado em 30 de setembro de 2025, diz que a empresa tinha US$ 181,2 bilhões em reservas para lastrear US$ 174,4 bilhões em USDT emitidos no mercado. Haveria, portanto, “sobrecolateralização” – ou seja, mais dinheiro em caixa do que tokens emitidos. Até aí, tudo bem.
O problema, porém, é a mudança na composição desse lastro.
A proporção de ativos considerados de risco aumentou, enquanto a de títulos seguros diminuiu. Esses papéis mais voláteis agora representam 24% do total, ante 17% de um ano atrás. Dentre eles, está o bitcoin, cuja participação nas reservas saltou de 3,9% para 5%.
A S&P alertou que uma queda acentuada no preço do bitcoin ou no valor de outros ativos de maior risco poderia deixar a a USDT potencialmente sublastreada (ou seja, sem lastro para sustentar seus tokens). “Acreditamos que a crescente participação de ativos arriscados expõe as reservas da USDT a maiores flutuações de mercado”, escreveu a agência.
Nos últimos dias, o bitcoin realmente sofreu uma significativa desvalorização desde seu pico histórico no início de outubro, chegando a perder quase 30% de seu valor. Embora tenha se recuperado parcialmente nesta quinta-feira (27), persistem as incertezas sobre uma retomada consistente.
A queda dos ativos seguros
A Tether é uma das maiores detentoras de títulos do Tesouro dos EUA, com uma carteira de US$ 130 bilhões – um montante que supera as reservas de países como Alemanha e Coreia do Sul. O ex-presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, até comentou em evento recente que o Tesouro americano deve estar feliz da vida com as compras da cripto.
De acordo com o relatório, títulos americanos de curto prazo (com vencimento médio inferior a 90 dias), títulos lastreados em everse repo overnight (instrumentos de curtíssimo prazo super seguros) e outros ativos semelhantes representam 75% do caixa. No entanto, esse percentual é menor do que os 81% registrados no ano anterior.
Ou seja: a Tether aumentou em 7% a parcela de ativos de risco do caixa, enquanto diminiu 6% de produtos financeiros considerados seguros.
Quem são os custodiantes?
Outro ponto crítico destacado pela S&P é a falta de transparência. A agência menciona que, embora fontes públicas sugiram que uma instituição financeira dos EUA atue como custodiante desses títulos, os relatórios da Tether não divulgam informações sobre quem são esses custodiantes, contrapartes ou provedores de contas bancárias.
“A transparência sobre contrapartes, custodiantes e provedores de contas bancárias permanece limitada. A Tether não publica informações sobre essas entidades, o que poderia inflar os riscos caso a credibilidade de crédito delas seja fraca”, disse a agência.
A S&P também destacou que a Tether faz atestações trimestrais por meio da BDO Italia, um auditor independente. No entanto, concorrentes publicam relatórios mensais. Falou ainda que a empresa divulga regularmente números sobre reservas e passivos em seu próprio site, mas, diferente do relatório trimestral, eles não são auditados nem detalhados.
Além de ativos de risco e títulos do tesouro americano, as reservas da empresa incluem fundos do mercado monetário (4%) e caixa e depósitos bancários (menos de 0,5%).
“Sem reservas tóxicas”
Em resposta direta ao rebaixamento pela S&P, o CEO da Tether, Paolo Ardoino, não recebeu bem a classificação e criticou os modelos de classificação tradicionais, argumentando que eles historicamente levaram investidores a alocar recursos em empresas com “classificação de grau de investimento” que, mesmo assim, entraram em colapso.
Ele afirmou que a Tether construiu “a primeira empresa sobrecapitalizada na indústria financeira, sem reservas tóxicas” e que, apesar disso, permanece extremamente lucrativa. Disse ainda que “a Tether é a prova viva de que o sistema financeiro tradicional está tão falido que está a começar a ser temido pelos reis que estão nus”.
USDT já perdeu a paridade antes
Apesar das críticas do CEO, a stablecoin já perdeu a paridade com o dólar em diferentes momentos do passado – e esse é um dos riscos dessas criptomoedas.
Em abril de 2017, quando a Tether enfrentou problemas de liquidez e questionamentos sobre o lastro de suas reservas – agravados por dificuldades bancárias da exchange Bitfinex, sua parceira – o USDT chegou a ser negociado abaixo de US$ 0,91 em algumas exchanges, segundo a plataforma CoinMarketCap, refletindo a desconfiança do mercado.
No final de 2022, durante o colapso da corretora cripto FTX, a USDT voltou a escorregar: caiu para US$ 0,98 por algumas horas na manhã de 10 de novembro. Já em 15 de junho de 2023, a stablecoin oscilou de novo, chegando a US$ 0,997, após o Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA) sinalizar novas altas de juros.