Outrora vista como uma máquina de geração de caixa, a Boeing viveu um período de tormenta em grande parte autoinfligido. Desde os acidentes de 2018 e 2019 com o 737 MAX, a empresa sofreu com uma cultura corporativa que relegou a engenharia a segundo plano — a ponto de falhar em algo básico como garantir o encaixe correto de uma porta, como evidenciado pela falha de janeiro de 2024.
A simples tarefa de fabricar aviões se tornou um desafio: no fim do ano passado, a companhia havia entregue 265 jatos da família 737 — menos da metade da meta anual e bem abaixo das 396 entregas de 2023. No fechamento da última segunda-feira (3), as ações da Boeing ainda estavam cerca de 54% abaixo da máxima histórica de março de 2019, de US$ 446,01.
Uma nova liderança
A virada da Boeing tem nome: Kelly Ortberg. Desde que assumiu o comando em julho de 2024, o engenheiro, um veterano do setor aeroespacial, fez o que parecia impossível: tornar a ação da Boeing “investível” novamente. Ortberg restabeleceu relações com fornecedores, trocou executivos, redirecionou recursos para novos projetos e passou mais tempo em Seattle, onde o 737 MAX é produzido.
Desde sua chegada, as ações da Boeing acumulam alta de 7%. Apesar da queda recente após o balanço do terceiro trimestre, o mercado vê sinais de melhora. “Eu adoro essas histórias”, diz Stephanie Link, estrategista-chefe da Hightower Advisors. “Empresas com bons fundamentos que foram mal geridas e, de repente, ganham um bom CEO.”
A Boeing não disponibilizou uma entrevista com Ortberg para esta reportagem.
As raízes da crise
Os problemas da Boeing começaram muito antes do 737 MAX. Em 1997, o então CEO Philip Condit e o chefe da McDonnell Douglas, Harry Stonecipher, celebraram a fusão das duas companhias — um marco de prestígio em Wall Street, mas que mudou o foco da empresa: de engenharia aeronáutica para engenharia financeira.
Em 2001, Condit transferiu a sede de Seattle para Chicago, afastando a liderança da linha de produção. Foi um golpe cultural profundo. Sob Jim McNerney, que assumiu em 2005, o ambiente piorou. Após uma greve de nove semanas em 2008, a Boeing construiu uma fábrica não sindicalizada na Carolina do Sul — hoje casa do 787 Dreamliner.
De 2011 a 2019, durante o desenvolvimento e a crise do MAX, a Boeing gastou cerca de US$ 49 bilhões em P&D e novas plantas — 6,2% da receita. A rival Airbus investiu US$ 52 bilhões, ou 9,4%.
No mesmo período, a Boeing devolveu US$ 59 bilhões aos acionistas, incluindo US$ 40 bilhões em recompras de ações. O resultado foi um balanço frágil: em 2024, a empresa precisou vender US$ 16 bilhões em novas ações, a US$ 143 cada, para se recapitalizar.
Do desastre à reconstrução
Nada foi mais danoso do que o 737 MAX, lançado em 2017 sob o comando de Dennis Muilenburg. O modelo, criado para competir com o A320neo da Airbus, resultou em duas tragédias fatais e quase dois anos de paralisação global. O sucessor, Dave Calhoun, conseguiu recertificar o modelo, mas anunciou sua saída logo após o incidente de janeiro de 2024, quando um painel de porta se soltou durante um voo.
“Neste ponto, todo mundo conhece a história”, resume Gautam Mukunda, professor da Yale School of Management. “[A Boeing] foi brutalmente mal administrada por boa parte da minha vida adulta.”
Ortberg, ao contrário, é engenheiro de formação. Ele começou na Rockwell Collins em 1987, virou CEO em 2013 e deixou a empresa após sua incorporação pela United Technologies (hoje RTX). Retornou à ativa com a missão de reconstruir a Boeing — e não tem medo de mudar o que for preciso.
O estilo Ortberg
Ortberg transferiu parte da gestão de volta para Seattle, aproximou executivos da linha de produção, reforçou o caixa com emissões de ações e vendeu parte da Digital Aviation Solutions para o fundo Thoma Bravo, por mais de US$ 10 bilhões. Também encerrou o projeto futurista do X-66, avião experimental com asas ultrafinas, por considerá-lo distante demais das necessidades de curto prazo.
A mudança de tom é nítida. “O discurso ficou muito menos arrogante”, diz Rob Stallard, analista da Vertical Research Partners. “Clientes e fornecedores estão mais confiantes de que a Boeing realmente vai entregar o que promete.”
Ele também elogia o novo CFO, Jay Malave, ex-Lockheed Martin, e cita avanços na cultura interna.
O consultor Richard Aboulafia, da AeroDynamic Advisory, destaca duas mudanças-chave: a nomeação de Stephen Parker para comandar a divisão de defesa e a de Brian Yutko — Ph.D. pelo MIT e ex-CEO da Wisk — para liderar o desenvolvimento de aeronaves comerciais. “Ortberg não teme gente talentosa”, resume.
Um futuro em reconstrução
A Boeing ainda enfrenta greves — 3.200 funcionários da divisão de defesa estão parados em St. Louis —, mas a pior crise trabalhista terminou em 2024, com um acordo que garantiu aumentos salariais e que o próximo jato de corredor único será construído no estado de Washington.
Mesmo assim, a empresa deve registrar sete anos consecutivos de prejuízo em 2025, o pior desempenho contínuo entre as empresas do S&P 500. Nenhuma outra companhia perdeu tanto dinheiro desde 2019.
Ainda assim, há sinais de recuperação: a demanda segue firme, com 6,6 mil pedidos em carteira, e as entregas devem subir de menos de 350 aviões em 2024 para cerca de 600 em 2025 — ainda longe das 806 de 2018.
Após a limitação imposta pela FAA, a produção do 737 MAX foi ampliada de 38 para 42 aviões por mês, com meta de chegar a 50. Essa retomada pode gerar US$ 11 bilhões em fluxo de caixa livre até 2028, segundo projeções de Wall Street.
“No fim, a história é simples”, diz Ron Epstein, analista do BofA Securities, que recomenda compra. “Se a Boeing entregar mais aviões, vai gerar mais caixa.”
Um passo de cada vez
Desde o segundo acidente do MAX, a Boeing errou previsões de Wall Street em 70% das vezes — uma taxa inédita. Ainda assim, há sinais de disciplina: no terceiro trimestre, o prejuízo foi de US$ 7,14 por ação, acima do esperado, mas a receita cresceu para US$ 23,3 bilhões, com fluxo de caixa positivo pela primeira vez desde 2023.
Analistas estimam que, com fluxo de caixa normalizado de US$ 11 por ação, o preço justo do papel pode chegar a US$ 270 (alta de 35%) — ou até US$ 300, caso alcance os múltiplos da Airbus.
O consenso: a virada depende de confiança.
A Boeing trabalha para certificar o 777X e os 737 MAX 7 e 10, previstos para 2026 ou 2027, o que pode destravar novas encomendas. Para Rob Stallard, da Vertical, a empresa está “no fim do começo” da recuperação — com cadeia de suprimentos mais estável e uma liderança finalmente focada em engenharia.
A próxima etapa é ousada: projetar um novo avião comercial. Isso exigirá dezenas de bilhões de dólares, mas pode recuperar participação perdida para a Airbus, dona de 70% do mercado de jatos médios.
Mais do que uma aposta industrial, seria um gesto simbólico: recolocar a engenharia no centro da Boeing.
“A Boeing não está mais negando a necessidade desse novo avião — e tampouco que já avalia opções”, diz Aboulafia.
Por aqui passa o caminho da redenção.
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