Newsletter

Como o setor elétrico brasileiro se tornou o destino preferido dos investimentos chineses

O país concentrou um terço dos aportes da China em 2024 e virou vitrine para tecnologias de transmissão, baterias e energia renovável

Publicidade

Nenhum setor da economia brasileira atraiu tantos investimentos chineses no ano passado do que a energia elétrica. Segundo o Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), o setor concentrou 34% do total investido pela China em 2024, somando US$ 1,43 bilhão — um aumento de 115% em relação a 2023.

Foram 22 empreendimentos, o maior número já registrado desde o início da série histórica em 2007.

No total, o Brasil recebeu US$ 4,18 bilhões em investimentos chineses em 2024. Esses aportes colocaram o país como o terceiro maior destino global do capital produtivo chinês e o líder entre as economias emergentes, segundo o estudo do CEBC.

O salto reflete uma tendência de reorientação do capital chinês para setores estratégicos da transição energética e é protagonizado por grandes companhias, várias delas controladas pelo estado chinês.

“O gigantismo dessas empresas é algo difícil de dimensionar”, diz Carlos Azevedo, diretor da consultoria Alvarez & Marsal. “Para você ter uma ideia, só a State Grid investe cerca de US$ 100 bilhões por ano — o equivalente a comprar cinco Eletrobras de uma vez.”

Um império elétrico em formação

A presença chinesa no sistema elétrico brasileiro começou há pouco mais de uma década. A State Grid desembarcou no Brasil em 2010 e ampliou rapidamente sua atuação. O passo decisivo veio em 2017, quando a empresa comprou o controle da CPFL Energia, uma das maiores distribuidoras do país. Hoje, a CPFL detém cerca de 15% do mercado nacional de distribuição, além de operar em geração e transmissão.

A segunda força é a China Three Gorges (CTG), que entrou por meio da compra de ativos da Duke Energy e da Cemig, acumulando 8,3 gigawatts de capacidade instalada — 3,5% do total brasileiro. Trata-se da estatal criada para levantar a chinesa Três Gargantas, maior hidrelétrica do mundo, com 22,5 gigawatts de capacidade (60% mais do que Itaipu).

A terceira é a SPIC (State Power Investment Corporation), maior geradora solar do mundo, com 246 gigawatts de capacidade global, mais do que todo o parque elétrico brasileiro. No país, detém 2 a 3% do mercado, com foco crescente em eólicas e solares.

Além das três gigantes estatais envolvidas em geração, transmissão e distribuição, há empresas chinesas fabricando localmente equipamentos que fazem parte da transição energética. Uma delas é a BYD, que desde 2017 produz painéis solares em Campinas.

“O Brasil é o destino mais importante dos investimentos chineses fora da Ásia”, afirma Cláudia Trevisan, diretora-executiva do CEBC. “Metade dos ativos internacionais da State Grid está no Brasil, o mesmo vale para a China Three Gorges.”

Publicidade

Os dados do CEBC confirmam essa concentração: 45% de todo o estoque de investimento chinês no Brasil desde 2007 está em eletricidade, somando US$ 35 bilhões.

Essa participação, embora expressiva, se distribui em diferentes etapas do sistema. A CTG se consolidou na geração hídrica, a SPIC em renováveis e a State Grid na transmissão de alta tensão. É um mosaico de posições que, em conjunto, dá ao Brasil um papel singular dentro da estratégia global de energia da China.

A virada recente dos investimentos reflete a redefinição da política industrial chinesa. A partir de 2018, Pequim passou a promover o conceito de “nova infraestrutura”, um guarda-chuva que inclui energia renovável, mobilidade elétrica, armazenamento e redes digitais.

Um estudo de 2024 sobre investimentos chineses na América Latina e Caribe, publicado pelo think tank Inter-American Dialogue, mostra que o interesse da China na região vêm migrando de megaprojetos de infraestrutura para operações menores e tecnológicas.

Entre 2018 e 2023, 58% do total de investimento chinês na América Latina concentrou-se em energia renovável, veículos elétricos e redes inteligentes. O valor médio anual caiu, mas o número de projetos aumentou — um padrão que o Brasil reproduz com precisão.

Na prática, isso se traduz em tecnologia. A State Grid introduziu no país o sistema Ultra High Voltage (UHV), capaz de transmitir energia a longas distâncias com mínima perda. É a tecnologia usada nas linhas que conectam a usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, ao Sudeste.

“Essas empresas estão num processo de modernização das redes e das operações que elas têm aqui, com uso de inteligência artificial e tecnologias nas quais a China está entre os líderes globais”, pontua Cláudia Trevisan.

Outra fronteira é o armazenamento de energia. “A China é líder mundial em baterias, e esse deve ser o próximo ciclo de investimentos no Brasil. O país enfrenta desperdício de energia solar e eólica por falta de armazenamento, e os chineses dominam essa tecnologia.”

Além das baterias, ele cita tecnologias de transmissão em corrente contínua de alta tensão, medidores inteligentes (smart meters) que tornam possível monitorar e ajustar o consumo em tempo real e ainda a repotenciação de usinas, que aumenta a eficiência de usinas existentes sem novas grandes obras.

Essas soluções, diz ele, podem ajudar o Brasil a enfrentar desafios como a “curva do pato” — o descompasso entre a geração solar durante o dia e o pico de consumo à noite —, oferecendo armazenamento e geração mais flexível.

Esse tipo de avanço técnico reforça a posição do Brasil como mercado piloto para tecnologias chinesas de infraestrutura energética.

Publicidade

As estatais da China

A ascensão chinesa reacende o debate sobre o controle de ativos estratégicos. Para Azevedo, a crítica é anacrônica.

“A gente privatizou porque o Estado não tinha mais capacidade de investimento. Criamos um modelo regulatório que atraiu capital estrangeiro, e isso é uma virtude, não um problema. É muito bem-vindo o capital internacional que traz competitividade e tecnologia para competir com os players atuais.”

Cláudia Trevisan, do CEBC, completa. “Não é um takeover. Se você olhar a participação da China no total de geração, transmissão e distribuição, é relativamente pequena, está longe de ser uma posição dominante”, argumenta Cláudia. “Todos esses setores têm regras, agências reguladoras, e as companhias chinesas estão sujeitas a elas.”

Para ela, é preciso observar o fenômeno sob a ótica da modernização, não da ameaça. “Acho extremamente positivo para o Brasil ter empresas que estão na linha de frente dessas novas tecnologias, investindo e fazendo projetos aqui.”

Trevisan também faz um contraponto à ideia de “domínio estrangeiro”.

“A maior parte dos empregados é formada por brasileiros, e chineses não vão levar uma hidrelétrica de volta para a China. A gente precisa olhar isso mais pela lente da oportunidade.”

Essa visão se alinha à tendência global identificada pelo Inter-American Dialogue: os novos investimentos chineses são “small and beautiful” — projetos menores, de rápida execução e alto conteúdo tecnológico, direcionados a países do Sul Global com demanda por transição energética.

Trevisan resume a mudança: “Mais de 70% dos painéis solares do mundo são fabricados na China, e o preço da energia solar só caiu porque a oferta chinesa aumentou. O mesmo acontece com turbinas eólicas e baterias.”

Exit mobile version