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Embraer: chegou a hora de um ‘tripólio’ com a Boeing e a Airbus? 

Fala-se que ela pretende enfrentar o duopólio Boeing/Airbus, com uma aeronave equivalente ao 737 Max e o A320 Neo. Entenda o panorama completo

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Deu no The Wall Street Journal dia 1º de maio. A Embraer estaria planejando um salto quântico: fabricar uma aeronave comercial maior, capaz de concorrer no mercado com os best sellers Boeing 737 e Airbus A320 – o que seria um passo para transformar o atual duopólio da aviação num ‘tripólio’, com um pé em Seattle, um em Toulouse e outro em São José dos Campos.  

A notícia ali era: de acordo com fontes ligadas à Embraer, a companhia de São José dos Campos conduziu um processo de avaliação interna para entender se tinha capacidade de desenvolver um avião desse segmento. E a conclusão foi a de que, opa, sim, sem dúvida alguma. Além disso, estariam buscando parceiros para financiar a empreitada, incluindo o fundo soberano da Arábia Saudita.   

A Embraer desmentiu. Disse ao WSJ, por meio de um porta-voz, que “certamente tem a capacidade de desenvolver uma nova aeronave”, mas que não tem planos para um projeto dessa envergadura – por enquanto.

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Na terça (7), o CEO da companhia, Francisco Gomes Neto, reforçou: “Estamos em temporada de colheita. Nosso foco é vender e entregar os produtos que temos hoje. Não temos um plano concreto para lançar outros aviões de grande porte neste momento”. 

Ok. Mesmo assim, o assunto merece uma contextualização maior. Por que a Embraer poderia estar interessada em desenvolver seu “737”? É o que vamos ver agora.

E175-E2: o avião “proibido”

“Se eu mencionar o Brasil, qual é a primeira coisa que vêm às suas cabeças?”, perguntou o físico Neil de Grasse Tyson numa palestra, em 2011. “Biquinis”, diz alguém da plateia. 

“Sim. E futebol, talvez. Essa é a visão dos americanos sobre o Brasil. Eu entendo. Mas isso cega vocês para o fato de que eles têm uma indústria aeroespacial florescente”, segue o cientista. “Vocês sabiam que a maior parte dos aviões que vocês usam em voos regionais, dentro dos Estados Unidos, foram feitos e projetados no Brasil?”. 

Tyson está falando da Embraer, claro. A empresa passou quase duas décadas sem concorrentes à altura no mundo dos jatos regionais, com seus pequenos e confiáveis E-Jets. Mas há uma parte menos óbvia aí. 

Dentre os E-Jets, aquele que talvez esteja mais fixo na memória do cientista é o E175, o mais presente nos aeroportos americanos. Foram 746 unidades entregues em duas décadas, contra 568 do segundo colocado (o E190), e 191 do terceiro (o E170). 

O E175 é um avião comercial de pequeno porte, com capacidade para até 88 passageiros – contra 114 do E190 e 78 do E170, seu irmão menor. Em 20 anos de atividade, mostrou ser o número que o mercado americano de voos regionais calça.   

E175 de primeira geração: 756 unidades entregues, e contando. Foto: Adobe Stock

Em 2013, a Embraer deu um passo adiante: lançou a família E2, a nova geração dos E-Jets. Seu maior predicado é a economia de combustível. Se os “antigos” já se destacavam nessa seara, os novos mostraram-se até 25% mais eficientes.

A expectativa com as vendas do E175-E2 eram, naturalmente, grandes. Mas a nova geração do best-seller não vingou. Não é que ela vendeu pouco. É que ela vendeu zero. Nenhuma companhia aérea jamais encomendou um E175-E2. 

Não era um problema do avião, considerado simplesmente melhor que o da primeira geração. Mas das leis americanas. Por lá, existe um acordo entre as companhias aéreas e os sindicatos de pilotos, chamado “cláusula de escopo” (scope clause). 

Ele determina que o peso máximo de decolagem (MTOW, na sigla em inglês) não pode exceder 39 toneladas em voos regionais entre certas cidades.

Não se trata de uma regra de segurança, mas de uma determinação protecionista dos sindicatos. Pilotos de aeronaves maiores ganham mais do que pilotos de aeronaves menores. Se o conceito de “avião regional” ficasse sem um limite claro, como esse do peso, as cias aéreas ficariam tentadas a substituir alguns voos feitos com aviões como o 737 por voos em aeronaves de menor porte em várias rotas. E isso reduziria o mercado de trabalho dos pilotos mais bem remunerados.

Pois bem. O MTOW do E175, o de primeira geração, é de 38,7 toneladas. Como está dentro do limite da cláusula de escopo, ele pode voar em qualquer rota curta. Daí seu sucesso entre as aéreas americanas. 

Mas o E175-E2, o de segunda geração, não. O MTOW dele é de 44,5 toneladas. “Culpa” dos motores. Contraintuitivamente, os motores mais econômicos são mais pesados. Isso deixou o novo E175 fora dos limites da cláusula de escopo, tornando-o uma aeronave menos interessante que a da primeira geração. 

A cláusula é revista de tempos em tempos. Mas até agora o interesse sindical prevaleceu sobre o interesse econômico (e ambiental): a geração que gasta menos combustível ficou sem mercado – no mercado mais importante da galáxia. Resultado: zero vendas.

A220: a pedra no meio do caminho

Ao mesmo tempo em que teve de lidar com o fracasso do E175-E2, a Embraer viu-se em apuros no mercado de aeronaves regionais mais parrudas. 

Os outros aviões de nova geração eram o E190-E2, agora para até 130 passageiros, e o E195-E2 – maior avião da empresa, capaz de abrigar até 132 assentos e com 4,9 mil km de autonomia. E, tal como o E175-E2, 25% mais eficientes em termos de consumo de combustível do que as versões anteriores. 

Mas no meio do caminho surgiu uma pedra. Esta belezinha aqui da foto:

Airbus A220, o “regional de longo alcance” que tirou mercado da geração E2. Foto: Adobe Stock

A grande concorrente da Embraer no mercado de jatos regionais era a canadense Bombardier. Cansada de comer poeira da fabricante de São José dos Campos, ela tinha começado um projeto ambicioso: uma linha de aeronaves com capacidade para até 160 passageiros e autonomia de 6,3 mil km.

É menos do que um 737 (até 204 passageiros e capaz de voar 7,1 mil km sem escalas). Mas a parte da autonomia era uma cartada forte. A distância entre Nova York e Londres, por exemplo, é de 5,6 mil km. Ou seja: a nova linha da Bombardier, mesmo sendo de aviões pequenos, seria capaz de fazer rotas intercontinentais pelas agitadas linhas entre EUA e Europa – um trunfo comercial que as aeronaves da Embraer não oferecem.  

Essa nova linha era a CSeries – composta por dois jatos, o CS100 e o CS300. Mas a empreitada mostrou-se um passo maior do que as pernas da fabricante canadense. Depois de gastar US$ 6 bilhões no desenvolvimento da C/Series, a Bombardier se viu sem fundos. Resultado: viu-se obrigada a vender o projeto para a Airbus. 

A gigante europeia pegou a C/Series, rebatizou-a família de aviões como A220 (seguindo seu padrão – A320, A350…) e foi ao mercado. Deu mais do que certo. 

A JetBlue, cliente fiel da Embraer nos EUA, decidiu de cara trocar sua frota de 63 Embraer E190 pelos A220. David Neeleman, o americano fundador da Azul e outro cliente assíduo da brasileira, também enamorou-se pela aeronave concorrente. 

Na época, 2019, Neeleman estava lançando uma nova aérea nos EUA, a Breeze. E decidiu que o A220 seria a base de sua frota, em detrimento dos Embraer. Perguntado sobre o motivo, no podcast americano AirInsight, ele respondeu: “A autonomia. Esse é o motivo número 1. Estamos muito felizes na Azul com os E-Jets, e seremos os clientes-lançadores do E195-E2 – mas ele não faz voos intercontinentais”.

O sucesso da Airbus com a assimilação da Bombardier, por sinal, inspirou a Boeing a tentar o mesmo com a Embraer – naquela negociação que deu para trás em 2020.  

Fato é que, de cliente em cliente, o A220 foi ganhando terreno. Foram 914 pedidos até hoje, com 326 entregas. Enquanto isso, a linha E2 da Embraer soma bem menos: 306 pedidos, com 112 entregas. 

E195-E2, o maior avião da Embraer – por enquanto. Foto: Adobe Stock Photo

A temporada de colheita

Nada disso significa que a Embraer tenha perdido relevância. As aeronaves da série E2 são mais eficientes que o A220 em rotas curtas e com menor demanda de passageiros. Nessas circunstâncias, sai mais barato para uma companhia aérea voar com uma aeronave mais leve, que gasta menos combustível. Daí a fala de Neeleman sobre a Azul.  

E enquanto o E175-E2 espera por uma mudança na cláusula de escopo, o E175 da geração anterior segue vendendo muito bem, obrigado. No 1T24 mesmo a American Airlines encomendou 90 deles, elevando os números históricos da aeronave para 943 pedidos e 756 entregas. Isso dá saudáveis 187 unidades em backlog – ou seja, unidades encomendadas, mas ainda não fabricadas, que garantem o fluxo financeiro. 

O backlog total da Embraer, inclusive, cresceu 21% no primeiro trimestre de 2024, na comparação com o 1T23 – de US$ 8,4 bilhões para US$ 11,1 bilhões.  

Os outros braços da empresa também estão sólidos. Na aviação executiva, o Phenom 300 segue há 12 anos como líder de sua categoria – a dos jatinhos leves. Na parte militar, brilha o C-390 Millennium, cargueiro nascido para desbancar o tradicional Hercules, da Lockheed Martin.

Ele continua amealhando clientes entre as forças armadas de vários países. No segundo semestre do ano passado, Holanda, Áustria, República Tcheca e Coreia do Sul se juntaram a Hungria, Portugal e Brasil entre os que decidiram usar o C-390. E trata-se de um projeto tão novo, para os padrões da aviação, quanto a série E2 – ele fez seu voo inaugural em 2015. 

É por tudo isso que o CEO da Embraer fala em “temporada de colheita”. Mas em algum momento a companhia terá de plantar algo novo. E isso nos traz de volta às especulações sobre o desenvolvimento de uma aeronave maior.  

C-390 Millenium, o cargueiro militar feito para desbancar o Hercules, da Lockheed Foto: Adobe Stock Photo

O tamanho do risco

Os jatos com capacidade para 200 passageiros e autonomia para viagens intercontinentais não tão longas são os que mais vendem no mundo – mais do que os regionais, claro, e mais do que os grandões (os de “corredor duplo”, com autonomia e capacidade absurdas).  

O 737 Max, versão mais recente do clássico da Boeing, tem um backlog de 4.813 unidades. O A320 Neo, de impressionantes 7.171. 

Não é só o volume de vendas. Os números aí em cima mostram outro fator que poderia estimular a empreitada. A crise de imagem da Boeing, que começou com os acidentes fatais de dois 737 Max, em 2018 e 2019, segue firme. E fez com que ela perdesse terreno para a Airbus nos últimos muitos anos.

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Há um vácuo claro no mercado, e a Airbus tem surfado sozinha ali. Para uma empresa como a Embraer, tecnicamente capaz de produzir uma aeronave à altura do A320 Neo, é natural cogitar a possibilidade. O próprio sucesso do C-390, uma aeronave complexa e de porte, ajuda a credenciar a companhia brasileira.

Só é preciso lembrar que fabricação de aviões não é uma atividade trivial. Longe disso. Criar uma aeronave do zero pode demandar dezenas de bilhões de dólares, levar dezenas de anos e, claro, simplesmente dar em água.

A própria Airbus viveu isso recentemente. Gastou US$ 25 bilhões para desenvolver o A380 – uma maravilha da história da engenharia, com dois andares e capacidade para até 853 passageiros (ainda que a configuração típica, com executiva, bar, quarto de hotel e o escambau, diminuísse esse número para 523). 

Bom, a europeia gastou seus bilhões, estreou a aeronave em 2005, e teve de tirá-la de produção por falta de clientes de forma precoce, em 2021 – sem ter recuperado o investimento. 

A Airbus, porém, tem bala para segurar perdas nababescas. A Embraer joga em outra divisão. O faturamento dela em 2023 foi de US$ 5 bilhões. O da Airbus, de US$ 70 bilhões. O da Boeing, mesmo com todos os problemas que carrega nas costas, US$ 77 bilhões. Para assumir o risco de criar um concorrente para o Max e para o Neo, então, a Embraer precisaria de parceiros peso-pesado. 

“Fundo soberano da Arábia Saudita, seu sumido, por onde você anda?”    

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