Mas essa mesma expansão acelerada colocou o sistema elétrico em uma situação para a qual ele não foi desenhado. A rede brasileira se acostumou a funcionar com grandes usinas hidrelétricas, térmicas e eólicas, todas despachadas de forma centralizada. De repente, ganhou milhões de pequenas usinas espalhadas pelos telhados, todas produzindo ao mesmo tempo quando o sol está forte. Nesses períodos, a energia solar chega a ser responsável por 40% do abastecimento nacional, à frente da hidrelétrica.
O resultado, em si, é ótimo: energia limpa a rodo. Mas há problemas também. Painéis solares geram distorções tarifárias, aumentam a complexidade operacional da rede e concentram vantagens numa parcela relativamente pequena da população.
Note bem. A discussão não é sobre ser “a favor” ou “contra” energia solar. O ponto é fazer com que o uso dessa fonte continue crescendo sem prejudicar o restante do sistema — e sem transferir custos para quem não tem como colocar um painel no telhado.
Quando o incentivo funciona bem até demais
Para entender como chegamos até aqui, vale voltar no tempo. Em 2012, o Brasil criou o sistema de compensação de energia. Quem instalasse painéis solares poderia injetar o excedente na rede e receber créditos equivalentes para usar à noite. Era como se o relógio da conta de luz rodasse ao contrário boa parte do tempo.
Essa lógica funcionou como um empurrão inicial. Depois, a queda no preço dos equipamentos, a multiplicação de empresas de instalação e a facilidade de adesão transformaram o painel solar em um investimento atraente – e cada vez mais acessível para a classe média. Em poucos anos, a energia vinda de telhados ganhou escala e relevância.
Esse filme já passou em outros países. Alemanha, Itália, Califórnia, Vietnã e Austrália viveram, cada um à sua maneira, momentos de expansão acelerada. É o que explica Marco Delgado, doutor em planejamento energético e conselheiro egresso da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, a CCEE.
Ele lembra que, antes de o Brasil sentir esse impacto, operadores nos Estados Unidos já alertavam para os efeitos de tanta geração solar espalhada. Estudos começaram a mostrar a chamada “curva do pato”, termo usado para descrever o que acontece quando há muita produção no meio do dia e uma queda brusca no fim da tarde. “Essa inserção intensa durante o dia e a queda rápida com o pôr do sol começa a gerar uma distorção na curva de carga do sistema, trazendo desafios aos operadores” afirma.
Quando dezenas de milhares de painéis começam a gerar ao mesmo tempo, o consumo líquido cai muito. Horas depois, quando o sol se põe, a rede precisa recompor rapidamente a oferta vinda das usinas convencionais. Essa gangorra é difícil de administrar e exige ajustes constantes – como cortes forçados na geração de hidrelétricas e de grandes parques solares ou eólicos, que causam prejuízos às empresas do setor.
Nos EUA, esse movimento ocorreu em um sistema dividido em operadores regionais. Aqui, toda a operação é centralizada para o país inteiro. “A diferença é que lá a regulamentação começou com forte autonomia dos Estados. Aqui, a operação é nacional” explica Delgado.
Apesar dessas diferenças, a dinâmica econômica e técnica é parecida. Custos menores, vantagens iniciais e ritmo acelerado deixam a rede diante de desafios que não existiam antes.
O que o mundo fez
Quando o volume de painéis solares cresce demais, o debate muda de natureza. A questão deixa de ser como estimular essa tecnologia e passa a ser como integrá-la de forma equilibrada.
A experiência internacional mostra três caminhos principais.
1) Ajustar os incentivos de acordo com a maturidade da tecnologia
Na Alemanha e na Itália, os incentivos iniciais foram altos, mas tinham uma escada programada. À medida que as metas de capacidade eram alcançadas e os painéis ficavam mais baratos, o benefício para novos sistemas diminuía. Isso manteve o ritmo da expansão sem criar distorções duradouras.
Quando essa avaliação não é feita com cuidado, o resultado costuma ser tenso. A Espanha adotou tarifas muito generosas, acumulou um déficit bilionário e foi obrigada a cortar remunerações de forma retroativa.
Esses exemplos mostram algo relevante para o Brasil. Subsídios funcionam como rampa de acesso, não como trilho permanente. Se duram tempo demais, acabam criando desigualdades tarifárias e impedindo a evolução de outras soluções que complementam os painéis solares.
Rever o sistema de compensação
O net metering, o sistema de compensação, faz sentido quando há poucos painéis conectados. À medida que as instalações se multiplicam, ele pode gerar efeitos contrários ao desejado. É o que ocorreu em vários estados americanos.
O caso mais conhecido é o do Havaí. Lá, o regulador decidiu encerrar a compensação integral para novos clientes. No lugar dela, criou duas modalidades. Uma remunera a energia injetada por um valor menor do que o preço cobrado ao consumidor. Outra estimula quem combina painéis com baterias e quase não exporta energia, concentrando o uso no autoconsumo.
Em ambos os casos, a lógica é a mesma. A energia solar produzida ao meio-dia vale menos que a energia disponível à noite. A tarifa precisa refletir essa diferença.
O debate é especialmente sensível em países como o Brasil, onde quem instala tem um perfil socioeconômico bem distinto de quem não consegue instalar. Os custos acabam repassados para consumidores que simplesmente não têm orçamento para gerar energia em casa.
Modernizar a rede para lidar com o excesso de energia
O terceiro grupo de soluções envolve tecnologia e operação. Em regiões da Austrália com forte penetração de painéis solares, as distribuidoras passaram a usar limites flexíveis. Em vez de restringir permanentemente a quantidade de energia que cada casa pode enviar à rede, a limitação acontece apenas nos momentos de congestionamento do sistema.
Na prática, os consumidores podem aproveitar melhor o potencial dos seus sistemas na maior parte do tempo. E a rede ganha uma ferramenta para evitar sobrecarga nos horários mais críticos.
Esse tipo de solução só funciona porque a rede australiana passou por digitalização pesada. Medidores inteligentes transmitem dados em tempo real e sistemas de automação orientam o fluxo da energia conforme a condição de cada trecho da rede.
No Brasil, esse processo ainda está no início. Mas a necessidade se tornou mais visível à medida que os episódios de sobra de energia durante o dia se multiplicam.
As tarifas que conversam com o sol
É nesse ponto que entram as reflexões de Carlos Evangelista, presidente da Associação Brasileira de Geração Distribuída. Ele acompanha o que países com grande presença de painéis solares fizeram ao revisar suas regras de remuneração.
Evangelista lembra que mercados mais maduros adotam tarifas que mudam conforme o horário e a estação. Isso permite sinalizar ao consumidor quando a energia é barata e quando ela é cara. Em muitos lugares, o preço para injetar energia ao meio-dia é tão baixo que pode até ficar negativo – ou seja, você perde créditos se fizer isso. “Se o custo para injetar é negativo, compensa armazenar em baterias e descarregar mais tarde, quando a energia é mais cara” afirma.
Essa lógica só faz sentido com uma rede inteligente por trás. Inversores, por exemplo, precisam ser capazes de reduzir a exportação de energia em momentos de excesso. E as distribuidoras precisam ter visibilidade do que acontece em cada bairro.
“Lá fora, usam os chamados medidores inteligentes. No Brasil, ainda precisamos substituir 90% dos equipamentos pelas versões ‘espertas’” diz Evangelista. É uma forma de lembrar que a discussão sobre painéis solares não se resolve apenas com um ajuste nas regras. Ela exige investimento em infraestrutura, em tecnologia e numa nova forma de organizar o sistema elétrico.
A experiência internacional mostra que países que mais avançaram na energia solar distribuída combinaram painéis, armazenamento, mobilidade elétrica e redes digitais. Em algumas regiões, a energia solar em telhados já cobre praticamente toda a demanda no meio do dia, sem que isso comprometa a estabilidade do sistema.
O que o Brasil pode fazer neste momento
A partir dessas experiências e das análises de Delgado e Evangelista, é possível organizar as opções brasileiras de incentivo sem cair em extremos.
Um primeiro caminho seria reduzir o modelo de compensação, concedendo menos créditos na conta de luz para os donos de painéis solares – agora que esses equipamentos estão mais baratos e a energia fotovoltaica já responde por mais de 20% da nossa matriz elétrica.
Outro passo seria adotar preços diferentes. Tarifas com variação horária, afinal, criam espaço para baterias. Elas permitiriam “deslocar no tempo” a energia gerada, minimizando a curva do pato – e evitando o estorvo econômico dos cortes forçados de geração.
O Brasil não precisa escolher entre energia solar e estabilidade da rede. Precisa encontrar um modo de integrar a primeira sem sacrificar a segunda. Isso significa rever incentivos com cuidado e criar um ambiente de equilíbrio. Um ambiente que permita o crescimento da energia solar, mas sem empurrar a conta para quem menos pode pagar.
