Renault no divã: novos carros, Geely e o desafio de voltar a ser relevante no Brasil

Montadora francesa está refém das vendas diretas e há tempos não emplaca um sucesso de vendas ao consumidor final no Brasil

A Renault vive uma crise de identidade.

Em meio à reconfiguração global da indústria automotiva, marcada pela eletrificação e pelo avanço titânico das montadoras chinesas, a companhia tenta reencontrar seu lugar o sol. O plano passa por reconfigurar seu arco de alianças e renovar o portfólio.

No Brasil, a francesa conseguiu converter a fama de produtora de carros frágeis e caros em reputação de montadora que vende veículos populares, baratos e confiáveis. Não é pouca coisa, mas esses anos dourados ficaram para trás.

A Renault virou uma montadora especializada em vender para governos e locadoras, estratégia que garante volume, espreme margens e afasta o consumidor comum. O portfólio envelhecido e limitado tampouco ajuda a despertar o desejo de quem quer trocar de carro.

Agora, executivos, engenheiros e redes de concessionárias se movimentam para reverter anos de estagnação e prepararam o terreno para uma nova fase: a aliança com a chinesa Geely, o investimento em motorização híbrida-flex e a tentativa de reposicionar a marca são os principais pilares dessa tentativa de reinvenção.

Um desafio e tanto para o executivo argentino Ariel Montenegro, que acabou de se tornar CEO da subsidiária brasileira.

Em termos globais, caberá ao François Provost tocar o plano de transformação da Renault. O francês assumiu o cargo de CEO em julho, logo depois da Renault anunciar prejuízo líquido de 11,2 bilhões de euros no primeiro semestre deste ano, e chegou prometendo “disciplina de ferro” nas contas.

O InvestNews tentou falar com a Renault Brasil, mas a montadora não atendeu a reportagem.

Perdendo o embalo

A Renault, que chegou a disputar a quarta colocação no mercado nacional na década de 2010, agora figura em sexto lugar no ranking de vendas de 2025 – atrás de Fiat, Volks, GM, Toyota e Hyundai. As duas últimas, aliás, conseguiram ocupar parte do espaço que um dia foi da montadora francesa, sobretudo no segmento de compactos e SUVs de entrada.

Na lista que considera só os carros de passeio, a Renault perde também para Jeep, Honda e BYD.

Parte desse declínio está ligada ao perfil das vendas. De acordo com levantamento da consultoria Bright Consulting, 71% dos carros vendidos pela Renault no Brasil entre janeiro e julho deste ano foram emplacados por meio de vendas diretas — justamente aqueles negociados diretamente com empresas, locadoras ou órgãos públicos, sem passar pela rede tradicional de concessionárias.

Metade dessas vendas diretas tem como destino final as locadoras, um canal com margens mais apertadas e forte impacto no valor residual dos veículos. Esses modelos retornam ao mercado rapidamente como seminovos, derrubando os preços e deteriorando ainda mais a percepção de valor da marca entre consumidores de varejo.

Ao abrir mão da construção de imagem no varejo, a Renault acabou restringindo sua competitividade a uma lógica de preço, um terreno cada vez mais instável diante da crescente concorrência asiática e da fragmentação do mercado brasileiro.

Dizendo de outra forma, a marca perdeu prestígio.

A Renault, antes associada a carros robustos e acessíveis, deixou de ser atraente aos olhos do consumidor. “O cliente de varejo não está sendo cativado. Falta desejo de marca”, diz Cassio Pagliarini, ex-diretor de marketing da Renault e consultor da Bright Consulting. Ele resume o dilema: “Sem o consumidor de varejo, não há construção de marca. E sem marca forte, a margem desaparece.”

A tentativa de virar essa página começou com o SUV Kardian, carro projetado no Brasil e cujas vendas se iniciaram em março de 2024. O modelo foi anunciado sob o slogan “a mudança de que muda tudo”, ecoando a expectativa de que o Kardian reposicionasse a imagem da Renault e estabelecesse um novo patamar de qualidade percebida – mas isso ainda não aconteceu.

A lista dos carros de passeio mais vendidos ao varejo neste ano – ou seja, excluindo as vendas diretas – mostra que o Kardian é só o 24º mais escolhido pelos consumidores. Mesmo lá embaixo, é o Renault mais bem posicionado, e bem atrás dos concorrentes do seu segmento, como Tracker (5º), Nivus (8º), Pulse (13º) e Kicks (15º). Ele também vende menos que modelos chineses como Tiggo 7, Tiggo 8, Haval H6 e Dolphin Mini.

“O Kardian é um ótimo produto”, avalia Cassio Pagliarini. “Mas, para mudar esse cenário, precisaria vir acompanhado de reforço da rede de concessionárias, comunicação clara e uma proposta de valor que diferencie a marca.”

Agora, a Renault aposta no SUV Boreal, um modelo acima do Kardian e também fabricado na planta de São José dos Pinhais. A missão dele é bater de frente com Jeep Compass e Toyota Corolla Cross.

Kardian e Boreal foram construídos sobre a plataforma CMF-B — uma base modular desenvolvida globalmente pela aliança Renault-Nissan para dar suporte a diferentes tipos de motorização, incluindo versões híbridas. A proposta da arquitetura é reduzir custos e aumentar a eficiência produtiva ao compartilhar componentes e processos entre modelos distintos, e fazer isso em termos mundiais.

Foto: Bloomberg

A planta da Renault no Paraná também será aproveitada para a produção de modelos desenvolvidos em parceria com a chinesa Geely, dona da Volvo. A aliança entre as duas empresas é global e envolve o uso da plataforma SEA, que permitirá à Renault desenvolver SUVs elétricos e híbridos plug-in com tecnologia da Geely. A Renault cuidará da carroceria e a Geely será responsável pela arquitetura eletrônica e pela base mecânica.

Ao mesmo tempo, a rede de concessionárias da Renault servirá de base para a expansão da Geely no país, que estreia com 23 lojas em 19 cidades, muitas delas operadas por grupos que já representam a montadora francesa. A complementaridade de portfólios também faz parte da estratégia: enquanto a Renault atua no segmento de entrada com Kwid e Kardian, a Geely chega com modelos premium, caso do EX5 100% elétrico, com preços superiores a R$ 200 mil.

A construção da identidade

A trajetória da Renault no Brasil é marcada por um dilema de posicionamento. A empresa desembarcou oficialmente no país nos anos 1990, com a CAOA como importadora. Depois de instalar definitivamente sua subsidiária no país e assumir o controle da estratégia comercial, a Renault apostou em modelos como Scénic e Clio para ganhar mercado, mas os carros da empresa não emplacavam – mais caros que os concorrentes diretos, sofriam com a má fama de que os veículos franceses quebravam fácil, tinham manutenção cara e preço de revenda baixo.

A empresa encontrou seu caminho no Brasil com a adoção da linha Dacia. A montadora romena foi adquirida em 1999 e “emprestou” modelos como Logan, Sandero e Duster, decisivos para consolidar a imagem da marca como fabricante de carros acessíveis, robustos e espaçosos — ideais para as famílias de classe média daqui.

O auge veio entre 2019, quando a Renault chegou ao quarto lugar no ranking nacional, com 9% de participação e mais de 240 mil unidades vendidas por ano. Mas os carros envelheceram rápido diante da renovação de “cardápio” dos concorrentes e o sucesso da Renault Brasil não perdurou.

“Sandero, Logan e Duster tinham planos de 12 anos”, explica Cassio. “Você lança, faz um pequeno facelift em três anos, um re-skin em seis anos, mais um facelift pequeno em nove e só troca a plataforma quando chega aos 12″, detalha o ex-executivo da montadora. “Para um mercado que está mudando tanto, é tempo demais.”

O envelhecimento do portfólio, a queda da percepção de valor e a dependência das vendas diretas corroeram o vínculo com o consumidor final.

Agora, com um novo ciclo de produtos, alianças estratégicas e um plano claro de transição energética, a Renault tenta se reposicionar. Mas esse movimento exige consistência: comunicação, rede, pós-venda e — acima de tudo — produtos que despertem desejo. Como observa Pagliarini: “Um carro não vende só por ser bom. Ele precisa de rede, pós-venda, marketing, e uma história que engaje o consumidor.”

Entre sessões

A crise da Renault não começou no Brasil, mas foi catalisada por um brasileiro: em 2018, caiu Carlos Ghosn, seu executivo mais emblemático. Responsável por arquitetar a aliança Renault-Nissan-Mitsubishi, Ghosn também liderou a aquisição da Dacia e antecipou a eletrificação com o lançamento do Zoe, em 2012.

A Renault deixou de ser uma empresa estatal em 1996, e Carlos Ghosn teve papel fundamental na fase pós-privatização. Ainda hoje o governo francês tem 15% de participação da empresa.

Assim, a detenção de Ghosn no Japão, sob acusações de subnotificação de rendimentos e mau uso de ativos da empresa, abalou a governança e provocou turbulências internas. Sua posterior fuga cinematográfica para o Líbano foi amplamente divulgada e virou até série na Netflix.

Após a pandemia e uma série de prejuízos bilionários, a Renault se viu obrigada a reformular sua estratégia. Foi nesse cenário que Luca de Meo assumiu o comando global da empresa em 2020. Com passagens por Fiat e Volkswagen, o executivo lançou o plano “Renaulution”, baseado em três eixos: racionalização de custos, foco em rentabilidade e renovação da imagem da marca.

A Renault abandonou projetos de baixo retorno e priorizou margens sobre volumes. A aliança com a Nissan foi reestruturada: as duas empresas passaram a ter participações acionárias equivalentes (15%), e novos investimentos cruzados foram anunciados para a divisão de elétricos. Essa divisão, chamada Ampere, concentra os projetos de veículos elétricos e software — como o Mégane E-Tech, o novo Renault 5 e o Twingo elétrico feito para a Nissan.

A Ampere também lidera projetos de baterias com a coreana LG Energy Solution e a chinesa CATL, e tem papel estratégico no fornecimento de tecnologia para as marcas do grupo.

Também há outra divisão, a divisão Horse – formada com a Geely e participação da petroleira Saudi Aramco como investidora. Ela ficou responsável pelo desenvolvimento de motores híbridos e a combustão de alta eficiência. Essa aliança também inclui a Mercedes-Benz, que poderá usar a arquitetura da Horse em modelos futuros.

Essa nova arquitetura global tem reflexos diretos na América Latina, onde a Renault busca ser simultaneamente inovadora e acessível enquanto tenta aumentar as margens nas suas vendas. O mercado latino cresceu em importância desde 2022, quando a Renault precisou vender para o governo russo sua participação majoritária na AvtoVAZ, dona da Lada.

O negócio aconteceu devido às sanções ocidentais impostas à Rússia após a invasão da Ucrânia, e significou para a Renault a perda de um mercado importante. A saída da AvtoVAZ significou ainda o aumento da dependência do mercado europeu, de onde vem 70% do faturamento da Renault. Ou seja, a montadora tem muitos motivos para tentar “vencer de novo” na América Latina, principalmente na maior economia do continente.

A história da Renault no Brasil mostra que construir relevância leva tempo, mas perdê-la pode ser rápido. As mudanças de portfólio, a aliança com a Geely e a dança das cadeiras de executivos mostram que a Renault entendeu que precisa se mexer e reconstruir sua identidade, aqui e lá fora.

O futuro dirá se essa reconstrução vai se traduzir em carros que o consumidor realmente queira comprar.

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