Negócios
À sombra de trabalho escravo, vinícolas brasileiras têm faturamento recorde
207 trabalhadores foram resgatados em condições análogas à escravidão em Bento Gonçalves, no RS.
A mais antiga vinícola em atividade no Brasil e líder nacional em espumantes há 18 anos alcançou em 2022 o maior faturamento de toda sua história: R$ 500 milhões. A centenária Salton viu as receitas aumentarem 10% frente a 2021 – e a meta agora é atingir R$ 1 bilhão até 2030. No entanto, outras metas precisarão ser incorporadas aos planos da companhia, entre elas, a reputação da marca. A vinícola, assim como outras duas – Aurora e Garibaldi – estão envolvidas no caso que veio à tona sobre 207 trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão na capital brasileira da uva e do vinho, Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul.
Com cerca de 123 mil habitantes e localizada na Serra Gaúcha, a cidade, berço da vitivinicultura do Brasil, com cerca de 40 vinícolas cadastradas, recebeu 1,5 milhão de turistas em 2021 e 1,14 milhão nos oito meses de 2022, segundo a Secretaria Municipal de Turismo. Os dados englobam aqueles que fizeram a rota do Vale dos Vinhedos, que fica a 15 quilômetros do alojamento onde os trabalhadores foram encontrados em situação degradante pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), Polícia Federal (PF) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Condições análogas à escravidão
A ação conjunta foi feita após três trabalhadores fugirem do local e denunciarem o caso à PRF de Caxias do Sul. As 207 pessoas resgatadas saíram em sua maioria da Bahia para Bento Gonçalves com a promessa de um salário mensal de R$ 3 mil, além de acomodação e alimentação. Eles foram contratados por uma empresa que oferecia a mão de obra para a colheita das uvas – matéria-prima para a produção de vinhos – para Aurora, Salton, Garibaldi, além de produtores rurais da região.
Jornadas de trabalho de mais de 15 horas, precariedade do alojamento, violência física, oferta de alimentos estragados, choque elétrico e uso de spray de pimenta foram relatados pelos trabalhadores como meios adotados contra eles pela Fênix Serviços Administrativos – a empresa terceirizada pelas vinícolas. No entanto, as três produtoras de vinhos, espumantes e sucos negam que sabiam sobre a situação dos trabalhadores recrutados pela terceirizada.
Dois dias antes do caso ser denunciado para a Polícia Rodoviária Federal, o alojamento recebeu alvará de funcionamento da prefeitura de Bento Gonçalves. Os documentos foram divulgados no perfil da deputada estadual pelo PT do estado gaúcho, Laura Sito. Procurada, a assessoria de comunicação da capital do vinho não se pronunciou sobre o alvará.
Segundo Fabio Alperowhitch, especialista em ESG no Brasil, é inadmissível que empresas escondam-se atrás de suas cadeias de suprimentos “para fomentar práticas criminosas”.
É assim com o trabalho infantil na cadeia têxtil, é assim com o trabalho escravo análogo à escravidão no agro, têxtil e construção, é assim com o desmatamento ilegal na cadeia de carne, é assim com o garimpo ilegal na cadeia das jóias entre tantos outros exemplos”.
FABIO ALPEROWHITCH
Segundo o gestor do fundo ESG da Fama Investimentos, a responsabilização pela cadeia não é só uma prática ética como também deveria estar amparada por lei. “No caso das vinícolas em questão, estas faturam em conjunto cerca de R$ 2 bilhões por ano. Se quer dá para alegar a falta de estrutura fiscalizatória”.
Até a publicação desta matéria, o ministério Público do Trabalho não tinha retornado com pedido de posicionamento sobre a responsabilidade das vinícolas no caso.
Falta de mão de obra x assistencialismo
Segundo nota pública do Centro da Indústria, Comércio e Serviços (CIC) de Bento Gonçalves, a situação em que os trabalhadores foram encontrados têm relação com “um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”. Ou seja: a entidade relacionou a falta de mão de obra na região ao pagamento de benefícios sociais, como o Auxílio Brasil e o Bolsa Família.
“Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”.
Veja abaixo a nota do CIC na íntegra:
“Na condição de entidade fomentadora e defensora do desenvolvimento sustentável, ético e responsável dos negócios e empreendimentos econômicos, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves vem acompanhando com atenção o andamento das investigações acerca de denúncias de práticas análogas à escravidão no município. É necessário que as autoridades competentes cumpram seu papel fiscalizador e punitivo para com os responsáveis por tais práticas inaceitáveis.
Da mesma forma, é fundamental resguardar a idoneidade do setor vinícola, importantíssima força econômica de toda microrregião. É de entendimento comum que as vinícolas envolvidas no caso desconheciam as práticas da empresa prestadora do serviço sob investigação e jamais seriam coniventes com tal situação. São, todas elas, sabidamente, empresas com fundamental participação na comunidade e reconhecidas pela preocupação com o bem-estar de seus colaboradores/cooperativados por oferecerem muito boas condições de trabalho, inclusive igualmente estendidas a seus funcionários terceirizados. A elas, o CIC-BG reforça seu apoio e coloca-se à disposição para contribuir com a busca por soluções de melhoria na contratação do trabalho temporário e terceirizado.
Situações como esta, infelizmente, estão também relacionadas a um problema que há muito tempo vem sendo enfatizado e trabalhado pelo CIC-BG e Poder Público local: a falta de mão de obra e a necessidade de investir em projetos e iniciativas que permitam minimizar este grande problema. Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade.
É tempo de trabalhar em projetos e iniciativas que permitam suprir de forma adequada a carência de mão de obra, oferecendo às empresas de toda microrregião condições de pleno desenvolvimento dentro de seus já conceituados modelos de trabalho ético, responsável e sustentável.”
Quanto as vinícolas faturaram em 2022
A Salton registrou no ano passado faturamento histórico na casa dos R$ 500 milhões. Em todo 2022, foram comercializados:
- 24,5 milhões de garrafas (espumante, vinho e não alcoólicos)
- 17,8 milhões de garrafas de destilados
- Cerca de um milhão de garrafas exportadas para 30 países
- 96% dos espumantes brasileiros consumidos nos EUA (Wine Intelligence – 2021)
Mas a Aurora foi quem registrou o maior faturamento entre os pares: R$ 756 milhões – cifra recorde da vinícola em 2022. Atualmente, a empresa conta com mais de 1,1 mil famílias associadas e desenvolve um programa de capacitação para filhos de associados entre 14 a 24 anos para que permaneçam na viticultura.
A fabricante de vinhos sucos e espumantes Garibaldi reportou um faturamento mais modesto, de R$ 265 milhões, o que é 10% maior em relação ao registrado em 2021. As vendas internacionais foram responsáveis pelo montante de R$ 850 mil.
Pelo menos R$ 15 milhões foram aplicados em investimentos na Cooperativa Vinícola Garibaldi – 50% a mais do que em 2021. O complexo Enoturístico recebeu quase R$ 6 milhões.
O que dizem as empresas
Em nota oficial publicada no Instagram, a Salton lamentou o ocorrido e informou que não foi in loco averiguar as condições de moradia oferecidas aos trabalhadores pelo prestador de serviço Oliveira e Santana. “Foi um fato isolado na trajetória centenária da empresa, mas um ponto de melhoria que será endereçado com toda a seriedade e respeito que a situação exige”.
Entretanto, no manifesto ESG da companhia, a Salton se compromete em integrar os aspectos ambientais, sociais e de governança em todas as etapas do processo produtivo e junto aos diferentes stakeholders que formam sua cadeia de valor. “A sustentabilidade para a Salton é fundamentada em três pilares estratégicos: Produção Sustentável, Relacionamentos Prósperos e Governança ESG”.
A vinícola Aurora também se posicionou, em nota, dizendo que “não compactua com qualquer espécie de atividade considerada, legalmente, como análoga à escravidão e se solidariza com os trabalhadores contratados pela terceirizada Oliveira & Santana”.
A companhia disse ter se colocado à disposição das autoridades para quaisquer esclarecimentos e disse estar prestando apoio às vítimas.
A Garibaldi reportou em nota repudiar os acontecimentos e que foi com surpresa e indignação que soube do caso. A fabricante de bebidas também disse que contratou a empresa terceirizada para suprir a demanda pontual e específica do descarregamento de caminhões no período da safra da uva.
“Prontamente, a Cooperativa Vinícola Garibaldi encerrou o contrato de prestação de serviço e colocou-se integralmente à disposição das autoridades competentes para colaborar de todas as formas com as investigações necessárias”.
O administrador da Fênix Serviços Administrativos e Apoio a Gestão de Saúde LTDA, chegou a ser preso pela polícia, mas pagou fiança e foi solto.
Já os trabalhadores receberam parte das suas verbas rescisórias e foram enviados de volta para seu Estado natal em quatro ônibus fretados, com garantia de custeio da alimentação durante o trajeto, segundo o MPT. Apenas 12 dos resgatados permaneceram no Rio Grande do Sul por não terem manifestado interesse em retornar.
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