Cidadania portuguesa: Novas regras podem complicar a vida dos brasileiros

Mudanças na legislação aumentam prazos, impõem novos requisitos e dificultam o acesso à cidadania para famílias e quem já vive no país há anos

O governo português propôs recentemente uma reforma profunda nas leis de nacionalidade e imigração, com impacto direto sobre milhares de brasileiros residentes ou interessados em obter cidadania no país europeu.

As mudanças, ainda em discussão no Parlamento, já provocam uma corrida a consulados, advogados e cartórios, diante do receio de regras mais rígidas e restritivas serem aprovadas em breve.

Em entrevista ao InvestNews, o advogado e professor de pós-graduação em direito migratório, Wilson Bicalho, recomenda urgência a quem pretende solicitar a cidadania portuguesa por ascendência. “É necessário reunir a documentação o quanto antes, com especial atenção à linha sucessória, às certidões apostiladas e à coerência dos dados”, orienta o especialista.

O endurecimento das regras surge como resposta ao expressivo crescimento da população estrangeira em Portugal, que já ultrapassa 1,6 milhão de residentes — cerca de 15% da população total —, número que triplicou desde 2019, segundo a Agência para a Integração, Migração e Asilo de Portugal.

O Brasil detém a maior comunidade estrangeira do país, com pouco mais de 500 mil residentes. Mas o número de brasileiros que ainda buscam regularizar os documentos para viver legalmente em Portugal é expressivo. Segundo dados do governo português, até junho de 2025, foram analisados 73 mil pedidos de residência feitos por brasileiros — destes, cerca de 68 mil foram aprovados, enquanto 5.368 tiveram seus pedidos rejeitados e receberam notificação para deixar o país.

O governo justifica as mudanças como necessárias para garantir maior integração e controle migratório, especialmente após a flexibilização dos vistos para cidadãos da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), da qual o Brasil faz parte.

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O que vem por aí?

Entre as principais alterações está o aumento do tempo mínimo de residência legal exigido para solicitar a cidadania portuguesa. Para brasileiros e cidadãos da CPLP, o prazo passa de 5 para 7 anos; para estrangeiros de outros países, sobe para 10 anos; e, para apátridas, será de 4 anos. 

Além disso, a contagem desse tempo só começará a partir da emissão do título de residência, excluindo o período entre o pedido e a concessão, bem como o tempo passado em Portugal sob “manifestação de interesse”.

“Isso significa que muitos imigrantes que já vivem e contribuem em Portugal terão que recomeçar a contagem a partir do momento em que receberam efetivamente o título. Para quem já está com o processo iniciado e protocolado antes de 19 de junho de 2025, será aplicada a legislação anterior. No entanto, para quem ainda não formalizou o pedido, as novas regras — caso aprovadas — já serão aplicadas, mesmo que a pessoa viva há anos no país. Essa situação pode causar insegurança jurídica e frustração em quem já se considerava integrado à sociedade portuguesa.”, explica Bicalho.

As propostas também incluem a exigência de comprovação de conhecimento da língua portuguesa, cultura, sistema político e valores constitucionais, além da possibilidade de perda da nacionalidade para naturalizados condenados por crimes graves. 

O advogado Wilson Bicalho reforça que, embora as mudanças ainda dependam de aprovação parlamentar, o cenário exige cautela e agilidade de quem deseja garantir o direito à cidadania portuguesa ainda sob as regras atuais. Veja, a seguir, respostas do especialista às principais dúvidas sobre o tema:

1. Se a lei mudar durante o meu processo de pedido de cidadania, qual será o critério aplicado: a lei vigente no momento do pedido ou a nova legislação?

A regra proposta estabelece que será considerada a legislação vigente no momento em que o pedido for formalmente apresentado. Portanto, se o requerimento de nacionalidade tiver sido entregue antes da data-limite de 19 de junho de 2025, ele será analisado com base na lei antiga. Isso preserva, ao menos nesse ponto, o princípio da segurança jurídica, garantindo que mudanças legislativas não prejudiquem quem já estava em processo. O ponto de atenção, no entanto, está na exigência de que o pedido tenha sido efetivamente submetido — a mera preparação de documentos ou agendamento não basta.

2. O que acontece com os títulos de residência expirados e prorrogados por decreto? Eles continuam válidos para viagens ou apenas para permanência em Portugal?

Títulos prorrogados por decreto administrativo continuam válidos para efeitos internos, ou seja, garantem a permanência legal em Portugal, o direito ao trabalho, ao acesso à saúde e à renovação de contratos. Contudo, para efeitos externos — como viagens internacionais ou reentrada no espaço Schengen — a validade pode não ser reconhecida. Muitas autoridades fronteiriças e companhias aéreas exigem documentação atualizada com validade expressa. Por isso, quem depende desses títulos para circular internacionalmente pode enfrentar restrições mesmo estando legalizado dentro do país.

3. Com a nova proposta, os filhos de netos de portugueses ainda terão direito automático à cidadania portuguesa?

A nova proposta elimina a nacionalidade originária para netos de portugueses, o que muda completamente o regime de transmissão intergeracional. Antes, o neto que adquiria a nacionalidade era considerado português de origem, o que permitia aos seus filhos — os bisnetos — obterem a cidadania diretamente. Com a nova lei, os netos passam a ser naturalizados e, portanto, seus filhos não terão direito automático. Isso significa que cada geração terá que iniciar um novo processo, sujeito a requisitos mais rigorosos. Para famílias brasileiras que vinham planejando a obtenção da cidadania como um projeto familiar de longo prazo, essa mudança quebra a linha de continuidade e impõe a necessidade de reavaliação estratégica.

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4. Quais os prazos efetivos para solicitar a nacionalidade por residência? Como será contabilizado o tempo de residência legal?

A proposta diferencia os prazos conforme o perfil do requerente: apátridas precisarão de quatro anos de residência legal; cidadãos de países de língua portuguesa, sete anos; e todos os demais estrangeiros, dez anos. O critério essencial passa a ser o tempo efetivo de residência legal documentada. O tempo de espera por decisão sobre o pedido de residência, ou o tempo passado em Portugal sem título válido [mesmo que com manifestação de interesse], não será mais contado. Essa alteração penaliza quem aguardou de boa-fé durante meses ou anos a regularização por parte do Estado e exige mais planejamento dos imigrantes.

5. O que fazer se meu título de residência expirou e ainda não foi renovado? Existem alternativas jurídicas para garantir meus direitos?

Sim. Embora o título esteja formalmente vencido, a prorrogação automática por decreto mantém o estrangeiro em situação legal. Caso haja urgência ou risco de prejuízos — como perda de emprego ou dificuldades para sair do país — é possível recorrer judicialmente. Medidas cautelares, ações de intimação à Administração Pública ou mesmo reclamações ao Provedor de Justiça são instrumentos viáveis para garantir a proteção de direitos enquanto o processo de renovação não é concluído.

6. A nova proposta exige conhecimento da língua e da cultura portuguesas: como isso será comprovado?

A proposta exige, para a naturalização, comprovação de domínio da língua portuguesa, conhecimento básico da cultura, dos direitos e deveres constitucionais, além de uma declaração de adesão aos valores do Estado de Direito Democrático. Embora a obrigatoriedade esteja definida na proposta, os mecanismos de comprovação ainda dependem de regulamentação específica. Provavelmente, serão utilizados exames semelhantes aos atualmente exigidos para quem faz o processo de nacionalidade por tempo de residência.

7. Como a prorrogação dos títulos de residência afeta a emissão de documentos bancários, contratos de trabalho e acesso a serviços de saúde fora de Portugal?

Em Portugal, a prorrogação por decreto é válida para todos os fins legais. Porém, em contextos internacionais — como abertura de conta em bancos no exterior, viagens ou acesso a serviços consulares em outros países — o documento prorrogado pode não ser aceito. Internamente, também há casos em que instituições privadas, como seguradoras e operadoras de telecomunicação, questionam a validade desses títulos. Isso cria insegurança para o residente, mesmo que ele esteja protegido pela legislação portuguesa.

8. Se eu já iniciei o processo de nacionalidade, mas ainda não concluí, corro risco de perder direitos caso a lei mude antes da conclusão?

Não. A legislação proposta respeita a data de entrada do pedido. Assim, mesmo que o processo ainda esteja pendente de análise ou decisão final, se foi protocolado antes da entrada em vigor da nova lei, será julgado com base nas regras antigas. Essa previsão é essencial para manter a confiança no sistema jurídico e proteger o cidadão contra mudanças repentinas de critério.

9. Quais estratégias jurídicas podem ser adotadas para acelerar o processo de nacionalidade ou renovação de residência diante das mudanças e da morosidade administrativa?

A principal estratégia é provocar formalmente a Administração para que tome uma decisão dentro de prazo razoável. Caso isso não ocorra, é possível acionar o Judiciário, por meio de ações de intimação à Administração ou mandados de segurança administrativos. Também é recomendável registrar reclamações junto à Provedoria de Justiça e documentar todas as tentativas de contato e diligência. Além disso, em alguns casos é possível solicitar tratamento prioritário por motivo de idade, saúde, estudo ou interesse público relevante.

10. Como a nova lei afeta a nacionalidade de filhos de estrangeiros nascidos em Portugal? Eles ainda terão direito automático à cidadania portuguesa?

O regime anterior concedia automaticamente a nacionalidade portuguesa aos filhos de estrangeiros nascidos em território nacional, desde que um dos pais residisse em Portugal há pelo menos dois anos. A nova proposta elimina essa atribuição automática. Agora, exige-se que pelo menos um dos progenitores tenha residência legal há mais de três anos à data do nascimento, além da necessidade de uma declaração expressa dos pais. Ou seja, o acesso à cidadania deixa de ser direto e passa a depender de mais requisitos formais.

11. Quais são os riscos de perder a nacionalidade portuguesa em casos de crimes graves, segundo as nova proposta?

A proposta introduz a possibilidade de retirada da nacionalidade de pessoas naturalizadas que, nos primeiros dez anos após a aquisição, venham a ser condenadas por crimes graves. Isso inclui homicídio, terrorismo, tráfico internacional de drogas e crimes contra o Estado. A retirada dependerá de decisão judicial e levará em conta a gravidade do crime, o grau de inserção do indivíduo na sociedade portuguesa e outros fatores contextuais. Trata-se de uma medida polêmica, que exige equilíbrio entre a proteção da comunidade e o respeito aos direitos individuais.

12. Como a mudança da contagem do tempo de residência (a partir do título de residência e não do pedido) impacta quem já está aguardando o processo?

Essa é uma das mudanças mais sensíveis. Muitas pessoas vivem legalmente em Portugal há anos, mas ainda não possuem um título formalizado por atrasos administrativos. Com a nova regra, todo esse tempo “invisível” deixa de contar. Isso significa que, mesmo após anos de trabalho, estudo e integração no país, o imigrante poderá ter que recomeçar a contagem de zero a partir do momento em que o título for finalmente emitido. Isso representa uma quebra importante no princípio da boa-fé e na expectativa legítima de milhares de pessoas.

13. Existem recursos judiciais para quem enfrenta atrasos excessivos ou negativas indevidas nos processos de nacionalidade ou renovação de residência?

Sim. O ordenamento jurídico português prevê meios para contestar atrasos injustificados ou decisões administrativas ilegais. A pessoa pode, por exemplo, interpor uma ação administrativa de intimação para que a entidade pública decida o processo dentro de prazo razoável. Em caso de indeferimento, também há possibilidade de recorrer ao tribunal. Além disso, em situações urgentes, é possível solicitar medidas provisórias para resguardar direitos fundamentais, como permanência no país, acesso a saúde ou regularização profissional.

14. Qual é a recomendação para famílias que estão organizando a documentação para pedido de cidadania portuguesa por ascendência?

A orientação é clara: agir com urgência. Quem tem ascendência portuguesa deve reunir toda a documentação o quanto antes, com especial atenção à linha sucessória, às certidões apostiladas e à coerência dos dados. Sempre que possível, recomenda-se incluir os filhos menores no mesmo processo. Com as alterações, o direito dos descendentes diretos — especialmente os bisnetos — poderá ser significativamente restringido. Quanto mais demorar, mais difícil será garantir o acesso à cidadania no futuro.

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