A economia chinesa está em xeque, mas entender sua real situação ficou ainda mais difícil. O governo de Pequim parou de divulgar centenas de indicadores oficiais, entre eles dados de vendas de terras, investimentos estrangeiros, taxas de desemprego e até a produção de molho de soja. A medida tem levantado suspeitas sobre a real saúde da segunda maior economia do mundo — e gerado desconforto entre analistas e investidores globais.
Em muitos casos, não há justificativa oficial para a retirada dos dados. O que se sabe é que os cortes ocorreram em meio a uma série de dificuldades econômicas: excesso de endividamento, colapso no mercado imobiliário e impactos da guerra comercial com os Estados Unidos.
Falta de transparência
Essa falta de transparência reforça dúvidas sobre os números oficiais da China, como o PIB. O governo reportou crescimento de 5,2% em 2023 e 5% em 2024 — exatamente o que havia sido planejado.
Mas instituições como o Bank of Finland e a consultoria Capital Economics apontam que os dados reais podem ter ficado entre 2,4% e 3,7%, dependendo da metodologia.
Diante disso, economistas têm buscado fontes alternativas para medir o desempenho da economia chinesa, como consumo de energia, taxas de ocupação em academias e salões de beleza, movimentação via satélite e vendas de bilheteria de cinema.
A censura também atingiu dados sensíveis sobre a pandemia. O governo chinês parou de divulgar o número de cremações após encerrar sua política de Covid zero, o que impede uma estimativa clara do número de mortes. Dados sobre vacinação infantil, considerados termômetro demográfico, também sumiram.
Impacto no mercado financeiro
As dúvidas sobre os números do PIB da China não são novas — nem vêm apenas do Ocidente. Em 2007, o então premiê chinês Li Keqiang confidenciou ao embaixador dos EUA que os dados de crescimento econômico de sua província eram “fabricados” e, portanto, pouco confiáveis, segundo um telegrama diplomático vazado.
Ele dizia preferir acompanhar indicadores mais “reais”, como consumo de eletricidade, volume de cargas ferroviárias e novos empréstimos bancários.
Segundo Li (que morreu em outubro de 2023), os números oficiais do PIB serviam apenas como referência.
Agora, em 2024, o cenário se repete. O governo chinês divulgou crescimento de 5% no ano — exatamente a meta projetada anteriormente. Mas muitos economistas questionaram os dados, dizendo que seriam mais críveis se o número fosse menor. Indicadores como vendas no varejo e construção apontam para uma economia mais fraca.
Crescimento menor
Instituições como o Banco da Finlândia e a consultoria Capital Economics estimam que o PIB real teve oscilações bem maiores do que o sugerido pelos números oficiais — e, em geral, com crescimento menor do que o reportado por Pequim.
Em dezembro, o economista Gao Shanwen, da estatal chinesa SDIC Securities, foi ainda mais direto: afirmou em uma conferência em Washington que a China pode estar crescendo em torno de 2% nos últimos anos. “Na verdade, não sabemos qual é o número real”, disse ele.
A declaração teve consequências. Gao foi punido e proibido de falar publicamente por tempo indeterminado. Pouco depois, a Associação Chinesa de Corretoras alertou os economistas do país a “cumprirem um papel positivo” para reforçar a confiança dos investidores.
O órgão de estatísticas da China defendeu suas práticas, dizendo que vem aprimorando a qualidade dos dados e adotando medidas para garantir a precisão das informações.
Diante das dúvidas, bancos como o Goldman Sachs, passaram a desenvolver métodos alternativos para medir o crescimento chinês, como o uso de dados de importação (que funcionam como um termômetro indireto do consumo interno).
Segundo essa análise, o PIB chinês cresceu 3,7% em 2024. Já a consultoria Rhodium Group, com sede em Nova York, foi ainda mais conservadora e estimou um crescimento de apenas 2,4% no ano.
Estabilidade em Pequim?
Para o Partido Comunista Chinês, manter a aparência de estabilidade é prioridade — principalmente agora, em meio à crescente preocupação da classe média com o futuro do país e à escalada da rivalidade com os EUA.
Boa parte dos dados que desapareceram tem algo em comum: são sensíveis e envolvem áreas problemáticas para o governo, como o mercado imobiliário, cuja crise destruiu bilhões de dólares em patrimônio das famílias e motivou protestos de compradores insatisfeitos.
Durante os anos de bonança, construtoras chinesas compraram terrenos públicos a preços altíssimos, enchendo os cofres dos governos locais e alimentando os planos de expansão urbana — um dos motores da economia.
Mas o ciclo virou em 2021, quando Pequim restringiu o crédito ao setor. Com as vendas em queda e incorporadoras quebrando, o Instituto de Pesquisa Beike, ligado ao setor, divulgou um relatório em 2022 apontando que a taxa média de imóveis vazios em 28 cidades chinesas superava a de países como os EUA — um claro sinal de excesso de oferta.
O estudo ganhou repercussão porque o governo chinês não divulga uma taxa oficial de vacância. Poucos dias depois, o instituto retirou o relatório do ar e pediu desculpas, alegando “erros nos dados”. Mas analistas acreditam que a decisão veio sob pressão do governo.
Os dados oficiais também sumiram. O valor das vendas de terrenos, por exemplo, despencou 48% em 2022, criando um problema grave para governos locais endividados, que passaram a ter dificuldades até para pagar salários e tocar obras públicas. Essa série estatística foi retirada do ar no início de 2023.
Hoje, algumas empresas privadas ainda conseguem ter acesso a transações de terrenos usando registros públicos locais — mas o acesso não é mais simples nem padronizado.
Desemprego entre jovens
Outro tema sensível: o mercado de trabalho para jovens. Em meados de 2023, o desemprego entre recém-formados virou assunto recorrente nas redes sociais, com vídeos virais mostrando estudantes vestidos com becas de formatura deitados no chão, em protesto silencioso contra a falta de oportunidades.
Na época, a taxa oficial de desemprego entre jovens bateu 21,3% — a mais alta já registrada. Mas a economista Zhang Dandan, da Universidade de Pequim, foi além e estimou que o número real poderia chegar a 46,5%.
Em agosto de 2023, o governo chinês anunciou que deixaria de divulgar o dado, justificando que precisava revisar a metodologia de cálculo.
Cinco meses depois, Pequim reapareceu com uma nova versão da estatística. A nova taxa de desemprego juvenil foi fixada em 14,9%. Mas, para chegar a esse número, as autoridades simplesmente excluíram 62 milhões de estudantes universitários de tempo integral da conta — sob o argumento de que eles não deveriam ser considerados desempregados.
Para economistas, essa lógica não se sustenta, já que as normas internacionais consideram como desempregado qualquer pessoa que esteja procurando trabalho — mesmo que estude em tempo integral.
Fuga de investidores
Em abril de 2024, a bolsa chinesa balançava sob as crescentes preocupações econômicas. Em apenas duas semanas, investidores estrangeiros venderam mais de US$ 2 bilhões em ações chinesas, o que assustou ainda mais os investidores locais.
Diante da turbulência, as bolsas de Xangai e Shenzhen decidiram, sem aviso prévio, deixar de divulgar os dados em tempo real sobre entrada e saída de capital estrangeiro. A bolsa de Xangai alegou que estava apenas se alinhando com práticas de outros mercados internacionais — onde esse tipo de informação específica não é revelada em tempo real.
Após o apagão de dados em meados de maio, o principal índice da bolsa, o CSI 300, acumulou quatro meses seguidos de queda. O movimento só foi revertido em setembro, quando o governo anunciou um pacote de estímulos para tentar reaquecer a economia.
Só pela China continental
Hoje, alguns dados continuam acessíveis, mas ficaram mais difíceis de obter. Uma lei aprovada em 2021 determinou que certas informações — como registros empresariais e imagens de satélite — só poderiam ser acessadas a partir da China continental.
Em 2023, a provedora de dados Wind Information, uma das maiores do país, começou a limitar o acesso de usuários estrangeiros a dados como vendas do varejo online e registros de leilões de terrenos.
Um economista de um banco estrangeiro em Hong Kong contou ao Wall Street Journal que, desde então, passa fins de semana viajando até Shenzhen para conseguir baixar os dados.
Estatísticas sumiram
Outras estatísticas simplesmente desapareceram: saldos das dívidas de operadoras de pedágios no fim do ano, número de novos investidores na bolsa e até dados sobre cremações — interrompidos após o fim da rígida política de “Covid zero” no fim de 2022, que analistas estimam ter causado entre 1,3 milhão e 2,1 milhões de mortes. O governo também censurou discussões sobre o tema nas redes sociais.
A baixa taxa de natalidade virou um problema econômico sério — e os dados que a revelam também começaram a sumir.
Nos anos 2000, o economista Yi Fuxian passou a questionar os dados oficiais da população e sugeriu que as vacinas contra tuberculose, obrigatórias para recém-nascidos, eram um termômetro mais confiável do crescimento populacional.
Em 2020, foram aplicadas 5,4 milhões de doses da vacina, segundo o think tank chinês Forward Business and Intelligence. Naquele mesmo ano, o governo informou 12,1 milhões de nascimentos — um número bem acima.
Em 2021, as autoridades encerraram a divulgação semanal desses dados de vacinação, incluindo também outras estatísticas relacionadas a vacinas.
Alguns sumiços são simplesmente estranhos. Em 2022, o governo parou de divulgar a metragem dos banheiros de escolas primárias — e só voltou a publicar os dados em fevereiro deste ano.
Já os dados oficiais de produção de molho de soja desapareceram em maio de 2021 e nunca mais voltaram.