Com medo de deportação, consumidores hispânicos se escondem — e derrubam vendas de grandes marcas

75% dos hispânicos estão indo menos a restaurantes

A Coca-Cola há muito tempo aposta no crescimento de vendas através de consumidores hispânicos — um grupo que a empresa disse ter poder de compra anual de US$ 2,1 trilhões. Agora, ela e outras marcas estão descobrindo o que significa perdê-los.

O medo e a incerteza estão gerando mudanças no consumo. As deportações de imigrantes que vivem ilegalmente no país promovidas pelo governo Trump fizeram com que muitos latinos — incluindo os que estão legalmente no país — temam ser parados por oficiais da imigração.

Muitos consumidores dizem que estão se retirando da vida pública, renunciando às compras regulares e às refeições em restaurantes.

Além dos temores de deportação, a perda de empregos em setores como a construção deixou os hispânicos com menos dinheiro para gastar. E a inflação apertou seu orçamento mensal.

A questão ficou cada vez mais tensa depois que as batidas do Departamento de Imigração e Alfândega (ICE, na sigla em inglês) provocaram protestos em Los Angeles, levando o presidente Trump a enviar tropas da Guarda Nacional e fuzileiros navais para a cidade. Muitos manifestantes disseram que tinham familiares que estavam com medo de sair de casa porque não tinham documentação nos EUA. Desde então, os protestos se espalharam para outras cidades.

Em todos os EUA — e particularmente nos estados do sul com grandes populações hispânicas —, empresas de bens de consumo, fabricantes de alimentos e bebidas, restaurantes e varejistas estão sendo atingidos.

Aviso aos investidores

O volume de vendas da Coca-Cola na América do Norte caiu 3% no primeiro trimestre do ano, em parte devido à retração dos compradores hispânicos, disseram executivos da empresa. 

A Colgate-Palmolive, a Constellation Brands, cervejaria da Modelo, e cadeias de restaurantes Wingstop e El Pollo Loco disseram aos investidores nos últimos meses que uma diminuição nos gastos hispânicos está prejudicando suas vendas.

“Vimos um grande declínio no movimento”, disse Régis Schultz, CEO da JD Sports, em uma teleconferência com analistas em maio. A empresa é dona da rede de varejo Shoe Palace, que tem lojas em 12 estados e cujo maior alvo são os consumidores latinos. “Você consegue ver o impacto da política de imigração”, disse ele.

A Coca-Cola tem raízes profundas na comunidade hispânica e já está trabalhando para reconquistar alguns desses consumidores. Em maio, introduziu uma nova campanha de marketing em inglês e espanhol chamada “For Everyone”. É uma releitura de um conhecido anúncio batizado de “Para Todos” que a Coca-Cola lançou na Argentina há mais de duas décadas.

A Coca-Cola teve de lidar com os efeitos da inflação e um boicote com base em um boato nas redes sociais — mas para ela e outras empresas, trazer os consumidores para as lojas pode ser o maior desafio. 

Em lugares como Plum Grove, no Texas, cidade predominantemente latina a nordeste de Houston, onde não é incomum avistar um cavalo nos quintais adjacentes às estradas rurais, as batidas de imigração geraram medo generalizado, disseram moradores e lojistas. Os donos de lojas de conveniência disseram que veem regularmente agentes do ICE em seus estacionamentos, o que muitas vezes assusta os clientes. Alguns donos de lojas dizem que os pais enviam seus filhos nascidos nos EUA para comprar ovos, leite e outros itens essenciais.

Na vizinha Cleveland, no Texas, o tráfego de pedestres diminuiu na loja de conveniência Let’s Go Market. “As vendas caíram quase um terço em fevereiro e não se recuperaram totalmente”, disse o dono da loja, Dennis Kim. “Acho que é o medo.”

“A Coca-Cola é um dos produtos mais vendidos no Let’s Go Market”, disse ele. Na porta de vidro de uma geladeira, um adesivo diz “Com quem você vai compartilhar uma Coca-Cola?”, ao lado de uma foto de garrafas com os nomes Luis e Sofia. Uma sala refrigerada, ou “caverna da cerveja”, está repleta de caixas de Modelo Especial e Corona. A cerveja mais vendida da loja é a Modelo que vem em uma caixa com 12 unidades, disse Kim. Uma banca de limão para acompanhar as compras de cerveja fica perto do caixa. 

A Modelo, importada do México, ultrapassou a Bud Light em 2023, tornando-se a cerveja mais vendida dos EUA, mas suas vendas agora estão caindo. Cerca de metade dos clientes da Modelo nos EUA é hispânica, de acordo com a fabricante da cerveja, a Constellation Brands. 

“Faz diferença para nós se esse consumidor tem preocupações”, disse o executivo-chefe da Constellation, Bill Newlands.

As vendas de cerveja da Constellation para varejistas caíram 1% no último trimestre, a primeira queda desde que a empresa adquiriu os direitos das marcas Modelo, Corona e Pacifico nos EUA em 2013.

A Constellation começou recentemente a realizar estudos mensais para avaliar a situação dos compradores hispânicos, que também respondem por cerca de 30% das vendas da Corona.

Preocupação com inflação e repressão

Uma pesquisa no início deste ano descobriu que os consumidores hispânicos estavam preocupados com a inflação e a repressão à imigração. Cerca de 75% dos consumidores hispânicos disseram que estavam indo a restaurantes com menos frequência, segundo uma pesquisa mais recente da empresa. Também mostrou que estavam participando de menos reuniões sociais onde a cerveja era servida. 

“Em geral, os consumidores estão um pouco cautelosos”, disse Newlands em uma conferência de investidores este mês. “Isso é duas vezes pior no caso dos consumidores hispânicos.”

A Constellation pode considerar uma campanha de marketing para o final do ano se os gastos dos hispânicos não se recuperarem, disseram os distribuidores.

A Boston Beer atribuiu a desaceleração do crescimento das vendas de suas bebidas Twisted Tea parcialmente a um declínio nas compras hispânicas. Ela continua a comercializar a marca por meio de influenciadores das redes sociais, colocando anúncios em espanhol em espaços públicos e promovendo a parceria do Twisted Tea com a promotora de lutas de boxe Top Rank, que é popular entre os latinos.

O fundador da Boston Beer, Jim Koch, disse que se preocupa com o fato de não haver muito o que sua empresa possa fazer no curto prazo para resolver o problema. “Não sei e suspeito que não haja uma boa resposta”, disse Koch.

A força dos hispânicos

Os laços da Coca-Cola com os consumidores hispânicos se estendem até a América Latina, que é um reduto da marca. Suas latas vermelhas clássicas são onipresentes no México e em outros países da América Latina.

Os latino-americanos que imigram para os EUA geralmente trazem consigo sua dedicação à marca. A Coca-Cola mexicana feita com açúcar de cana em vez de xarope de milho com alto teor de frutose é amplamente vendidas nos EUA. 

Os hispânicos representam quase uma em cada cinco pessoas nos EUA e um em cada quatro consumidores da Geração Z, com um PIB equivalente ao da Itália, de acordo com uma pesquisa que a Coca-Cola postou no ano passado em um site criado para compartilhar percepções do consumidor com seus parceiros de varejo e restaurantes.

Um relatório do ano passado da empresa de pesquisa de mercado Circana mostrou que as famílias hispânicas superaram as não hispânicas no crescimento das vendas ao consumidor.

Antes da retração dos compradores hispânicos, a Coca-Cola já enfrentava problemas com o fato de que a inflação nos últimos anos havia pressionado os orçamentos domésticos de muitos consumidores de refrigerante. No ano passado, a Coca-Cola começou a oferecer novos tamanhos de embalagens para consumidores que procuram preços mais baixos.

Então, começaram a circular vídeos nas redes sociais alegando que a empresa havia pedido ao ICE que ajudasse a remover os trabalhadores que viviam ilegalmente no país. A Coca-Cola chamou as alegações de “inequivocamente falsas”. Mesmo assim, um boicote se iniciou, e no TikTok as pessoas compartilharam vídeos de si mesmas nos corredores das lojas, passando pela Coca-Cola e pegando uma Pepsi. “Infelizmente, a desinformação é um fato da vida digital”, disse o chefe financeiro da Coca-Cola, John Murphy, em uma entrevista. 

No final de maio, proprietários de lojas de conveniência em bairros latinos ao redor de Houston disseram que o boicote à Coca-Cola ainda estava afetando as vendas da marca, mas elas estavam começando a se recuperar. 

Hispânicos ficam mais em casa

Para alguns lojistas, as táticas do ICE tiveram um efeito assustador. Stephen Miller, um dos principais assessores da Casa Branca e arquiteto da agenda de imigração do presidente, instruiu os funcionários do ICE a atacar a Home Depot, onde os trabalhadores diaristas normalmente se reúnem para arrumar um bico, ou as lojas de conveniência 7-Eleven, informou o The Wall Street Journal.

Os compradores hispânicos reduziram as visitas às lojas físicas mais do que os não hispânicos no primeiro trimestre do ano, em relação a 2024, de acordo com um relatório da empresa de pesquisa de mercado Kantar. 

A Walgreens experimentou um declínio de 10,5 pontos percentuais entre os compradores hispânicos no primeiro trimestre, enquanto a Home Depot teve uma queda de 8,7 pontos percentuais e a Dollar General uma queda de 6,1 pontos percentuais, de acordo com o relatório.

A parcela de compradores hispânicos que fizeram compras em lojas físicas caiu para 53% no primeiro trimestre deste ano, de 62% no quarto trimestre de 2024, enquanto a parcela que fez compras on-line aumentou de 51% para 58%, disse o relatório da Kantar.

Manuel Marchant, gerente de TI de 34 anos de uma concessionária de carros em Davie, na Flórida, disse que, apesar de ser um cidadão naturalizado dos EUA, não sai mais à noite se puder evitar. Contou que ele e sua esposa pararam de ir a bons restaurantes — que costumavam frequentar cerca de duas vezes por semana — e sempre tem consigo cópias de seu passaporte e dos documentos de cidadania. “Fico preocupado com a possibilidade de ser parado”, disse Marchant.

Reação dos varejistas

Os varejistas estão tentando atrair de volta os compradores hispânicos com promoções — dando 50% de desconto na compra de um segundo item e até fazendo promoção na carne de porco para pratos latinos específicos, disse Dave Marcotte, vice-presidente sênior de consultoria estratégica da Kantar. 

Isabel Aguilar, que tem 47 anos e mora em Houston, não tem residência legal. Ela disse que mudou seus hábitos de compra — evitando lugares como o Walmart que vem tendo uma alta presença policial. Ela tem medo de ir trabalhar, mas não pode se dar ao luxo de não o fazer. Em uma barraca no Houston Farmers Market, em um bairro predominantemente hispânico, ela vende ervas, pimentas secas e produtos cerâmicos importados do México. Agora, os frequentadores do mercado costumam dar só “uma olhadinha” em vez de comprar, disse ela.

“As pessoas não querem gastar porque têm medo. Elas preferem manter seu dinheiro para o caso de haver deportações”, disse Aguilar.

Aguilar disse que muitos de seus clientes estão evitando a Coca-Cola devido ao boicote e pedindo a Pepsi. Alguns sugeriram que sua barraca parasse de vender Coca-Cola.

Mudança de hábito

Os latinos de classe média nascidos nos EUA também estão alterando seus hábitos de consumo. Carlos Jimenez, gerente de programa de uma agência federal em Albuquerque, no Novo México, e pai de três filhos, disse que ele e sua esposa cortaram gastos de várias maneiras. Ganhando US$ 76 mil anuais como o único ganha-pão da família, Jimenez teme perder o emprego em uma rodada de demissões no governo.

O casal, que possui um carro, estava pensando em comprar o segundo, mas decidiu esperar. Eles cortaram as férias e agora buscam entretenimento familiar em eventos locais gratuitos. Em vez de comprar roupas para seus filhos no shopping, estão comprando em brechós. “Estamos tentando esticar nossos dólares o máximo”, disse Jimenez.

No supermercado, Jimenez e sua esposa compram menos carne vermelha e mais frango. Para economizar, pararam de comprar Coca-Cola, Coca-Cola Zero e Coca-Cola Cereja. Em vez disso, bebem o refrigerante de marca própria da Kroger ou do Walmart. 

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