Não me vejo tanto como um jornalista automotivo, que escreve sobre carros, mas como um coordenador de intimidade. Quatro em cada cinco lares americanos dependem de um automóvel para trabalhar, levar as crianças à escola, ir aonde for. O motorista típico passa cerca de uma hora por dia no carro — mais tempo de convivência do que muitos de nós têm com a própria família. Um bom relacionamento começa com uma boa combinação.
Ultimamente, no entanto, os americanos têm perdido esse amor pelos carros. Na verdade, estão na fase de jogar pratos na parede. As vendas de veículos leves caem em 1,7 milhão por ano desde 2016, refletindo o número crescente de consumidores jovens que dispensam os prazeres da posse. Milhões permanecem presos em relacionamentos tóxicos com veículos velhos e abusivos. A idade média dos carros nas ruas hoje é de 14,5 anos, segundo dados da S&P Global.
A maioria das reclamações é sobre dinheiro. O custo médio para possuir e operar um carro chegou a assustadores US$ 12,3 mil (R$ 67,6 mil) por ano em 2024, 30% mais alto do que uma década atrás. Pesando nesses números estão os preços de veículos novos, agora com média de US$ 48,8 mil (R$ 268 mil), segundo dados recentes da Cox Automotive. Com compradores de renda média sendo excluídos do mercado de carros novos, a demanda por usados aumentou, com preços médios ao redor de US$ 25,5 mil (R$ 140 mil).
Pode jogar o prato, vai te fazer bem.
Entre os maiores estressores: o seguro. Relatório anual da Lexis-Nexis Risk Solutions mostrou que os custos médios de seguro subiram 10% em 2024, após uma alta de 15% em 2023. As apólices de cobertura completa agora custam em média US$ 2,7 mil (R$ 14,7 mil) por ano, 12% acima de junho de 2024, segundo o Bankrate.
E nem mencione depreciação. Em 2024, a AAA (Associação Americana do Automóvel) calculou que o veículo novo médio perde um doloroso US$ 4,7 mil (R$ 25,7 mil) por ano em valor nos primeiros cinco anos. A Edmunds informou que, no último trimestre de 2024, um em cada quatro consumidores estava com financiamento “underwater” — devendo mais do que o valor de mercado do veículo.
O aumento no custo da mobilidade pessoal está estourando orçamentos. Milhares de famílias enfrentam a perspectiva de serem forçadas a abandonar os carros e cair numa espécie de cidadania de segunda classe. O que vamos dizer a uma geração de trabalhadores que está indo à falência só para chegar ao trabalho? “Pegue um dos novos e ótimos trens dos EUA”?
Não é só sobre dinheiro. É sobre confiança. As dúvidas começam com a crescente complexidade dos carros novos: motores híbridos turboalimentados e plug-in, telas digitais no lugar de botões físicos e sistemas avançados de segurança. Quem já teve um laptop sabe questionar a vida útil de tecnologias assim.
“Por quanto tempo os fabricantes vão fornecer módulos e software para carros mais antigos?”, pergunta Tom Wilkinson, ex-funcionário da GM que vive em Michigan. No futuro, os carros podem vir com um tempo de vida útil pré-definido, talvez “10 anos ou 240 mil km”, disse ele. “Depois disso, a montadora simplesmente inutilizaria o carro, se não por outro motivo, para evitar décadas de responsabilidade…”
As toneladas de plástico sob os capôs dos carros novos não são muito animadoras. No início dos anos 2000, as montadoras aumentaram o uso de componentes plásticos moldados por injeção: mais leves, recicláveis e baratos que o metal.
Nas últimas duas décadas, os fabricantes encheram os motores com bombas d’água de plástico, carcaças de filtro de óleo, radiadores e mangueiras. De 2012 a 2021, a quantidade média de plástico nos carros aumentou 16%, chegando a 186 kg (411 libras), segundo o American Chemistry Council.
Infelizmente, até os plásticos mais resistentes se degradam com o calor diário sob o capô. Questão de tempo para saber quem vai pagar. Em 2021, a BMW fechou um acordo judicial por falhas de motor ligadas à fragilidade de componentes plásticos da corrente de comando. Em 2022, o Grupo Volkswagen fez um acordo parecido por causa de bombas d’água plásticas.
Uma das práticas mais detestadas atualmente é o uso de correias dentadas úmidas. Essas correias de borracha reforçada sincronizam o comando de válvulas com o virabrequim e ficam parcialmente imersas no óleo quente do motor.
A vida útil de uma correia úmida é parecida com a de uma corrente metálica, mas antes de arrebentarem, elas se desgastam e espalham resíduos de borracha no sistema de lubrificação. Se esse lixo entupir a captação de óleo, pode destruir o motor.
Pra piorar (e encarecer), essas peças de vida limitada costumam ser montadas em locais de difícil acesso, o que aumenta horas de trabalho na oficina. Na sabedoria seca das oficinas: engenheiros odeiam mecânicos.
“O mecanismo que quebrou no meu Ford Escape, que direciona o ar quente ou frio no ar-condicionado, é de plástico”, disse David Francis Kiley, produtor e editor em Michigan. “O custo pra consertar foi mais de US$ 2 mil (R$ 11 mil) porque os gênios da Ford enterraram a peça atrás de todo o painel, sem acesso fácil.”
Oferecer valor ao cliente, disse o porta-voz da Ford, Mike Levine, “exige equilíbrio nos processos de engenharia e manufatura. Otimizamos entre uma montagem eficiente — que influencia diretamente o preço inicial — e a reparabilidade, para minimizar o custo total de propriedade ao longo do tempo.”
Com os custos de reparo aumentando mais de 43% em seis anos, segundo o Bureau of Labor Statistics, o limite para um carro ser considerado “não vale a pena consertar” é fácil de atingir. O custo médio de um único reparo foi de US$ 838 (R$ 4.609) em 2024, segundo a Cox Automotive.
“Os carros viraram itens descartáveis porque as montadoras querem que seja assim”, disse Eric Evarts, professor de inglês do ensino médio em Danbury, Connecticut. Ele destacou a luta das montadoras contra leis de direito ao conserto, que obrigariam os fabricantes a disponibilizar ferramentas, códigos e peças para donos de carros e oficinas independentes.
Muitas das frustrações atuais vêm de boas intenções. Veja o caso do reparo após colisões.
O custo de consertar carros batidos subiu 28% desde 2021, segundo o Bureau of Labor Statistics. A indústria de reparo culpa o preço das peças de reposição, a falta de técnicos treinados e a crescente complexidade dos veículos novos. Especialmente os sistemas avançados de assistência ao motorista (ADAS).
Criada para reduzir acidentes, a tecnologia ADAS — com funções como manutenção automática de faixa, controle de cruzeiro dinâmico e frenagem de emergência — depende de câmeras, sensores e transmissores embutidos em para-choques, grades e para-brisas. Sensores ultrassônicos de estacionamento são especialmente vulneráveis.
Na era do ADAS, não existe mais “pequeno amassado de para-choque”.
“Meu BMW X5 2013 bateu na traseira de um carro pequeno e o dano parecia leve”, disse Tom Walken, psicólogo de Raleigh, Carolina do Norte. “Mas a eletrônica na frente elevou o custo do reparo para mais de 75% do valor do carro, o que pela lei da Carolina do Norte exigiu que ele fosse dado como perda total.” (A BMW não comentou.)
Milhões de consumidores conscientes pagaram preços altos para dirigir carros elétricos. E continuam pagando. Companhias de seguro hesitam em cobrir reparos que envolvam baterias ou sistemas relacionados. Os elementos estruturais de alumínio fundido dos Teslas — os chamados “gigacastings” — são leves, compactos e resistentes. Mas, quando danificados, muitas vezes não podem ser reparados, apenas substituídos, com muita dificuldade.
Ano passado, a Edmunds teve problemas com a picape Tesla Cybertruck em sua frota de testes. Enquanto estava estacionada em West Hollywood, o caminhão de aço foi atingido por um sedã pequeno. O Tesla foi considerado perda total. O orçamento do conserto — incluindo US$ 4,3 mil (R$ 23,5 mil) por um novo conjunto estrutural traseiro e US$ 16,5 (R$ 91 mil) de mão de obra — somou US$ 57,9 mil (R$ 318 mil). A Edmunds vendeu o Cybertruck por US$ 8 mil (R$ 44 mil) para uma empresa de salvamento.
O custo de restaurar carros modernos, somado à depreciação rápida, manda milhares de veículos funcionalmente íntegros, mas levemente danificados, para os ferro-velhos todos os meses. Em 2018, peritos deram perda total em 19% dos veículos avaliados — quase um em cada cinco sinistros (LexisNexis). Em 2023, o número subiu para 27%, um em cada quatro.
Não é de se estranhar que os americanos estejam tendo crises de abandono.
Minha opinião: se a mobilidade automotiva quiser continuar como traço definidor da sociedade americana, algo precisa mudar. E essa mudança será o fim da gasolina. Todos esses custos crescentes estão ligados a uma disrupção maior: a eletrificação dos veículos.
Apesar dos tropeços da Tesla, as vendas de elétricos subiram globalmente de novo em 2024. A indústria chegou ao ponto em que agora é, nominalmente, mais barato construir um elétrico do que um carro a combustão equivalente. À medida que o custo de armazenamento de energia (baterias) continua a cair, as vantagens dos elétricos só vão aumentar. Não há mudança de regra ou regulação que vá tornar os veículos a combustão competitivos novamente.
A tecnologia dos elétricos ainda não é perfeita. Mas a dos carros a combustão já chegou ao seu limite.
Minha sugestão: aceite e siga em frente, América. Deixe o passado para trás. Você não tem nada a perder — além das suas correntes de comando.