Economia
Eleição polarizada e democracia: há limites a respeitar, diz Humberto Dantas
Cientista político explica por que a polarização não é necessariamente um problema.
Polarização política pode não representar, necessariamente, um problema para o funcionamento da democracia. Mas, para isso, é preciso que sejam respeitados alguns limites. A análise é do cientista político Humberto Dantas, diretor do Movimento Voto Consciente.
“Não é ruim, é histórico, é comum nas democracias, mas o que precisa ser conservado aqui são os limites da ordem e da Lei”, disse ele em entrevista ao InvestNews, citando por exemplo limites para garantir a convivência entre ideias diferentes. “Feito isso, as pessoas vão ficar livres para se concentrarem nas extremidades ou olharem mais para o centro e fazerem suas escolhas e suas opções.”
Ainda falando sobre a democracia, Dantas também comentou exemplos de riscos que podem atingir essa forma de governo. “Se eu, em nome de uma suposta e falaciosa liberdade ilimitada de expressão, passo a atacar as pessoas com as quais eu vivo e a desrespeitá-las na sua diversidade ou na nossa diversidade, eu tenho aqui facilmente um bom exemplo de afronta, desafio ou ameaça à lógica democrática.”
Outro tema da entrevista foi o impacto que a corrupção pode ter sobre a lógica democrática e ao próprio processo eleitoral. “A sociedade tem que se afastar de maneira absoluta da ideia de que uma eleição é um tribunal”, disse Dantas.
“Quando eu escolho este ou aquele candidato, esta ou aquela candidata, eu não estou dando nenhum tipo de sentença de incriminação ou inocência para esses indivíduos. Isso é papel da Justiça. Por isso, é tão ruim quando a gente constrói um debate eleitoral em torno de ‘quem é mais ou quem é menos corrupto’”, defende o cientista.
A ideia é que, em vez de “tribunal”, uma eleição deve ser vista como uma espécie de “‘concurso’ em que as pessoas escolhem as melhores ideias, os melhores planos, os melhores programas de governo”.
Dantas é doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de pós-graduação em ciência política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP). Veja abaixo os principais trechos da entrevista:
IN$ – Primeiro de tudo, o que é democracia? Como podemos defini-la?
Dantas: Democracia é uma lógica ou uma forma de governo em que as pessoas, conjuntamente, dentro de um conjunto de regras, limites e leis pactuadas, constroem suas regras, suas leis e seus limites. Portanto, algo que nos permita viver em sociedade num sentido plural a partir do objetivo de construção conjunta da realidade, respeitando limites estabelecidos conjuntamente. É algo nosso, por nós e para nós, respeitando os limites construídos por nós.
IN$: E o que é o risco à democracia? Quando se pode dizer que há sinal de ameaça à democracia e quando não há?
Dantas: São vários os riscos que existem à democracia. Existem riscos de natureza histórica, más interpretações em relação à História, de más interpretações em relação a valores. Então, a democracia tem que ser vista, compreendida, percebida e vivenciada como um valor cotidiano, como um valor presente na vida das pessoas. Por exemplo: se eu deixo de respeitar algum desses valores e passo a acreditar unilateralmente em aspectos que transcendem o combinado entre nós, para a nossa vida em sociedade, eu posso dizer que existe risco à democracia.
Eu também posso desacreditar a política, eu também posso sentir que a Justiça não pune ou não é minimamente equilibrada no que diz respeito à sua capacidade de punir exageros. Então, existe uma série de aspectos gerais que podem, em alguma medida, ameaçar a democracia.
Hoje, atualmente, um bom exemplo de ameaça à democracia é confusão que as pessoas fazem entre uma suposta, falsa, falaciosa, perigosa liberdade ilimitada de expressão e a capacidade extraordinária que todos nós devemos ter de entender que existem limites às expressões individuais e, principalmente, que, dentro desses limites, existe uma necessidade absoluta de respeito os semelhantes que, neste caso, normalmente são diferentes.
Se eu, em nome de uma suposta e falaciosa liberdade ilimitada de expressão, passo a atacar as pessoas com as quais eu vivo e a desrespeitá-las na sua diversidade ou na nossa diversidade, eu tenho aqui facilmente um bom exemplo de afronta, desafio ou ameaça à lógica democrática.
IN$ – Um dos pilares da defesa da democracia é a Constituição. A Constituição de 1988 é suficiente para defender a democracia hoje, em sua opinião, ou seria necessária alguma reformulação?
Dantas: Se nós crêssemos de maneira absoluta na letra da Lei e na força da Lei e tivéssemos organismos de Justiça minimamente capazes de dar estabilidade jurídica às relações entre as pessoas dentro da sociedade, seria absolutamente possível afirmar que a Constituição Federal da República Federativa do Brasil dá conta tranquilamente de parte expressiva dos parâmetros daquilo que se entende e demanda em termos democráticos.
A questão é que nós afrontamos a lógica constitucional nos seus princípios enquanto cidadãos e cidadãs. Nós exageramos, passamos por cima, atropelamos, interpretamos de formas equivocadas no nosso cotidiano. E, infelizmente, não temos organismos de Justiça por vezes capazes de colocarem de maneira equilibrada nesses conflitos e nessas afrontas a ponto de fazer com que a gente restabeleça ou tente manter o estabelecimento da ordem. E isso é muito desafiador.
Agora, a Constituição, de maneira fria, a letra da Lei, aquilo que está escrito, é muito valioso para uma sociedade democrática. Ou seja, a Constituição da República Federativa do Brasil, no que diz respeito ao desenho dos parâmetros básicos para o funcionamento da democracia, em tese, é o suficiente para a gente ter a garantia da democracia. Agora, o que a gente faz dela e como a gente atua politicamente, por vezes enquanto sociedade e muitas vezes individualmente, aí são desafios dos mais significativos – que demandam, inclusive uma atuação mais equilibrada da nossa Justiça.
IN$ – Como a corrupção interfere no sistema democrático?
Dantas: De maneira significativa, mas também de uma forma mais ampla em relação àquilo que nós estamos acostumados a enxergar como democracia.
(…) A lógica de escolha de representantes em ambientes democráticos é parte do que nós entendemos por democracia. Uma parte muito importante, a qual as pessoas por vezes não associam é: para uma democracia funcionar de maneira plena, ou de maneira minimamente equilibrada, nós precisamos ter organismos de Justiça que garantam o cumprimento das leis, desde que, obviamente, em termos democráticos, essas leis tenham sido constituídas e construídas democraticamente.
Portanto, o funcionamento equilibrado da Justiça, uma lógica minimamente capaz de fazer com que as pessoas sintam quais são os limites, como elas serão punidas, o que pode e o que não pode etc, a ponto de chegarmos inclusive no debate sobre a corrupção, isso precisa existir e passa longe ou minimamente distante do voto.
Agora, todos já ouviram falar daquela velha frase: ‘fui inocentado pelo mais nobre dos tribunais numa democracia, que são as urnas, portanto não sou corrupto porque o povo me quis’. Meu Deus do céu! A sociedade tem que e afastar de maneira absoluta da ideia de que uma eleição é um tribunal e de que os candidatos e candidatas estão sendo julgados no que diz respeito à quantidade de vezes que transcenderam a lei e cometeram crimes. Não. Uma eleição é um “concurso” em que as pessoas escolhem as melhores ideias, os melhores planos, os melhores programas de governo, os melhores ideais para a nossa vida em sociedade em termos ideológicos, em termos de funcionamento de políticas públicas etc.
Isso passa muito longe da capacidade e da necessidade de existir essa capacidade jurídica de punir ou não punir políticos em termos daquilo que fizeram ou deixaram de fazer em termos de corrupção. Não é papel do cidadão. Isso é papel da Justiça.
Portanto, quando eu escolho este ou aquele candidato, esta ou aquela candidata, eu não estou dando nenhum tipo de sentença de incriminação ou inocência, coisas nessa natureza, para esses indivíduos. Isso é papel da Justiça. Por isso, é tão ruim quando a gente constrói um debate eleitoral em torno de ‘quem é mais ou quem é menos corrupto’.
Qualquer ato de corrupção deveria ser punido pela Justiça. E quis a sociedade que pessoas condenadas pela Justiça não pudessem participar das eleições por uma lógica da lei de iniciativa popular chamada Lei da Ficha Limpa.
Então, a eleição, a lógica democrática, passa muito além do ambiente associado ao aspecto da corrupção, e esse aspecto da corrupção, democraticamente construído no que diz respeito ao seu desenho, precisa ser punido ou não pela Justiça. E quanto mais a Justiça for estável, maior a sensação que nós, enquanto eleitores, teremos de que poderemos promover as melhores escolhas, olhar para os melhores partidos, discutir as melhores propostas para as políticas públicas, o que passa longe de ficar dizendo se esse é inocente, aquele é culpado e coisas dessa natureza.
IN$ – Muito tem se falado sobre polarização política, especialmente em período eleitoral. Quando a polarização faz parte da lógica democrática e quando se torna um problema?
Dantas: A polarização em si, na letra da palavra, na lógica, ela não é tão ruim. Mas eu não posso escapar dos limites daquilo que está estabelecido entre nós em termos democráticos como limites à nossa convivência.
Eu não estou aqui para avaliar se o Lula está na esquerda extrema – e eu particularmente acho que não está – e também não estou aqui para avaliar se o Bolsonaro está na direita extrema – e eu acho que ele está muito mais perto ou muito além das extremidades da direita do que o Lula está à esquerda. Mas isso é uma percepção, uma posição, uma possível análise, que deve respeitar todas as demais posições, análises e reflexões. O objetivo aqui não é criar problemas, o objetivo aqui é tentar responder perguntas.
Então, suponhamos que nós tenhamos votos concentrados naquilo que, em tese, as pessoas entendem que sejam polos opostos. Qual o problema disso? Em termos democráticos, nenhum.
Nós tivemos isso em 89 (Lula e Collor), nós tivemos isso em 94 e 98 (Lula e Fernando Henrique, com Fernando Henrique ganhando em primeiro turno nas duas vezes), nós tivemos isso entre Lula e Serra em 2022, entre Lula e Alckmin em 2006, entre Dilma e Serra em 2010, entre Dilma e Aécio em 2014 e entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad em 2018. O que eu não posso é extrapolar o limite, sair fora da linha.
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O importante é destacar que existem eleições mais próximas, eleições mais polarizadas e mais distantes. Hoje nós temos uma eleição polarizada, distante, em que a gente pode aqui discutir se alguém já ultrapassou os limites razoáveis da lógica dos limites da direita ou dos limites da esquerda. Eu acho que a gente não precisa ficar tentando encontrar razão para isso, isso vai muito da avaliação das pessoas em geral.
Mas uma coisa que é importante dizer: hoje, Lula e Bolsonaro, nas pesquisas recentes divulgadas, têm algo entre 75% e 80% do desejo de voto do brasileiro concentrado nesses dois nomes que são figuras que estão em lugares diferentes, em polos opostos, ou pelo menos faixas distintas considerando a existência de um meio de campo ou de uma linha divisória de esquerda e direita e coisas dessa natureza.
Não é ruim, é histórico, é comum nas democracias, mas o que precisa ser conservado aqui são os limites da ordem e da Lei. Feito isso, as pessoas vão ficar livres para se concentrarem nas extremidades ou olharem mais para o centro e fazerem suas escolhas e suas opções.
IN$: Qual o impacto que discussões políticas mal embasadas possam ter para um país, inclusive para o seu desenvolvimento?
Dantas: Vai desde sair do grupo de WhatsApp da família até ter uma lógica ou uma dinâmica de intolerância que faça com que as pessoas comecem a desmerecer e desacreditar, e querer romper aspectos políticos basilares em termos democráticos.
Isso quer dizer, vai de gestos agressivos em primeira pessoa, em brigas de pessoas que se conhecem e se gostam, trabalham juntas, se admiravam e tiveram qualquer tipo de problema, enfim…e criaram por assim dizer a “treta política” até algo infinitamente mais complexo no que diz respeito ao funcionamento de uma sociedade democrática, que é a existência em larga escala de padrões de intolerância e desrespeitos que nos coloquem em situações delicadas e perigosas em termos de funcionamento da democracia.
Por exemplo, não respeitar e não aceitar o resultado de uma eleição, não concordar com aquilo que está posto no que diz direito à vontade popular, desmerecer as regras e os instrumentos gerais da democracia e coisas desse tipo. Com isso, nós não podemos concordar.
IN$: Em um país tão desigual quanto o Brasil, de que forma a justiça social dialoga com esse debate sobre a democracia?
Dantas: A desigualdade social é muito desafiadora para a democracia. Se conecta a uma lógica de corromper o sistema, se compromete com uma lógica de compreendermos efetivamente o que significa o direito de escolha dos indivíduos por vezes em situações absolutamente extremas do ponto de vista da sobrevivência. E aí a gente debate, discute, pensa, reflete desafios da democracia, coisas que existem na realidade brasileira, como compra de voto, uma série de subversões basilares da lógica das eleições, ameaças e coisas desse tipo.
Porque é uma sociedade desigual em vários sentidos. É desigual do ponto de vista do acesso a recursos, é desigual do ponto de vista econômico, é desigual do ponto de vista de uma série de direitos sociais básicos. É desigual no que diz respeito a acesso ao conhecimento, acesso à informação.
E isso vai se aprofundando no imenso caldo de desigualdades que nos faz pensar no quanto nós ainda temos para construir em termos democráticos para que construíssemos minimamente uma condição de igualdade para que as pessoas pudessem tomar as suas decisões. E para quem pudessem compreender de forma mais complexa o grau das nossas diferenças e que, obviamente, essas diferenças se expressam na forma como nós escolhemos, os partidos que nós preferimos, nas ideologias que nós temos à disposição de nós e desejamos e em qual intensidade, mais à direita ou mais à esquerda, nem tanto à direita ou nem tanto à esquerda, no centro e coisas dessa natureza.
Quer dizer: a gente precisa arrefecer todo esse caldo de desigualdades para que definitivamente as pessoas se sintam minimamente capazes de compreender, na sua complexidade, e diante das suas leituras de mundo, aquilo que lhes parece lhes parece melhor em termos de realidade, com base no voto, no acompanhamento dos eleitos, na possibilidade de se fazer uma oposição minimamente equilibrada, responsável, mas também crítica, intensa dentro dos limites da regra e coisas dessa natureza.
IN$: O brasileiro em geral está preparado para o exercício da democracia?
Dantas: Em termos formais, olhando para como a gente forma os nossos indivíduos nas escolas, que tipo de informação nós damos aos nossos jovens, que tipo de informação nós, que já temos mais idade, tiramos das escolas quando frequentamos, em termos políticos formais, se somos capazes de entender o sistema eleitoral brasileiro, o sistema majoritário, a lógica proporcional, para que servem os poderes, para que servem as organizações onde estão sitiados os nossos representantes, como eles fazem, quais são suas responsabilidades, talvez a gente ainda esteja muito, muito distante disso.
Nós temos severas dificuldades para entender principalmente o papel do Legislativo, dos partidos políticos, os limites associados à atuação dos órgãos de Justiça e, por vezes, mesmo temos dificuldade de compreender o papel do poder Executivo, a quem, muitos cidadãos emprestam interpretações muito mais condizentes com semideuses, imperadores, autocratas etc, do que indivíduos que têm que ser minimamente dotados de sensibilidade política, capacidade de articulação, capacidade de negociação (e eu não estou aqui falando de corrupção e coisas dessa natureza), construção conjunta, validação de um plano (lembremos, por exemplo, que uma eleição é um grande ‘concurso’ de planos apresentados à sociedade).
Então, que sirva de desafio a todo instante, a democracia é algo que exige cuidado, exige reparo, exige que a gente esteja sempre atento e, mais do que tudo isso, exige conhecimento e capacidade de interpretarmos aquilo que temos à nossa disposição, traduzindo isso como direitos políticos fundamentais para o acesso a tantos outros direitos, seja no que diz respeito a novas conquistas, a mudanças ou a validação e aprimoramento das políticas públicas existentes. Eu acho que esse é o grande desafio.
E a gente espera todo ano que a gente amadureça mais um pouco, por mais que, por vezes, a gente fique com a sensação de que retrocedeu. Mas também por vezes a gente fica com a sensação de que andou um pouquinho para frente. É um exercício de fôlego, de longo prazo, e a gente espera sempre poder contribuir para aprimorar isso da melhor maneira possível.
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