Finanças
Herança: quem fica com o quê na ausência de um testamento
Veja por que Huguinho, Zezinho e Luizinho não veriam o dinheiro do Tio Patinhas. E como um testamento pode ajudar na hora da sucessão
Warren Buffett e Bill Gates já disseram algumas vezes que não vão deixar seus bilhões e bilhões para os filhos – só uma fração disso. Steve Jobs, que morreu em 2012, foi mais longe: não contemplou dois de seus filhos com sua herança.
Se esses bilionários fossem brasileiros, não rolaria. Pela legislação, mesmo que exista um testamento, 50% de tudo que uma pessoa tem deve ser obrigatoriamente destinado aos chamados “herdeiros necessários”. São eles: descendentes (filhos, netos e bisnetos), ascendentes (pais e avós) e cônjuge.
A outra metade da herança é a chamada de “disponível” no jargão jurídico. Essa, sim, pode ser doada para qualquer pessoa – ou entidade, como uma ONG –, desde que especificado em testamento (mais sobre isso adiante).
Seja a parte disponível do bolo, seja a totalidade, a ordem para a distribuição da sua herança é a seguinte:
1º) Descendentes
Filhos são os herdeiros prioritários, claro. Caso um deles já tenha morrido, os netos que ele gerou para você ficam com a parte que caberia a esse filho.
2º) Ascendentes
Se você não tiver deixado descendentes, seus pais ganham direito a uma parte da herança. Vamos dizer que o pai tenha morrido. A parte dele vai para a mãe. Na ausência dos dois, com avós vivos, esses ascendentes ficam com o espólio. Mas estamos falando aqui num cenário sem marido ou esposa – tema do item 3.
3º) Cônjuge
Sua outra metade fica com toda a sua herança caso não haja ascendentes ou descendentes. Se houver, o cônjuge entra como “concorrente”, no jargão jurídico.
Para deixar mais claro, vamos imaginar que você é casado em comunhão parcial de bens e teve dois filhos.
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A comunhão parcial é o modelo mais comum – que entra automaticamente em casos de união estável. Nesse regime, os bens que você juntou quando era solteiro, seguem só seus. Já o que tiver entrado depois da união estável, metade é do cônjuge.
Vamos dizer que, na vida de solteiro, você comprou um apartamento. Então, já vivendo com o “conge”, comprou outro.
Aí você morre.
Como fica a divisão do espólio? 50% do apartamento adquirido durante o casamento (ou união estável) ficam com o cônjuge. Nesse caso, ele não é um herdeiro. É um “meeeiro”, no jargão.
Já os outros 50% do apartamento, que lhe cabiam sob o regime de comunhão parcial, vão ser divididos entre os seus filhos.
Mas, ei, e o apartamento que você tinha comprado quando era solteiro? Opa. Ali não tem meeiro. Ele é algo que os advogados chamam de “bem particular”.
O cônjuge, nesse caso, fica sem nada, então? Não: ele entra como um dos herdeiros – “concorrendo” com seus dois filhos.
Em suma, o apartamento que era “bem particular” será dividido em três partes iguais: 33,3% para um filho, 33,3% para o outro e 33,3% para o cônjuge.
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Agora: se você for sozinho no mundo, sem ascendentes, descendentes nem cônjuge, quem leva a bolada são os “herdeiros colaterais” até o quarto grau: irmãos (que representam o segundo grau); tios e sobrinhos (terceiro grau); sobrinhos-netos, tios-avós e primos (quarto grau). Nessa ordem.
Para clarificar o “nessa ordem”. Quando Tio Patinhas morrer, Pato Donald, seu sobrinho, terá uma parte da herança. Huguinho, Zezinho e Luizinho, sobrinhos de Donald, ficarão sem nada. Como sobrinhos-netos, eles só teriam direito se nem Donald nem nenhum outro sobrinho de Patinhas (Gastão, Peninha) estivesse no meio do caminho sucessório. Como eles estão, Huguinho e seus irmãos perdem o direito.
E o trio talvez não ganhe acesso à herança do próprio Donald. A relação do pato com Margarida pode constituir união estável. Aí entra uma companheira na jogada – “herdeira necessária”. Como Huguinho, Zezinho e Luizinho são apenas sobrinhos de Donald, não filhos, Margarida leva tudo.
Caso Donald não tivesse nem Margarida nem os sobrinhos (nem primos, nem tios-avós, que entrariam na fila caso Huguinho, Zezinho e Luizinho não existissem), o dinheiro iria para a prefeitura de Patópolis. É que, no nosso mundo, vai justamente para o município num caso assim.
A não ser, claro, que você tenha feito um testamento. E seja qual for a sua situação é bem provável que esse documento faça cumprir a sua vontade de forma mais completa do que a Lei. Vamos a ele.
Testamento: a hora dos pingos nos is
Para começar, um testamento ajuda a incluir parentes que, pela força da Lei, não teriam acesso ao seu espólio. Como fez um empresário de São Paulo, de 40 anos, que preferiu não se identificar: “Como eu tenho uma filha, minha mãe não teria direito a nada. Por isso coloquei que metade do meu patrimônio será destinado a ela no meu falecimento”.
Aqui, vale lembrar, a filha era a herdeira necessária – aquela classe para a qual pelo menos 50% do patrimônio deve ficar reservado. Como ela é descendente (filha) toma o lugar da ascendente (mãe). O testamento, nesse caso, colocou os pingos nos is, fazendo a vontade do dono do patrimônio.
Outra vantagem do testamento é que você pode evitar dores de cabeça na hora da partilha dos seus bens, fazendo as vezes de um administrador post-mortem. Vamos dizer que você tenha seis filhos e que eles sejam seus únicos herdeiros. Você possui seis imóveis, todos do mesmo valor (simplificando ao máximo). Ok.
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Sem testamento, os seis serão automaticamente donos, cada um, de um sexto de cada propriedade. Algo inviável – só daria para vender ou alugar alguma delas com a anuência de todos.
O normal, num caso assim, são os herdeiros combinarem como será a partilha – quem fica com cada imóvel.
Mas se todos preferirem a casa da praia, e não estiverem dispostos a tirar no palitinho, já complica. “É muito comum que o inventário se alongue não por entraves burocráticos, mas pela falta de acordo quanto à partilha”, diz Fabio Cury, advogado do Urbano Vitalino.
Um testamento tira esse problema da frente. Mas ele também pode criar outros. Se você quiser, pode deixar metade de seu patrimônio para um filho só. E ele ainda entraria na partilha dos 50% restantes com os outros herdeiros, pois é o que a Lei exige.
Bom, o testamento pode ser feito por um advogado, e o custo para elaborar um vai depender da complexidade, ou seja, da quantidade de herdeiros e de bens envolvidos. Um escritório pode cobrar entre R$ 15 mil e R$ 30 mil. Mas a Lei também permite que o testador (você) redija um testamento, leve a um cartório (Tabelionato de Notas) e faça o registro do testamento por conta própria – serão necessárias duas testemunhas. Na cidade de São Paulo, o custo fica em R$ 2,3 mil. Em casos complexos, de qualquer forma, é recomendável a contratação de um advogado especialista.
O documento pode incluir tudo que você tem – imóveis, carros, jóias, mobília –, e dá para fazer de forma genérica ou específica. No modelo genérico, o dono do patrimônio direciona um percentual ou fração para um familiar, mas sem citar que tipo de bem ele vai receber. “Já na forma específica, eu faço um testamento dizendo, por exemplo, que meu fusca antigo vai para um amigo meu de infância”, explica Eduardo Silvano, advogado do escritório BMDP.
Quem faz o testamento também pode nomear um tutor ou curador especial para fazer a administração dos bens de menores ou incapazes.
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O testamento pode ser anulado?
Por mais que ele seja um documento reconhecido judicialmente, nada está escrito na pedra. Há situações que podem levar à anulação pela Justiça. É o caso de testamentos elaborados em nome de um casal, por exemplo. “O testamento é um ato personalíssimo, cada um tem o seu. Você faz o seu e o seu cônjuge faz outro”, diz Silvano.
De acordo com o advogado, outra situação comum é a de familiares questionarem a saúde mental do familiar na data da elaboração do testamento. Por isso, o especialista recomenda se precaver. “Quando uma pessoa já tem uma certa idade ou algum problema de saúde, é interessante ter um prontuário de um médico que ateste sua plena capacidade civil”. Nesse caso, fica muito mais difícil contestar a validade do documento.
Feito o testamento, enfim, só resta torcer para que se passem muitos e muitos anos até que os advogados precisem tirá-lo da gaveta.
Agradecimento: Rafael Stuppiello, advogado da área de planejamento patrimonial e sucessório do Machado Meyer Advogados.
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