O receio se volta aos grupos mais endividados, claro. Especialistas do mercado de crédito consultadas pelo InvestNews citam companhias como Simpar, CSN e Raízen entre as mais vulneráveis ao cenário de Selic no maior nível em 19 anos, que torna mais cara a rolagem das dívidas.
O que se chama de “desconto” é, na prática, um aumento da taxa paga acima do CDI, o chamado spread. Quanto maior o desconto/spread, maior o grau de preocupação embutido nos preços.
Para quem investe significa o seguinte: os papéis de dívida passam a render mais, pois você paga menos por eles para receber o mesmo tanto lá na frente, quando a empresa quitar suas debêntures. Mas não existe banquete grátis. A oportunidade de ganhar mais investindo menos só existe porque o risco de essas empresa não terem condições de pagar as debêntures é maior do que a média – ao menos na visão do mercado.
E existe um efeito bola de neve. Se a desconfiança do mercado escalar, o custo do financiamento pode ficar alto demais para a companhia se financiar. Esse tipo de estrangulamento financeiro, no limite, pode levar empresas a pedir na Justiça proteção contra credores e, eventualmente, a entrar em recuperação judicial. Nesses casos, quem investiu nas debêntures certamente amargará uma perda (mais sobre isso adiante).
Isso não vale só para quem compra títulos de dívida no site da corretora. Boa parte dos fundos de investimento têm debêntures na carteira. Se os títulos de dívida que o fundo comprou perdem valor, o saldo desses fundos cai. O impacto aí é menor, já que os fundos distribuem seus ovos em muitas cestas. Mas pode existir.
As debêntures da Raízen, a joint venture de açúcar e etanol controlada pela Shell e pelo conglomerado Cosan, por exemplo, estão sendo negociadas com descontos de até 22% no mercado secundário (onde acontecem as compras e vendas de títulos de dívida todos os dias). Esse deságio é calculado em relação a quanto o título “deveria” valer se você simplesmente carregasse até o vencimento mantendo a taxa original.
A Raízen tem sentido os efeitos do barulho gerado pela Ambipar, que pediu proteção na Justiça contra credores, e pela Braskem, que buscou uma consultoria para estudar a reestruturação de suas dívidas.
Esses casos acenderam um sinal de alerta entre investidores em relação a outras empresas vistas como fragilizadas financeiramente. Como resultado, os bonds, que são títulos de dívida em dólar emitidos no mercado internacional, e as debêntures do grupo passaram a ser negociados com descontos ainda maiores.
O momento dos títulos pode ter sido agravado pelas iniciativas da Ambipar e da Braskem. Mas faz tempo que o endividamento do grupo gera preocupação – e desvalorização dos títulos. A Raízen registrou uma dívida líquida de R$ 49 bilhões no fim do segundo trimestre, com um salto de 56% frente ao ano anterior. A empresa queimou R$ 7 bilhões (US$ 1,3 bilhão) de caixa entre abril e junho. A Raízen passa por um processo de venda de ativos, como usinas de etanol e outros negócios, para reduzir a dívida.
As debêntures de empresas do grupo Simpar, como a JSL, a Vamos e a Movida, aparecem com descontos de até 20%. No caso das empresas do grupo, as debêntures se referem a títulos atrelados ao IPCA que pagam um spread, ou seja, um percentual além da inflação, chamado de juro real. Esses papéis mais longos costumam ser mais sensíveis à variação de títulos públicos semelhantes, o Tesouro IPCA+, e do juro real. Os papéis mais longos costumam oscilar na marcação a mercado conforme diversas variáveis, como o cenário macroeconômico e até o impacto de fatores externos.
Os papeis que pagam CDI mais o spread de controladas da Simpar tem sido negociados com descontos menores, de menos de 2%. De qualquer modo, analistas apontam para questões específicas do grupo no curto prazo. Além do endividamento elevado após um período de aquisições em série, a Simpar tem um montante significativo de dívidas vencendo no curto prazo: são aproximadamente R$ 4,8 bilhões só neste ano. Com o aumento do prêmio pedido pelos investidores, a companhia acaba pagando mais caro para captar recursos e rolar a dívida.
Já as debêntures da CSN têm sido vendidas no secundário por preços até 20% menores em relação ao valor original. A siderúrgica enfrenta um cenário complexo que combina endividamento elevado, custo de financiamento mais alto e a concorrência do aço chinês.
Na lista de empresas que têm debêntures negociadas com descontos vultosos aparecem várias gigantes. A Light, por exemplo, teve o plano de recuperação judicial aprovado pelos credores em maio de 2024 e tem papéis com deságio entre 65% e 70%. Já a Oncoclínicas está implementando um plano de reestruturação financeira devido a uma dívida líquida de R$ 3,9 bilhões. Os títulos aparecem no secundário com descontos de 40%, em média.
A fabricante de equipamentos para geração eólica Aegis é outra companhia que costuma aparecer na lista de empresas sob forte pressão financeira, com uma dívida de R$ 1,4 bilhão. Em meio a uma crise no segmento, a empresa tem buscado a renegociação com credores. Os preços das debêntures no secundário indicam essa dificuldade: os papéis têm sido negociados com descontos entre 60% e 80%.
A Rumo, empresa de logística que faz parte do grupo Cosan, também enfrenta certa desconfiança de investidores. As debêntures foram vendidas no início da semana com deságio de cerca de 20%. Os títulos da própria Cosan também aparecem no secundário com descontos de 15%, em meio a um processo de reestruturação interna vivenciado pelo conglomerado – qualquer coisa acima de 10% já indica um certo pé atrás do mercado.
A relação de companhias com descontos de dois dígitos inclui ainda Eneva, Kora Saúde, Localiza, Neoenergia, BRK Ambiental, Grupo Pão de Açúcar, EDP, Engie, Eletropaulo, Equatorial e outras.
Já as debêntures de Ambipar e Braskem ainda que, oficialmente, não tenham solicitado a RJ, têm sido vendidas por investidores que querem se desfazer deles antes dos vencimentos, com descontos elevados, de 90% e 66%, respectivamente.
Debenturistas escaldados
As preocupações de investidores em relação a potenciais eventos de crédito não são infundadas. Isso porque a aprovação de uma recuperação judicial significa prejuízo para os detentores de títulos de dívida sem garantias, como as debêntures.
Em caso de RJ, debêntures e bonds fazem parte das obrigações que entram no processo de renegociação e têm a cobrança suspensa durante a execução do plano. Em geral, as condições de repactuação impõem grandes cortes de pagamentos aos credores, o chamado “haircut“. São descontos que podem atingir 90% do valor original.
“A performance dos fundos de crédito não incentivado em geral foi impactada por remarcações negativas de Braskem e Ambipar”, afirmou a gestora Sparta em sua carta de gestão de crédito privado.
Casos recentes de RJs que prejudicaram detentores de debêntures:
Americanas — a RJ foi deferida em 19 de janeiro de 2023. O plano prevê descontos entre 50% e 93% para os credores, incluindo debenturistas.
Light — a RJ foi aprovada em 15 de maio de 2023. A dívida de debêntures representava R$ 7 bilhões ou 64% do total. Os credores ainda estão em negociações, com opções de descontos 60% em leilão reverso ou 20%, para credores que aceitarem trocar por novos títulos.
Unigel — após tentativa de recuperação extrajudicial em 2024, a Justiça aceitou o pedido de RJ em outubro de 2025. Os debenturistas respondem por 11% da dívida, cerca de R$ 400 milhões. O desconto inicial proposto foi de 80%.
Cervejaria Petrópolis — a RJ foi ajuizada em 27 de março de 2023. A dívida com debenturistas alcançava cerca de R$ 2 bilhões. Há uma proposta de deságio de 70%.
Oi — teve um segundo plano aprovado em abril de 2024 e aditamentos discutidos em 2025. Em maio deste ano, a dívida com debêntures representava 12% do total ou quase R$ 700 milhões.