Frete grátis, robôs e farmácia: o contra-ataque do Mercado Livre após o avanço da concorrência

Disputa do varejo online ficou mais acirrada e fez até a líder de mercado sair da zona de conforto

Publicidade

Mundo afora, se alguém perguntar a um estrangeiro em que site ele faz compras online, a resposta mais comum provavelmente será Amazon. Plataformas asiáticas também devem aparecer na lista. Mas, se a pergunta for feita a um latino-americano – em especial um brasileiro – é bem possível que um dos primeiros nomes lembrados seja o do Mercado Livre.

Criado em agosto de 1999, na Argentina, por Marcos Galperin, o Meli começou a operar naquele mesmo ano no Brasil e em outros países da América Latina. De lá para cá, teve de superar a desconfiança de parte dos consumidores, que viam o site como um lugar de produtos falsos, sem nota fiscal ou até de anúncios que nem existiam. A pandemia foi o empurrão que faltava: com as lojas fechadas, o brasileiro aprendeu a comprar online – e não desaprendeu mais.

Segundo levantamento do Morgan Stanley, a penetração do varejo online no Brasil era de cerca de 7% em 2019. Hoje, passa dos 14%, mas ainda está longe dos 21% da média global, ou dos níveis de mercados mais maduros, como os EUA (25,6%) ou a China (29,5%). Nas contas do próprio Mercado Livre, essa penetração deve chegar a 21,5% em 2028. Palpite que não pode ser ignorado: afinal, é o dono de 40% das vendas do e-commerce brasileiro quem está dizendo.

Mas nem isso garante um reinado tranquilo. Especialmente nos últimos dois anos, a concorrência ficou mais acirrada, especialmente pelo apetite das plataformas asiáticas e também da Amazon, que até hoje não conseguiu replicar no Brasil a força que tem mundo afora. E daí foram diversos de centros de distribuição da Shopee e da Amazon recém-inaugurados e muitas ações promocionais na estreante Temu.

O Meli teve de sair da zona de conforto e colocar suas armas na mesa, como mais investimento em logística, em tecnologia e inteligência de dados e muito marketing, com direito Ronaldo Fenômeno e Neymar como garotos-propaganda. Tudo isso, num negócio em que cada centavo de frete e minuto a menos de entrega pesam na decisão de compra.

Do reinado à reação

O domínio do Mercado Livre foi construído em torno de um ecossistema de quatro frentes — marketplace, logística, fintech e publicidade — que giram como um flywheel e se retroalimentam. Segundo levantamento da Euromonitor encomendado pelo Meli, 5,8 milhões de pequenas e médias empresas usam a plataforma, movimentando quase R$ 400 bilhões por ano, o equivalente a 3,2% do PIB brasileiro.

“O Mercado Livre é um pilar estrutural da digitalização no Brasil, ao mesmo tempo em que gera inclusão produtiva, emprego e crédito para milhões de negócios”, definem os analistas do BTG Pactual em relatório sobre o estudo.

O Meli também usa o Mercado Pago como alavanca para fidelizar clientes e aumentar o tempo de permanência no ecossistema. A fintech já responde por um volume transacionado de mais de US$ 64 bilhões no trimestre, somando pagamentos dentro e fora da plataforma. Além de intermediar compras, oferece crédito — muitas vezes o primeiro da vida de pequenos empreendedores —, cartões, conta digital e maquininhas de pagamento. Quanto mais o usuário adota o Mercado Pago para pagar contas, receber vendas ou antecipar recebíveis, maior a chance de seguir comprando e vendendo dentro do Meli.

A força do grupo se reflete na operação brasileira: o país responde por 52% da receita global e viu o GMV, sigla em inglês para vendas brutas totais das mercadorias, crescer 29% no segundo trimestre. A companhia construiu uma malha logística inédita na região, com 26 centros de distribuição (serão 27 ao fim do ano), 8 aviões, centenas de hubs e cross-dockings e quase 5 mil pontos de coleta. O cliente pode devolver um produto em mais de 15 mil locais, incluindo papelarias e agências dos Correios, e receber dinheiro de volta. Tudo sem ter uma loja própria, o que muitos dos varejistas brasileiros gostam de contar como vantagem.

O resultado é uma experiência difícil de replicar: 56% dos pedidos chegam em até 24 horas e, no estado de São Paulo, o índice sobe para 73%. Em algumas regiões, o Meli já consegue entregar no mesmo dia, estendendo o horário de corte até o fim da tarde.

Publicidade

Foi para proteger esse ecossistema que a companhia decidiu reagir de forma agressiva em 2025. Shopee, Amazon, TikTok Shop e Temu aumentaram a pressão: a Shopee cresce entre 60% e 70% ao ano e elevou seu tíquete médio; a Amazon colocou US$ 25 milhões na Rappi para integrar logística e Prime; o TikTok Shop já vende mais de US$ 1 milhão por dia no Brasil, com forte apelo em beleza e moda; e a Temu começa a testar o mercado com preços subsidiados.

Diante desse cerco, o Mercado Livre baixou de R$ 79 para R$ 19 o valor mínimo para frete grátis — uma jogada ousada que fez o crescimento de vendas ganhar mais musculatura. Na comparação com o trimestre de 2024, o crescimento foi de 26%, mas se comparados apenas os meses de junho em 2024 e em 2025, o volume de vendas cresceu 34%, refletindo o efeito da redução do pedido mínimo para frete grátis.

A decisão, porém, não foi apenas para ganhar participação: ela também trouxe ganhos de eficiência, segundo Fernando Yunes, que lidera da operação do grupo no Brasil. Com mais pedidos sendo processados, os CDs passaram a operar com menos ociosidade — inclusive às sextas-feiras, que eram mais vazias — e os caminhões saem mais cheios, diluindo o custo de transporte por pacote e tornando a operação mais produtiva.

“Sacrificamos margem para capturar crescimento. Acreditamos que o ganho de escala e o engajamento de novos clientes vão gerar um negócio mais saudável no longo prazo”, disse a analistas o CFO Martin de los Santos na teleconferência de resultados do segundo trimestre.

Diversificação, robótica e o preço da liderança

Para sustentar esse novo patamar de volume, o Meli vem acelerando sua transformação logística. Primeiro vieram os robôs de movimentação de estantes, que levam as prateleiras até os operadores e reduzem deslocamentos. Agora, a companhia estreou uma segunda geração de automação: os robôs de separação, que consolidam pedidos de múltiplos itens. A empresa não divulga o montante de investimento na tecnologia, mas ela faz parte do pacote de R$ 34 bilhões que o Mercado Livre comprometeu neste ano.

Essa tecnologia reduz em até 25% o ciclo de processamento, economiza cerca de uma hora por pedido e processa mais de 105 mil itens por dia em apenas 670 m². “Estamos elevando o nível da automação no Brasil e consolidando nossa posição como referência em inovação logística na América Latina”, diz Luiz Vergueiro, diretor sênior de Logística. A novidade foi apresentada no MeliExperience, evento anual feito para empresas parcerias e vendedores da plataforma.

Além disso, a empresa lançou neste mês a unidade Mercado Livre Empresas, voltada para clientes corporativos — varejistas e distribuidores que compram em grande escala. O braço B2B formaliza um canal que já existia de forma difusa e permite margens maiores ao atender negócios de maior volume, integrando marketplace, logística e crédito.

Outro passo foi a compra de uma farmácia, movimento que marca a entrada do Meli em um setor estratégico e de alto potencial. Yunes afirma que a aquisição é um caminho para destravar a venda de medicamentos na plataforma, algo que marketplaces já fazem em mercados maduros, mas que no Brasil ainda enfrenta barreiras regulatórias.

No mercado financeiro, a estratégia foi vista primeiro com desconfiança e depois como um ato de liderança. As ações caíram na divulgação do segundo trimestre, mas se recuperaram logo depois. “Demorou um pouco para reagir à Shopee, mas agora reagiu direito. Criaram uma boa equação econômica para o seller jogar nesse segmento de tíquete mais baixo. Isso deu uma estragada na brincadeira da concorrente”, disse um gestor ouvido pelo InvestNews.

Publicidade

Agora, o Meli é aquele que vende de tudo: de supermercado a TV. E mesmo nas categorias que não trazem tanto lucro, elas trazem frequência e recorrência. “Isso importa muito para um ecossistema desse tamanho.”

Yunes admite a pressão de curto prazo na rentabilidade, mas defende que a empresa olha para o longo prazo. “O que estamos fazendo é expandir o tamanho do e-commerce no Brasil e criar uma base de clientes que vai ser rentável lá na frente.” Com sucesso na missão de comandar a operação brasileira, o executivo está sendo deslocado, a partir de janeiro, para comandar a operação global de e-commerce do Meli.

O time do BTG Pactual mantém uma visão otimista para a companhia, projetando que a receita do grupo salte de US$ 28 bilhões em 2025 para US$ 42,8 bilhões em 2027, com margem Ebitda estável entre 15% e 16%. Para o banco, o Meli está “fazendo o que um líder deve fazer: crescer acima do mercado, mesmo que isso signifique sacrificar rentabilidade no curto prazo”.

Com penetração do e-commerce nacional ainda abaixo da média mundial e um ecossistema que entrega mais da metade das compras em 24h, o recado do Meli é claro: quem quiser disputar a liderança no e-commerce brasileiro terá de correr — e rápido.

Exit mobile version