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Governança da Americanas falhou e coloca ESG em xeque, dizem especialistas
Investigações ainda apontarão se houve erro ou fraude, mas caso deve tornar-se referência sobre o que não fazer.
Apesar de ainda ser incerto o motivo que causou as inconsistências contábeis da Americanas (AMER3) – já que investigações apontarão se houve fraude ou erro –, especialistas consultados pelo InvestNews avaliam que, independentemente da causa, o rombo mostra que a varejista falhou em sua governança corporativa, o que coloca em xeque.
A governança é um dos pilares das práticas ESG (“Environmental, Social and Governance”, que, na tradução para o português, significa “Ambiental, Social e Governança). No caso da Americanas, especialistas apontam que este último pilar é pano de fundo do rombo contábil anunciado pela companhia.
Segundo Leonardo Horta, sócio-fundador da Maitreya, as inconsistências contábeis detectadas em exercícios anteriores da Americanas sinalizam que existe um problema de governança na varejista.
“Não tem como ter uma surpresa desse tamanho com uma boa governança funcionando. O G (Governança) é a base para a empresa, é como se fossem as regras, a lógica para acontecer, para que haja uma boa gestão, um futuro estruturado”, diz Horta.
Para o especialista em ESG Thiago Barbosa, diretor-executivo da LexisNexis, o ocorrido com a Americanas mostra que não é suficiente apenas adotar práticas ESG e criar políticas internas baseadas nessa pauta.
“O caso mostra que o comprometimento da alta direção, bem como a criação de mecanismos de verificação recorrentes e a utilização de ferramentas adequadas para checagem são primordiais para que as políticas não fiquem apenas no papel”, defende Barbosa.
Novo Mercado e ISE em xeque
De acordo com o documento de política de compliance da empresa, é de responsabilidade desta área zelar e orientar sobre as boas práticas de governança.
Até então, a Americanas fazia parte de índices que são referência na bolsa de valores brasileira. Um deles, por exemplo, era o Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE), voltado a empresas com boas práticas ESG. O outro, o Novo Mercado, que reúne as companhias que adotam as melhores práticas de governança corporativa.
A B3 (B3SA3) anunciou que, devido à listagem sob o título de “recuperação judicial”, a Americanas foi excluída, em 20 de janeiro, dos índices que fazem parte da bolsa de valores.
O rombo foi revelado pelo então CEO Sérgio Rial, que, após o anúncio, pediu demissão dez dias após ter assumido o cargo, abrindo questionamentos sobre como a inconsistência não foi apontada antes. De acordo com Rial, o curto espaço de tempo foi suficiente para identificar sinais sobre o nível de transparência e a comunicação sobre as despesas – “que não estava fluída”.
Os acionistas de referência da varejista, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, se manifestaram onze dias após o anúncio das inconsistências contábeis. Eles disseram que “jamais tivemos conhecimento e nunca admitiríamos quaisquer manobras ou dissimulações contábeis na companhia. Nossa atuação sempre foi pautada, ao longo de décadas, por rigor ético e legal”.
Barbosa defende que a falha de governança corporativa da Americanas está clara, seja pela falta de transparência, seja pelo aparente descompromisso da alta direção, anterior a Sergio Rial, com essa mesma governança.
“Uma política ESG bem aplicada, consistente e com mecanismos de verificação recorrentes teria evitado que o rombo se estendesse e, consequentemente, se tornasse tão vultoso, como ocorreu neste caso“, diz o especialista em ESG.
Flavia Maranho, coordenadora do pós-MBA de ESG do COPPEAD, também defende que a governança da varejista falhou. “Se o sistema de governança existe para direcionar, monitorar e incentivar a relação entre acionistas, executivos e conselheiros, quais práticas caracterizam o modo de agir dos conselhos de administração e fiscal e comprometem a sua atuação enquanto agentes de monitoramento e incentivo?”, questiona.
Em segundo lugar, Flavia defende que há um problema de transparência. “Se a empresa não se compromete com isso, existem agentes/mecanismos de governança que deveriam assegurá-la, em especial a auditoria independente”, destaca.
Claudia Coser, CEO da plataforma Nobis, que atua na implementação de práticas ESG em empresas, ressalta que as políticas de governança nas empresas partem dos níveis estratégicos do negócio, ou seja, diretorias, conselho de administração, entre outros.
“Difícil acreditar que uma ‘falha’ com essa proporção não tenha sido identificada ao longo de vários anos. Pode-se afirmar que não há práticas de ESG na empresa, mesmo que ela desempenhe rituais e formalismos de governança e compliance”, diz Coser.
Lição para as empresas?
Coser explica que o caso Americanas mostra que empresas deverão estar cada vez mais comprometidas com a transparência nas relações com acionistas, clientes, funcionários, fornecedores, entre outros.
“[Americanas] será um caso muito oportuno para aprender sobre ‘o que não fazer’ em governança e compliance. O ESG deverá ser levado a sério. Mais do que um conjunto esvaziado de intencionalidade, precisará ser tratado como vetor estratégico para geração de valor”, diz a CEO da Nobis.
Leonardo Horta, sócio-fundador da Maitreya, avalia que os pilares de ESG, em especial o da governança, serão vistos mais de perto e com mais cuidado pelas organizações a partir do que aconteceu com a varejista.
“A Americanas está trazendo um impacto muito profundo na revisão de todo mundo e na relevância que as empresas vão dar na revisão da prática atual. Isso vai gerar uma onda nos próximos 3 anos de empresas revisando sua governança, o que é muito saudável. É como se a gente trouxesse um holofote de sensibilidade ao real ponto da governança e não ao marketing que se fala tanto hoje de ESG”, diz Horta.
Para o especialista em ESG Thiago Barbosa, o rombo contábil da Americanas mostra que empresas de capital aberto, que são as que mais devem investir e desenvolver altos níveis de governança, também estão sujeitas a falhas, caso não exista um compromisso sólido da direção.
“Compromisso, neste caso, não significa apenas concordar e apoiar. Significa investir, cobrar e checar recorrentemente para se ter certeza de que as políticas estão sendo cumpridas”, explica Barbosa.
Governança na prática
Claudia Coser, CEO da Nobis, alerta que as empresas precisam tratar o ESG como vetor estratégico de geração de valor. De acordo com Coser, a perenidade dos negócios depende de operações que considerem: a vida do planeta (Ambiental), a vida das pessoas (Social) e a vida da própria empresa (Governança).
“Os resultados financeiros são consequência do equilíbrio desses pilares. Não se trata de um ESG ‘faz de conta’. É preciso ter intencionalidade, estratégia, práticas recorrentes e monitoramento de processos e resultados”, diz Coser.
Barbosa defende que as empresas devem se esforçar para criar mecanismos internos de controle e checagem, investir em ferramentas capazes de detectar não conformidades e ofertar e exigir treinamentos em todos os níveis. De acordo com ele, todos os colaboradores devem entender claramente as políticas de governança da empresa em que trabalham e é seu papel oferecer a devida capacitação nesse sentido.
Flavia Maranho alerta que construir uma cultura de integridade nas companhias é fundamental para assegurar o compromisso com melhores práticas, em especial as de governança.
“Esse trabalho nunca estará pronto. Não é por estar listada no Novo Mercado e fazer parte do ISE que o trabalho da companhia com a governança já está feito/resolvido. Muito pelo contrário. Assumir o compromisso com melhores práticas de governança é reassumir todos os dias o compromisso com fazer o que é correto”, afirma Maranho.
Na mesma linha, Leonardo Horta, sócio-fundador da Maitreya, diz que não basta falar, fazer propaganda e intitular a companhia se as práticas não estiverem inerentes na empresa.
“A governança tem que estar intrínseca no processo. A companhia tem que acreditar e perceber o valor real através de sua política, processos gestão e, principalmente, dos seus líderes, seja em nível de conselho, gestão, operação. Tem que ser algo em que realmente todo mundo entenda e aplique”, esclarece Horta.
Olhar atento do investidor
Coser alerta que algumas “acreditações”, como empresas de auditoria e fornecedores de selos, não são suficientes para conferir os níveis de integridade de empresas, de modo a garantir confiabilidade aos investidores.
A CEO da Nobis explica que, para verificar se as práticas ESG estão sendo colocadas em prática, é preciso verificar:
- Em relação ao E (Ambiental): observar o que acontece na relação das operações da empresa com o meio ambiente. Quanto ela está investindo em inovações para tornar-se cada vez mais limpa em todas as operações?
- Em relação ao S (Social): identificar como a empresa trata as pessoas que emprega. Como ela implementa a inclusão e diversidade? Como a empresa se relaciona com as comunidades do entorno? A empresa faz impacto ou assistencialismo? Qual é o montante para Investimento Social Privado?
- Em relação ao G (Governança): como a empresa se relaciona com os investidores e fornecedores? Responde aos questionamentos?
Outra forma de acompanhar essas práticas, segundo Thiago Barbosa, é solicitar relatórios de desempenho com informações a esse respeito. Ele sugere que o investidor fique atento às publicações financeiras e, sobretudo, aos relatórios de auditoria, para se certificar de que não existem discrepâncias ou conflito de informações sobre o que foi planejado e o que está sendo efetivamente aplicado.
Para Horta, o investidor deve ter uma relação próxima com os principais acionistas e companhias. De acordo com ele, é importante conhecer as práticas que a companhia usa, quais delas garantem sua execução e o código de conduta.
“O que vai acontecer agora é o investidor perguntar com mais profundidade. Será dado mais valor agora pelos próprios investidores que percebem que, quando há desrespeito pela governança, isso volta na cadeia como um todo, inclusive colocando em xeque a sobrevivência e valor da própria companhia”, acredita o sócio-fundador da Maitreya.
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