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Stargate: mais do que um investimento em IA, uma nova corrida espacial

Montagem com 3 fotos alinhadas da esquerda para a direita com pessoas diferentes: Elon Musk, Donald Trump e Sam Altman. Fotos: Getty Images (Maja Hitij, Rebecca Noble e Kent Nishimura)

Da esquerda para a direita: Elon Musk, Donald Trump e Sam Altman. Fotos: Getty Images (Maja Hitij, Rebecca Noble e Kent Nishimura)

“Stargate”, o portão estelar, é um nome apropriado para o megalomaníaco projeto de inteligência artificial anunciado pelo presidente dos EUA, Donald Trump, na última terça-feira (21).

Os US$ 500 bilhões que serão investidos pelo consórcio de OpenAI, Softbank e Oracle não irão apenas para a construção de datacenters que prometem acelerar o avanço da inteligência artificial. Mas — e talvez acima de tudo — oficializam o que já era claro para muitos observadores: estamos vendo uma reedição da corrida espacial.

Se nas décadas de 1950 e 1960 o objetivo dos americanos era conquistar o espaço antes dos soviéticos, agora é descobrir a “inteligência artificial geral” (AGI) antes dos chineses.

Trata-se de um tipo de IA que seria capaz de realizar qualquer tarefa intelectual que um ser humano conseguiria desempenhar – diferentemente das IA’s de hoje, que são projetadas para funções específicas (como processamento de linguagem natural e reconhecimento de imagens). Uma AGI seria capaz de aprender, adaptar-se e raciocinar de forma abrangente em qualquer domínio, sem necessidade de reprogramação.

O passo seguinte seria alcançar a super-inteligência (ASI) – o ponto em que a IA superaria as capacidades humanas em qualquer área (criar novas teorias da física, por exemplo).

Os benefícios de alcançar a AGI e, mais adiante, a ASI, são provavelmente muito maiores do que fincar uma bandeira na Lua.

Em teoria, com a AGI seria possível acelerar descobertas em campos lucrativos que vão desde materiais de construção e medicina (reduzindo o custo de desenvolver novas drogas ou vacinas) até aplicações na exploração espacial. Além disso, “agentes” artificiais avançados poderiam ajudar a suprir a mão de obra qualificada que começa a escassear, em parte por conta do envelhecimento populacional.

Mas se sobram motivos — práticos e simbólicos — para perseguir o objetivo, também não faltam dúvidas sobre o projeto.

Um dos pontos mais críticos é: de onde virá a energia? Trump falou em criar “datacenters colossais”. O Departamento de Estado americano previa, antes do anúncio do Stargate, que datacenters de IA consumiriam em 2028 o mesmo tanto de energia que toda a Espanha hoje.

Mas energia nuclear é um processo lento, e os incentivos federais para energia limpa de Biden foram enxugados no primeiro dia do governo Trump. Além disso, não há datacenter que funcione sem grande quantidade de água para resfriar servidores e garantir a estabilidade térmica dos supercomputadores. Em regiões como o Texas, onde o Stargate já começou a construção do seu primeiro centro, a escassez de água pode se tornar um entrave.

Onde serão feitos os chips para a ‘reindustrialização’ dos EUA?

A OpenAI disse em um press release que o Stargate irá apoiar a “reindustrialização dos Estados Unidos”. No entanto, fica a pergunta: como essa reindustrialização vai acontecer se a produção dos chips mais avançados ainda depende quase que inteiramente de Taiwan, onde a TSMC concentra a maior parte da manufatura? A própria TSMC tem prazos lotados até o fim de 2026, e a instalação de novas fábricas em solo americano vem enfrentando atrasos por falta de profissionais treinados e maquinário.

A dependência de Taiwan para o projeto Stargate, ainda que temporária, pode aumentar o incentivo do governo chinês de invadir a ilha. O quanto que os empresários e o governo americano estão levando isso em consideração?

Medicina rápida? Sim, mas e o resto?

Na coletiva de lançamento, enfatizou-se a capacidade de usar IA para avanços velozes na medicina. A dúvida é: quem colherá os lucros, por exemplo, de uma vacina contra o câncer descoberta por um supermodelo de IA?

E mesmo que esse modelo encontre a fórmula perfeita, o gargalo segue nos testes clínicos, que exigem anos de estudos, aprovação regulatória e gigantescos investimentos. Como lembra o FDA, o mundo dos átomos — hospitais, laboratórios, pacientes reais — não evolui na mesma velocidade do mundo digital. Além disso, há a questão do acesso: será que tais remédios inovadores ficarão restritos a quem pode pagar, perpetuando desigualdades no sistema de saúde? Ou o governo americano terá estratégias para tornar essas descobertas acessíveis em âmbito global?

Outra questão levantada por muitos analistas é a real necessidade de todo esse dinheiro. Dias antes do anúncio, uma startup chinesa chamada Deepseek mostrou, com o lançamento do seu v3-R1, que é possível criar modelos de IA poderosíssimos com uma fração do investimento da OpenAI. Será que esses US$ 500 bilhões não seriam melhor aplicados em pesquisas e aplicações de que aproveitassem os modelos pré-existentes?

Quer dizer, isso se o consórcio tiver mesmo acesso a esse meio trilhão. Elon Musk, provocou Sam Altman da OpenAI publicamente no X, dizendo que o Softbank, principal financiador, “não tem o dinheiro”. Isso é provável — mas também é evidente que o Stargate ainda está em fase de captação, e já conta com dinheiro do MPX, fundo de investimento dos Emirados Árabes. Novos parceiros serão anunciados em breve.

O impacto no emprego e na economia real

Junto de Donald Trump, a inteligência artificial foi o grande assunto em Davos na última semana. E o que ficou claro, nas diferentes palestras e entrevistas, é que há cada vez mais gente na indústria afirmando que a AGI será alcançada antes de 2030, possivelmente nos próximos dois ou três anos.

No anúncio do Stargate e em entrevistas recentes, os maiores empresários da IA enfatizaram os aspectos positivos, especialmente na área médica. Mas mesmo em extensos ensaios, líderes como Sam Altman (OpenAI) e Dario Amodei (Anthropic) não explicam em detalhe como o mundo funcionaria quando — e se — a AGI chegar.

Que empregos deixariam de existir? Se as máquinas podem desempenhar diversas atividades a custo irrisório, qual seria o incentivo real para contratar pessoas?

A história nos mostra que, em revoluções tecnológicas anteriores, surgiram novas oportunidades de trabalho. Mas nunca tivemos um cenário em que “inteligência” se tornasse tão barata a ponto de substituir boa parte das funções cognitivas de alto nível. Em vez de mera automação de tarefas repetitivas, falar em AGI é falar de autonomia de decisão, análise complexa e criatividade. A grande incógnita é: como os mercados — e a sociedade — vão se adaptar, e em qual velocidade?

Pode ser que não mude tanta coisa, em termos práticos, no curto prazo. O economista Tyler Cowen, por exemplo, afirma que a falta de “inteligência” não é exatamente o maior gargalo em boa parte do mundo. Muitos problemas — tanto públicos quanto empresariais — já têm soluções conhecidas, mas falta implementação. A tecnologia, por si só, não resolve burocracias, vaidades políticas ou ineficiências de gestão.

E agora?

Seja como for, o lançamento do Stargate simboliza uma aposta gigantesca dos EUA e de gigantes da tecnologia em um futuro dominado pela IA de alta capacidade. Talvez essa seja a “corrida espacial” da nossa era, com seu simbolismo e promessas de impulsionar pesquisa e desenvolvimento em todo o país — e possivelmente no mundo. Ainda há, porém, tantas variáveis em aberto que é difícil saber se o resultado final será o “próximo salto da humanidade”, um grande desperdício de recursos ou algo mais sinistro.

Por ora, a única certeza é que as duas grandes potências do nosso tempo vão fazer de tudo para não ficar para trás na corrida pela superinteligência artificial. E o resto do mundo — não só o Brasil, mas a própria Europa — assiste de camarote.

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