Nike muda de tática em momento de pouca inovação e crescimento da competição
A gigante do tênis tropeçou quando o CEO John Donahoe se afastou dos varejistas e confiou em velhos sucessos. Agora, a empresa diz que volta a focar em tênis de ponta para atletas
No final de fevereiro, o chefe da Nike, John Donahoe, liderou uma reunião virtual onde alertou sua equipe: a empresa não estava apresentando seu melhor desempenho, e ele afirmou que a responsabilidade era sua.
Duas semanas antes, a Nike havia anunciado que iria demitir mais de 1.600 funcionários.
Agora, enquanto o CEO falava na reunião, comentários críticos começaram a encher a janela de bate-papo na chamada do Zoom, com uma assistência de mais de 20.000 funcionários.
“Responsabilização: Não acho que você saiba o exato significado dessa palavra”, escreveu um funcionário. “Se a questão é corte de custos, que tal diminuir o salário do CEO?”, escreveu outro. Logo uma cascata de emojis de riso encheu a tela.
Alguns colegas alertavam que as postagens não eram anônimas e que o bate-papo poderia estar sendo monitorado. Os ataques duraram vários minutos. “Espero que Phil esteja assistindo e lendo tudo”, escreveu um funcionário, referindo-se ao cofundador aposentado da Nike, Phil Knight.
O protesto virtual ilustrou a profundidade da insatisfação dentro da gigante dos tênis e a preocupação com sua estratégia. “Como chegamos até aqui?”, escreveu um gerente de produto.
Desde a pandemia, a Nike perdeu espaço em sua importante categoria de corrida, enquanto se concentrava em remodelar velhos sucessos e se preparar para uma revolução no comércio eletrônico que nunca veio. As mudanças, segundo atuais e ex-funcionários, corroeram uma cultura de inovação e ousadia que fez da Nike uma das marcas mais conhecidas do mundo.
Donahoe havia dito ao Wall Street Journal em 2020 que sua prioridade número um ao assumir a empresa era “não fazer besteira”. Quatro anos depois, a Nike vai eliminando aos poucos elementos-chave da estratégia do CEO que saíram pela culatra, em um momento em que um número crescente de startups vem em seu encalço.
Entre as mudanças: durante a epidemia da Covid, com mais compras sendo feitas on-line, a Nike cortou laços com parceiros de varejo de longa data, como DSW e Urban Outfitters, e tentou vender mais mercadorias diretamente aos consumidores. Agora, pede ajuda a algumas dessas lojas para limpar suas prateleiras e armazéns superlotados.
“Eu diria que acertamos algumas coisas e erramos outras”, disse Donahoe na quinta-feira, em entrevista na sede da Nike em Beaverton, no Oregon.
Perdendo suas raízes
Os erros estratégicos animaram um debate sobre a identidade interno na empresa. Na tentativa de impulsionar as vendas digitais, segundo alguns funcionários atuais e antigos, a Nike se desviou de suas raízes como fabricante de tênis de ponta para atletas profissionais. A empresa baixou a guarda para a concorrência de recém-chegados como On e Hoka, que se inspiraram na cartilha de ascensão da própria Nike — incluindo o foco no esporte em vez do estilo de vida e assumindo riscos na inovação.
O outrora incrível crescimento da Nike foi interrompido. As vendas do trimestre encerrado em 29 de fevereiro ficaram estáveis em comparação com as de um ano antes, e as ações da empresa caíram 24% em 2023, em comparação com um ganho de 19% no S&P 500.
Donahoe, na entrevista, reconheceu que a marca perdeu sua “posição de destaque” no esporte e que precisava retomar seu “processo de inovação disruptiva”. O CEO disse que o marketing da marca ficou fragmentado e que, com as pessoas voltando às lojas físicas, ficou claro que era preciso investir em seus parceiros de varejo.
Executivos da Nike disseram em entrevistas que a empresa se tornou muito cautelosa após a pandemia e excessivamente dependente de produtos mais antigos, que eram confiantemente vendáveis. Eles disseram que a empresa fez mudanças significativas nos últimos meses visando lançamentos de tênis de ponta.
“Estávamos oferecendo aos consumidores o que eles conhecem e gostam”, disse John Hoke, diretor de inovação da Nike, recentemente nomeado. “Esse é nosso trabalho, claro, mas também oferecer-lhes algo novo, levá-los a um lugar novo.”
Donahoe disse que a Nike está passando por um período de adversidades e demissões que gerou incertezas, mas que a empresa vai vencer isso. “Nossos funcionários passaram por muita coisa”, disse. “Como uma grande equipe esportiva, a Nike dá seu melhor quando está pressionada.”
Knight, que é presidente emérito do conselho e maior acionista da empresa, declarou em um comunicado que Donahoe tem seu “apoio inabalável”.
Donahoe disse que as respostas dos funcionários à reunião refletiram um dos maiores pontos fortes da Nike: o quanto a equipe se preocupa com a empresa. “Aplaudimos e encorajamos isso”, garantiu.
Mudança para o digital
Donahoe assumiu a Nike pouco antes da pandemia, em um momento delicado. Embora tenha assumido uma líder de mercado e uma das marcas mais conhecidas do mundo, a Nike buscava uma atualização depois que enfrentou reclamações sobre sua cultura de trabalho, o que levou a uma mudança de gestão.
O nativo de Evanston, em Illinois, havia sido CEO do eBay, onde dobrou a receita da plataforma de comércio eletrônico em sete anos, terminados em 2015. Depois de um período sabático — durante o qual, conta, viveu uma experiência transformadora em um retiro de meditação budista de dez dias — Donahoe passou a administrar a empresa de computação em nuvem ServiceNow.
Quando assumiu o comando da Nike, no início de 2020, suas ordens, recebidas de Mark Parker, seu antecessor e atual presidente executivo, e Knight, eram claras. Ele transformaria a maior fabricante de calçados do mundo em uma empresa de tecnologia mais diretamente conectada aos consumidores por meio de seus próprios aplicativos, que, por sua vez, coletam dados valiosos dos compradores.
Parker disse quando deixou o cargo que Donahoe era o candidato certo para liderar a transformação digital da Nike.
Donahoe era apenas o quarto CEO nos mais de 50 anos de história da empresa. O único outro outsider a conseguir o cargo disse que foi demitido em 2006 após uma curta passagem porque se concentrou demais nos números.
Donahoe começou com uma turnê global de cem dias para coleta de informações, que foi interrompida após um mês quando a pandemia chegou.
Os lockdowns da Covid garantiram um aumento das compras on-line. Os canais digitais representavam 30% das vendas da Nike em maio de 2020, cerca de três anos antes do previsto.
Donahoe viu isso como a aceleração de uma mudança inevitável e ajustou os planos da Nike. Poucos meses depois, redobrou a aposta da empresa de que poderia ganhar mais dinheiro vendendo produtos diretamente aos consumidores por meio de suas lojas e canais digitais. Ele disse acreditar que as vendas digitais chegariam a 50% do negócio, e a Nike deveria se transformar mais rapidamente para definir o mercado do futuro. Era hora de agir.
No final de 2020, a empresa abandonou cerca de um terço de seus parceiros de vendas e enviou menos artigos para clientes como Foot Locker, DSW e Macy’s. Havia um plano para eliminar gradualmente os clientes de atacado desde 2017, mas, com as vendas digitais crescendo rapidamente, Donahoe disse haver uma necessidade de urgência.
Os executivos estavam divididos sobre se as lojas próprias da Nike, que incluem as de fábrica e as especializadas que vendem novos lançamentos com preços mais altos, poderiam cobrir as vendas dos varejistas que a empresa estava cortando.
Em reuniões, o chefe de finanças Matt Friend e a presidente da Nike, Heidi O’Neill, apoiaram a saída agressiva do varejo que Donahoe buscava, enquanto outros favoreceram uma transição mais lenta, contaram pessoas familiarizadas com o assunto.
Alguns executivos sentiram que as lojas especializadas, em particular, funcionavam melhor como ferramentas de marketing e que cortar tantos varejistas tão rápido seria um tiro no pé, acrescentaram essas pessoas. Donahoe e seus aliados venceram.
As equipes da Nike foram encarregadas de criar um novo processo de cadeia de suprimentos global. A venda direta aos consumidores aumentou o passivo da empresa, pois, por exemplo, incluiu os custos de armazenamento e de transporte dos atacadistas para a Nike. A empresa também absorveria as perdas dos descontos se a mercadoria não vendesse rapidamente e o estoque se acumulasse.
Uma das vítimas da transformação de Donahoe em 2020 foi uma operação multibilionária dedicada ao desenvolvimento dos modelos vendidos por menos de US$ 100. A empresa diminuiu a prioridade dos mais acessíveis, que geralmente eram comercializados por parceiros de vendas que a Nike estava deixando. O movimento levou a empresa para o lado dos tênis mais caros.
A primeira evidência de problemas na nova abordagem da Nike apareceu no início do ano passado, quando a presidente-executiva da Foot Locker, Mary Dillon, disse durante a divulgação de resultados que a marca havia mudado de opinião e estava enviando à loja uma variedade maior de produtos da Nike. Em meados de 2023, Macy’s e DSW disseram a mesma coisa.
A mensagem era clara: a Nike precisava de ajuda para vender sua mercadoria.
Veteranos da empresa disseram que cortar clientes do atacado foi um dos maiores erros que a empresa já cometeu. Depois que as vendas digitais atingiram a marca de 30% do total no início da pandemia, acabaram recuando, e não alcançaram esse nível desde então — muito menos a meta de 50% prevista por Donahoe.
Donahoe disse na entrevista que o objetivo na época era se apoiar mais em parceiros específicos, como a Dick’s Sporting Goods e a JD Sports, que ele considera mais alinhados com a Nike, em vez de fazer uma mudança dramática na estratégia. A Nike eliminou a prioridade de fabricação de tênis de baixo custo por causa das crises na cadeia de suprimentos durante a pandemia, mas agora está fabricando mais desses produtos, disse ele.
“Não vejo isso como uma reversão da estratégia”, disse Donahoe sobre o retorno a mais redes de varejo. “Vejo como um ajuste.”
Concorrência crescente
Os concorrentes se inspiraram na cartilha de ascensão da gigante dos tênis. Marcas menores como On, Hoka e New Balance capturaram fatias significativas do mercado tanto para corredores profissionais quanto para os amadores — e a popularidade delas vai se ampliando.
Citando frequentemente Knight, o cofundador da Nike, ex-funcionários disseram que o princípio sempre foi primeiro capturar o mercado de atletas com produtos inovadores, e o consumidor casual seguiria.
No início de fevereiro, a Deckers Outdoor, proprietária da Hoka, contratou ex-funcionários da Nike para assumir a empresa mãe e a marca de tênis. A Hoka teve US$ 1,4 bilhão em vendas no ano até março de 2023, em comparação com cerca de US$ 352 milhões três anos antes.
A empresa não respondeu a pedidos de comentários.
“Quando você é o maior, sempre haverá pessoas vindo atrás de você”, disse Donahoe. Os concorrentes dão à Nike um incentivo para tentar entender o que os consumidores querem e descobrir como criar algo ousado e diferente, explicou ele.
A Nike ainda supera a concorrência. Durante a liderança de Donahoe, as vendas cresceram 31%, chegando a US$ 51 bilhões em 2023. Isso é mais do que o dobro dos resultados da Adidas, a concorrente mais próxima. A New Balance informou que as vendas atingiram US$ 6,5 bilhões no ano passado, e a Upstart On quase atingiu a marca de US$ 2 bilhões.
A corrida para cumprir as metas de receita teve um custo para a Nike. Os executivos se voltaram para as franquias lucrativas da marca, incluindo Air Jordan e Dunk, e aumentaram os lançamentos. A estratégia diluiu a exclusividade apreciada pelos compradores obstinados de tênis Nike.
Donahoe disse na entrevista que a empresa aumentou a produção para atender à demanda em seu aplicativo SNKRS, que os fãs usam para comprar os últimos lançamentos limitados. No início de 2021, a Nike dava conta de menos de 5% da demanda de alguns lançamentos no aplicativo e os consumidores ficaram frustrados, contou Donahoe, acrescentando que a meta é atender algo mais próximo de 20% da demanda dos estilos exclusivos.
Agora, os revendedores de tênis dizem ter visto lançamento após lançamento dos modelos de edição limitada da Nike que não esgotam no aplicativo SNKRS, e que no mercado secundário — espaço que a marca monitora de perto — os preços estão caindo.
Em março, executivos da Nike disseram que recuariam nos lançamentos de franquias.
Segundo Donahoe, “a Nike sempre fez a gestão de franquias”.
As vendas digitais da Nike, um número que inclui vendas diretas e de e-commerce de parceiros, caíram no trimestre encerrado em 29 de fevereiro. 29. Friend, o chefe financeiro, disse a analistas em março que a empresa acredita que as vendas totais diminuirão pelo menos até o final deste ano.
Luta por inovação
A busca pelo crescimento das vendas a partir de lançamentos de tênis de edição limitada levou a Nike a negligenciar sua categoria de corrida, há muito considerada o principal produto da empresa, afirmaram ex-funcionários.
Este mês, em Paris, a empresa revelou sua nova linha de produtos para as Olimpíadas, incluindo modelos de tênis de corrida com um novo sistema de amortecimento que usa sua tecnologia Air.
Em entrevistas no evento, executivos disseram que a Nike se tornou um pouco avessa ao risco durante a pandemia, quando trabalhar remotamente sufocava a criatividade. Martin Lotti, diretor de design, disse que a empresa passou muito tempo focada em seu passado.
“Se você dirige um carro apenas olhando no espelho retrovisor, isso não é uma coisa boa”, disse Lotti. “A maior oportunidade está no para-brisa.”
Executivos atuais e antigos da Nike acreditam que o futuro da empresa está em seu ecossistema de aplicativos, como o Nike Training and Running Club ou o SNKRS, e nos dados que ela pode coletar através deles para ajudar a desenvolver e vender produtos. Dentro da empresa, os líderes há muito tentam fazer comparações com a Apple ao falar sobre a cultura de inovação e design da Nike.
A gigante dos tênis vem adquirindo startups menores de análise de dados há pelo menos uma década. Dois anos atrás, ela também apostou na mania dos NFTs.
Um dos maiores investimentos em tecnologia da Nike é um processo multibilionário para migrar vários programas de software em um único sistema. A nova plataforma, conhecida como S/4HANA, ainda não está operacional e conta com três anos de atraso. O software foi projetado para ajudar as operações do dia a dia, como compras e gerenciamento de estoque, e acelerar as vendas digitais.
Como parte de seu foco acelerado em vendas digitais, a Nike contratou cerca de 3.500 pessoas para se juntar ao que a empresa chama de seu grupo global de tecnologia, que inclui opiniões de consumidores e análise de dados. Na época, os executivos disseram que estavam investindo em “detecção de demanda”, “coleta de opiniões” e um novo sistema de estoque.
Ex-funcionários com conhecimento da estratégia de opinião do consumidor disseram que os executivos interpretaram mal os dados e por isso superestimaram a demanda por franquias retrô.
Durante a rodada de demissões de fevereiro, os executivos cortaram setores de gestão nas equipes de opiniões e análises. Uma grande equipe de inovação tecnológica, encarregada de desenvolver o software para implementar o novo sistema de realidade aumentada Vision Pro da Apple em tarefas diárias de design, e uma equipe de inteligência artificial separada também foram eliminadas.
Executivos da Nike dizem que ela está entrando em um “superciclo” de inovação e que a nova linha de produtos Air melhora o desempenho dos atletas.
No evento de pré-estreia das Olimpíadas deste mês, a empresa ocupou o histórico Palais Brongniart, no centro de Paris, com um evento de três dias para mostrar sua nova linha Air. Os convidados passearam por uma instalação semelhante a um museu que destacava a evolução de produtos da Nike e os programas de pesquisa e desenvolvimento. Atletas como os corredores Sha’Carri Richardson e Eliud Kipchoge foram os modelos dos novos produtos. A poderosa tenista aposentada Serena Williams narrou o luxuoso vídeo de apresentação da empresa antes de aparecer no palco.
Do lado de fora, estátuas cor de laranja de nove metros de atletas patrocinados pela Nike, incluindo LeBron James, Kylian Mbappé e Victor Wembanyama.
A relação de Donahoe com Knight remonta ao início dos anos 1990, quando o primeiro era consultor de projetos da Nike na Bain. Ele se juntou ao conselho da Nike em 2014 e é um dos diretores de uma entidade criada por Knight chamada Swoosh LLC, que detém cerca de US$ 22 bilhões em ações da Nike e controla a maioria dos assentos do conselho da empresa. Donahoe considera Knight seu “maior herói nos negócios”.
O atual CEO disse que se reúne com seu antecessor, Parker, todas as semanas.
Donahoe contou que ele e Parker compartilham uma abordagem de gestão que chama de “liderança servidora”, que foi incorporada por alguns de seus heróis esportivos, incluindo os técnicos de basquete Phil Jackson, John Thompson, Mike Krzyzewski e Tara VanDerveer.
“Não sou eu. São os seus jogadores. E você está fazendo tudo o que pode para permitir que seus jogadores treinem para vencer? E quando você ganha, os jogadores são os vencedores, e quando você perde, o problema é seu, certo?”, disse ele. “E é essa ideia que eu sempre tentei adotar, inclusive durante esse período.”
Esta semana, Donahoe enfrenta outro teste: a empresa está notificando várias centenas de outros trabalhadores cujos empregos estão sendo cortados.
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traduzido do inglês por investnews