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Como Wall Street segue financiando um governo viciado em dívida

A busca por retorno seguro impulsiona os títulos do Tesouro americano, apesar do enorme aumento na oferta dos papéis

Por Sam Goldfarb The wall street Journal
Publicado em
8 min
traduzido do inglês por investnews

As perspectivas fiscais dos EUA estão se deteriorando. Mas Wall Street não parece se incomodar.

A procura pelos títulos do governo dos EUA disparou no mês passado, no mesmo dia em que o Escritório de Orçamento do Congresso disse esperar que o déficit orçamentário fiscal de 2024 atinja US$ 1,9 trilhão, acima do US$ 1,7 trilhão do ano passado e da estimativa anterior de US$ 1,5 trilhão. A forte demanda afastou os juros dos títulos dos Treasuries, os títulos do Tesouro americano, das máximas registradas em 2023. Isso, a despeito da grande oferta dos papéis pelo Tesouro, necessária para tapar o buraco entre os gastos e as receitas do governo.

A situação surpreende alguns analistas, que acreditavam que a crescente dívida poderia desencadear mais perturbações no mercado. Aqui está um exame dos desafios enfrentados pelo mercado de títulos do Tesouro e quais são (até agora) suas respostas:

Excepcionalmente grande

Um déficit maior significa que o governo precisa vender mais títulos do Tesouro e, no momento, esse déficit é excepcionalmente alto grande quando medido em termos de proporção do PIB. E isso em uma momento em que o país não passa por uma crise como guerra mundial ou pandemia.

Os títulos podem estar sujeitos às forças de oferta e demanda como qualquer outra coisa. Se os investidores estiverem satisfeitos com a quantidade de títulos que possuem, mas a oferta continua aumentando, isso deveria reduzir o valor dos papéis e, consequentemente, elevar os juros pagos.

O cenário pode ser arriscado por vários motivos. Os rendimentos do Tesouro refletem o custo de novos empréstimos para o governo dos EUA, que é visto como muito menos propenso a dar calote em sua dívida do que qualquer empresa ou indivíduo.

Por isso, se os juros desses títulos sobem, os custos dos empréstimos em geral também precisam ficar mais altos. E isso afeta a vida de uma empresa que precisa tomar crédito e também de uma família que assume uma hipoteca. Rendimentos mais altos dos Treasuries também podem prejudicar os preços das ações, pois representam uma alternativa mais segura e atraente ao investidor.

Normalmente, as mudanças nas perspectivas de empréstimos do governo afetam os rendimentos apenas marginalmente. Mas pode haver momentos em que esse movimento importa mais.

Em agosto, por exemplo, uma grande oferta de títulos do Tesouro veio na sequência de um aumento nas estimativas trimestrais da dívida do Tesouro, o que forçou o governo a aumentar a oferta em seus leilões de títulos mais do que os investidores esperavam.

Esse aumento de ofertas gerou uma preocupação em Wall Street sobre o impacto dos leilões do Tesouro sobre os rendimentos daqui para frente.

De fato, o rendimento do título de dez anos atingiu um pico de cerca de 5% no final de outubro. Mas a taxa teve algum alívio na sequência, quando o Tesouro surpreendeu os investidores com um aumento menor do que se esperava na rodada seguinte de leilões. Na sequência, os dados econômicos mostraram alívio e, no final do ano, o rendimento dos títulos de dez anos estava abaixo de 3,9%.

O benefício da segurança

Hoje, o rendimento de dez anos está em torno de 4,2%, enquanto o valor total dos títulos do Tesouro em circulação ultrapassou os US$ 27 trilhões.

Como a demanda dos investidores consegue acompanhar tanta oferta?

Um dos principais motivos: os títulos do Tesouro ainda oferecem um retorno razoável basicamente sem risco, desde que sejam mantidos até o vencimento.

Os investidores têm maneiras alternativas de obter um retorno sem risco. Eles podem emprestar recursos ao Federal Reserve de um dia para o outro (overnight), recebendo uma taxa de juros definida. Poderiam fazer isso de forma contínua durante dez anos, rolando diariamente seu investimento. Nesse caso, ganhariam mais quando as taxas sobem e menos quando as taxas caem. Ou podem simplesmente garantir um retorno agora comprando um título do Tesouro de dez anos.

Isso geralmente mantém os rendimentos do Tesouro vinculados às expectativas dos investidores sobre a média das taxas de curto prazo ao longo da vida de um título. Se um influxo de novos títulos levasse o rendimento do título de dez anos para um nível acima do que os investidores poderiam obter rolando empréstimos de curto prazo, haveria um forte incentivo para optarem pelo de dez anos. Essa onda de demanda reduziria seus rendimentos novamente. 

De fato, a principal taxa de curto prazo definida pelo Fed e o rendimento do título de dez anos exibiram uma relação estreita nas últimas seis décadas.

É impossível saber com certeza o quanto o rendimento de dez anos reflete as previsões para as taxas de juros de curto prazo versus outros fatores — como oferta e demanda ou preocupações com a inflação — que os economistas geralmente rotulam como “prêmio de longo prazo.”

Mas os economistas criaram modelos para tentar dar uma resposta. Um deles, desenvolvido por economistas do Fed de Nova York, atualmente mostra que o prêmio de longo prazo de dez anos é ligeiramente negativo. A consequência: se a oferta de títulos está elevando os rendimentos, ela está sendo cancelada por outros fatores, como investidores que desejam comprar títulos do Tesouro como proteção contra possíveis perdas em ações.

Demanda externa

Países como Alemanha e Japão também vendem títulos do governo que os investidores consideram ultrasseguros. Mas os títulos americanos têm atributos adicionais que os tornam especialmente atraentes para os investidores globais.

Uma grande vantagem é que os títulos do Tesouro são mais fáceis de negociar do que outros papéis. O volume, neste caso, ajuda. A enorme quantidade de títulos em circulação significa que os investidores podem facilmente comprar grandes quantidades de títulos de praticamente qualquer vencimento. Eles também podem se sentir à vontade para vender suas próprias participações, sabendo que podem encontrar substitutos rapidamente.

Cerca de US$ 190 trilhões de títulos do Tesouro foram comprados e vendidos em 2023, mais de sete vezes o tamanho do mercado, de acordo com a SIFMA, grupo comercial do setor de valores mobiliários. O volume de negociação de títulos do governo alemão totalizou cerca de US$ 7 trilhões, apenas quatro vezes o valor dos títulos que estavam em circulação no final do ano, de acordo com a agência financeira da Alemanha.

A liquidez dos títulos do Tesouro é uma das razões pelas quais o dólar é conhecido como a moeda de reserva mundial, segundo analistas. Os bancos centrais e os governos de outros países mantêm reservas por vários motivos, incluindo a gestão do valor de sua própria moeda, mas favorecem o dólar em parte porque podem comprar e vender títulos do Tesouro com mais facilidade do que outros títulos do governo.

“Já disse algumas vezes que não é que o dólar seja a moeda de reserva dominante, é que os títulos do Tesouro são o ativo de reserva dominante do mundo”, disse Brad Setser, membro sênior do Conselho de Relações Exteriores e ex-conselheiro do Representante de Comércio dos EUA. 

Setser observou que a grande carga da dívida interna americana parece mais administrável quando certos títulos do Tesouro são excluídos, como dívidas de ultracurto prazo que os investidores consideram tão seguras quanto dinheiro, títulos mantidos pelo Fed e os mantidos por bancos centrais estrangeiros.

Durante décadas, os títulos do Tesouro também ofereceram rendimentos mais altos do que seus pares — resultado de amplas tendências econômicas e demográficas e da falta de empréstimos do governo da Alemanha. Isso garantiu uma demanda constante de investidores estrangeiros que compram com intenção de manter, como fundos de pensão e seguradoras.

O caminho à frente

Muitos investidores e analistas continuam pelo menos um pouco preocupados com a crescente oferta de títulos do Tesouro.

A grande venda do ano passado serviu como um lembrete de que a demanda por títulos do Tesouro “é variável ao longo do tempo”, disse Gennadiy Goldberg, chefe de estratégia de taxas dos EUA na TD Securities. “A preocupação é que os investidores estejam comprando títulos do Tesouro hoje — o que não significa que tenham que comprar amanhã.”

Mesmo assim, Blake Gwinn, chefe de estratégia de taxas dos EUA na RBC Capital Markets, disse que, em grande medida, os déficits previstos já podem estar refletidos nos rendimentos atuais dos títulos.

“A emissão de títulos do Tesouro é uma coisa muito longa, lenta e secular, que os mercados têm muito tempo para digerir”, concluiu ele.

Escreva para Sam Goldfarb em [email protected]

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