Os russos ocultos nas Olimpíadas de Paris
Oficialmente, há apenas 15 atletas russos nos Jogos, todos como competidores neutros graças à invasão da Ucrânia por seu país. Extraoficialmente, existem dezenas de outros.
Com a aproximação dos Jogos Olímpicos de Paris e a guerra que continua na Ucrânia, o Comitê Olímpico Internacional foi confrontado com uma questão política espinhosa: o que fazer com os atletas russos?
Oficialmente, a Rússia está proibida de enviar uma equipe com seu nome e bandeira pela quarta Olimpíada consecutiva. Desta vez, no entanto, o motivo não está relacionado ao épico escândalo de doping patrocinado pelo Estado russo, mas sim à invasão da Ucrânia em 2022.
Como fez durante todas as proibições anteriores desde 2014, o COI criou um caminho para que atletas da Rússia — e neste caso de Belarus — participem, mas não sob a bandeira ou as cores de seu país. Tudo o que os competidores russos tiveram que fazer desta vez foi enviar inscrições como atletas neutros individuais e provar que não apoiaram a invasão russa da Ucrânia e que não têm laços ativos com os militares.
Contudo, poucos foram aprovados. Na cerimônia de abertura na sexta-feira (26), apenas 15 russos estarão inscritos nos Jogos como atletas neutros.
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Porém, esse número é apenas uma ilusão: haverá, de fato, dezenas de atletas nascidos na Rússia em Paris. Eles estarão apenas hasteando bandeiras de outros países, com muitos tendo adquirido recentemente novas nacionalidades para contornar as inúmeras sanções impostas aos esportes russos. Eles tomaram a decisão de mudança assim que puderam, muito antes de o COI formalizar o status de atletas independentes em dezembro passado.
Comentaristas russos apelidaram aqueles que trocaram de nacionalidade de “a geração perdida”.
Alguns russos estão torcendo por eles, mas outros os veem como traidores. Além disso, os atletas que receberam status neutro também são alvos de críticas de autoridades russas. Stanislav Pozdnyakov, chefe do Comitê Olímpico da Rússia, recentemente criticou o grupo de tenistas russos, incluindo o número cinco do mundo, Daniil Medvedev, que participam dos Jogos como neutros. Ele os chamou de “uma equipe de agentes estrangeiros”.
O lutador Georgii Okorokov está entre a onda de atletas russos que foram para outros países. Ele competirá pela Austrália, enquanto é aplaudido em sua cidade natal, na região de Yakutia, na Rússia, que por acaso é uma das mais frias do mundo — a quase dez mil quilômetros de Sydney.
“Sensação na história dos esportes de Yakutia”, disse um site de notícias local em maio, depois que Okorokov se classificou para os Jogos. “Os fãs estão contentes!”
Okorokov, de 27 anos, decidiu pela mudança após a invasão russa de fevereiro de 2022. O Ministério do Esporte da Rússia disse em agosto passado que 67 atletas mudaram de nacionalidade desde o início de 2022. Mas alguns observadores independentes sugerem que seja mais, colocando o número real em até 200, incluindo alguns em esportes não olímpicos, como o xadrez.
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O WSJ conseguiu exemplos de pelo menos 18 russos que mudaram de nacionalidade após a invasão da Ucrânia e agora devem competir em Paris. De acordo com o site esportivo russo Sport-Express, há 58 atletas com raízes russas que se qualificaram para competir nos Jogos, com alguns tendo mudado de cidadania anos atrás. “Uma grande equipe completa”, disse o site.
Em casa, eles incorreram na fúria das principais autoridades esportivas, que os veem como traidores.
“Devemos entender que as conquistas de nossos atletas foram feitas, entre outras coisas, graças às escolas esportivas russas e soviéticas. O país investiu recursos, potencial e conhecimento neles”, afirmou Dmitry Svishchev, presidente do Comitê de Cultura Física e Esportes da Duma, no ano passado.
“Portanto, eu pessoalmente acho desagradável quando os caras, como me parece, ficam animados e vão competir por outro país”, disse ele.
Pozdnyakov culpou as regras do COI pela onda de mudança de passaporte e disse que outras nações estavam “pressionando” e “atraindo” os atletas russos a mudar de nacionalidade. Embora autoridades do presidente Vladimir Putin tenham criticado o status neutro como discriminatório e injusto, o governo não chegou a pedir um boicote a Paris.
“Não vou nem chamar isso de vergonha, mas de traição ao meu país”, disse a treinadora de ginástica russa Valentina Rodionenko em dezembro.
Quando a nadadora Anastasiia Kirpichnikova, que treinou na Universidade Estadual de Cultura Física dos Urais, anunciou no ano passado que agora competiria pela França, o presidente da Federação Russa de Natação, Vladimir Salnikov, disse que não a julgaria, mas que “fomos criados de forma diferente”.
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No entanto, os atletas que passaram a vida inteira se aprimorando para ter uma chance nas Olimpíadas argumentam que ficaram sem escolha. Essa mudança de país nem sempre é uma declaração política, dizem eles. É apenas um caminho para a competição dos sonhos em um momento em que a Rússia é um pária esportivo global.
O país esteve sob alguma forma de sanção olímpica nas últimas quatro competições, após a revelação de um esquema de doping patrocinado pelo Estado nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014 em Sochi. Em vários momentos, os atletas russos foram excluídos ou obrigados a competir não sob a bandeira de seu próprio país, mas sob uma bandeira neutra ou com apelidos como “Comitê Olímpico Russo”.
Até então, a Rússia se considerava grande demais para fracassar nas Olimpíadas. Desde os tempos da União Soviética, o país quase sempre enviou uma das maiores delegações aos Jogos. Em Londres 2012 — a última Olimpíada que participou sem sanções —, a Rússia inscreveu 429 atletas, perdendo apenas para os EUA e o país anfitrião, o Reino Unido. Mesmo com o Comitê Olímpico Russo em Tóquio, onde competiu sem sua bandeira ou hino nacional, a equipe de 330 atletas da Rússia conquistou o terceiro maior número de medalhas, atrás da equipe dos EUA e da China.
Nem todas as federações esportivas internacionais permitiram que os russos entrassem como neutros. Então, eles buscaram opções em outro lugar.
A maratonista Sardana Trofimova, outra atleta de Yakutia, ficou de fora em dois ciclos olímpicos. Aos 36 anos, ela sabia que seu sonho de correr nos Jogos estava expirando. Por isso, Trofimova agora está representando o Quirguistão.
Ela não participou dos Jogos no Rio 2016, quando a World Athletics impôs uma proibição geral aos russos. Cinco anos depois, qualificou-se para a maratona olímpica, mas não foi uma das poucas atletas russas permitidas nos Jogos de Tóquio. Agora, com os russos completamente impedidos de participar de eventos de atletismo em Paris, Trofimova viu que sua única chance seria mudar seu passaporte.
“Sim, esta é a minha vida, meu tempo e minha decisão”, afirmou ela nas redes sociais.
Como Trofimova, muitos dos que mudaram de nacionalidade escolheram ex-repúblicas soviéticas, onde em geral é mais fácil para os russos obter um passaporte e onde o russo é amplamente falado.
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O mergulhador Igor Myalin se mudou para o Uzbequistão no ano passado para poder participar de competições no exterior. O esportista de 27 anos, que recentemente ganhou duas medalhas de ouro na Copa do Mundo de 2024 na Alemanha, disse que sente falta de sua terra natal, mas que seu sonho olímpico tem prioridade.
“Para muitos atletas, praticar esportes é o objetivo principal, e por qual país competir não é tão importante”, disse ele a repórteres em junho. “Para um atleta, o objetivo são as Olimpíadas.”
Nem todo atleta nascido na Rússia acha que a troca vale a pena. Eles não apenas sentem que estão cedendo ao que consideram bullying do Ocidente, mas também temem represálias em casa se competirem sob qualquer bandeira que não seja a russa.
Os russos da luta olímpica, ou wrestling, que dominaram o esporte ao ganhar o maior número de medalhas em 13 dos 18 Jogos Olímpicos desde a Segunda Guerra Mundial, declararam neste mês que se recusariam a viajar a Paris em protesto contra a política do COI depois de inicialmente aceitar seu convite. E o nadador Evgeny Rylov também anunciou que não defenderia as duas medalhas de ouro que conquistou em Tóquio se tivesse que competir como neutro.
“Não vou me rebaixar ao nível dos provocadores ocidentais”, disse Rylov a um canal de televisão esportivo russo. “Eu me recuso a ir aos Jogos Olímpicos até que todo esse absurdo acabe e nossa água fique limpa novamente.”
Enquanto isso, a Rússia tentou, sem sucesso, oferecer a seus atletas alguma contraprogramação às Olimpíadas. Primeiro, tentou reviver os Jogos Mundiais da Amizade, 40 anos depois de realizar o evento para os estados socialistas que boicotaram os Jogos de Verão de 1984 em Los Angeles. A competição multiesportiva, que o COI pediu que outros países boicotassem, estava programada para acontecer em setembro, até que foi recentemente adiada para o ano que vem.
Depois, a Rússia sediou os Jogos do Brics em junho. Realizado em Kazan, às margens do rio Volga, o evento foi organizado para as nações do Brics, incluindo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, ao lado de dezenas de outros países. Mas a maioria dos atletas acabou vindo da Rússia e de Belarus, com alguns eventos cancelados devido ao baixo comparecimento.
As modalidades disputadas foram dominadas por russos. O nadador artístico Alexandr Maltsev ganhou duas medalhas de ouro e comemorou com toda a pompa e circunstância que os russos são proibidos de exibir nas Olimpíadas. Ele usava o brasão russo no coração e estufou o peito ao ouvir o hino nacional.
No entanto, algo sobre a vitória nessas Olimpíadas paralelas ainda parecia vazio: em seus dois eventos, Maltsev enfrentou apenas um outro competidor.
Quando recebeu uma de suas medalhas pela Rússia, subiu ao pódio sozinho.
Escreva para Joshua Robinson em [email protected] e Georgi Kantchev em [email protected]
traduzido do inglês por investnews