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Mais de US$ 250 bilhões fugiram da China em um ano — e bem debaixo do nariz das autoridades

Residentes chineses, preocupados com o crescimento, têm usado de tudo, desde criptomoedas até obras de arte, para transferir seu dinheiro para o exterior

Por Jason Douglas The wall street Journal
Publicado em
11 min
traduzido do inglês por investnews

Residentes chineses têm transferido ilicitamente bilhões de dólares para fora do país bem debaixo do nariz das autoridades, em um momento em que o mercado imobiliário encontra-se em ruínas e as incertezas econômicas levam as pessoas a preservar sua riqueza com investimentos no exterior.  

Levar fortunas para fora da China é difícil: o país impõe controles rígidos de capital, que limitam as compras individuais de moedas estrangeiras em US$ 50 mil por ano. Os infratores podem receber multas pesadas, ou até mesmo ser presos.

No entanto, a debandada dos últimos anos parece ofuscar as saídas que ocorreram em 2015 e 2016, quando uma desaceleração imobiliária anterior impulsionou o que na época foi o maior episódio de fuga de capitais em dólares da China, de acordo com economistas e uma análise de dados do The Wall Street Journal.  

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Os cálculos do Journal sugerem que até US$ 254 bilhões podem ter deixado a China ilicitamente nos últimos 12 meses até o final de junho. Essa é uma fuga maior que a que ocorreu no país há quase uma década, quando as saídas geraram temores de uma possível crise financeira. No entanto, os comparativos dessas saídas capital são imprecisas e a fuga parece ser menor hoje, em termos da parcela da economia chinesa geral, que agora é muito maior.

Parte do dinheiro em fuga inclui receitas de exportação escondidas no exterior, e não trazidas de volta à China, a fim de aproveitar os juros mais altos em outros países, além de outras oportunidades de investimento no exterior. 

Mesmo assim, a tendência é preocupante para os formuladores de políticas chineses. Isso aumenta a pressão sobre a moeda em um momento em que as autoridades estão focadas em administrá-la rigidamente, embora as recentes tentativas de sacudir a economia com estímulos estejam impulsionando o yuan e os mercados de ações chineses, o que pode persuadir as pessoas a manterem mais dinheiro na China por enquanto.

Também ressalta a diminuição da confiança na trajetória econômica do país entre aqueles com recursos e capacidade para retirar seu dinheiro. 

Investidores insatisfeitos

As pessoas usam uma variedade de métodos testados e comprovados, mas arriscados, para contornar as restrições do governo, como enviar objetos de valor para o exterior ou pagar a mais por importações. Outros estão usando métodos mais novos, como transportar discos rígidos de computador carregados com criptomoedas para outras jurisdições e convertê-las em dinheiro vivo.

Por trás do êxodo está a pandemia de Covid-19, a repressão do governo ao setor privado e os temores generalizados de que os áureos tempos da China tenham ficado para trás. 

O crescimento econômico deve desacelerar para cerca de 3% até o final da década, de acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), de 5% agora e mais perto de 7% antes de 2020. O épico colapso imobiliário do país incinerou cerca de US$ 18 trilhões em riqueza familiar desde 2021, de acordo com o Barclays. 

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Embora as últimas medidas de estímulo de Pequim, que incluem promessas de novos gastos fiscais, provavelmente impulsionem um pouco o crescimento este ano, é muito cedo para dizer se conseguirão gerar uma recuperação econômica duradoura. 

No longo prazo, o país enfrenta o grande desafio de uma força de trabalho envelhecida e encolhida e está enredado em conflitos com o Ocidente liderado pelos EUA sobre questões que vão do comércio à segurança e tecnologia.

Autoridades do governo tentam transformar as pessoas pegas violando as regras em exemplos. Em um caso relatado pela emissora de televisão estatal CCTV em setembro, a polícia de Pequim prendeu um grupo que ajudou a movimentar no exterior 800 milhões de yuans, o equivalente a US$ 112 milhões, negociando criptomoedas.

Um caso anterior em maio envolveu uma pessoa que trabalhava ostensivamente em uma agência de viagens, mas operava um negócio ilegal de câmbio de moeda estrangeira em Pequim, informou a mídia estatal Xinhua. 

A pandemia da Covid-19 levou as pessoas a usar métodos arriscados para contornar as restrições de investimento do governo
A pandemia da Covid-19 levou as pessoas a usar métodos arriscados para contornar as restrições de investimento do governo (Bloomberg)

A Administração Estatal de Câmbio da China (SAFE, em inglês) publica registros de pessoas que foram punidas por violar controles de capital. Um homem de sobrenome Liu, de Zhejiang, fez 48 transações ilegais de câmbio, totalizando mais de US$ 3 milhões, entre janeiro de 2022 e março do ano passado, de acordo com o site da SAFE, um dos dez exemplos semelhantes publicados em abril. 

As punições incluem multas totalizando mais da metade do dinheiro envolvido e podem levar a acusações criminais.

A fuga de capitais ocorre mesmo assim, e mostra até onde as pessoas irão para obter melhores retornos, dadas as escassas oportunidades de investimento na China, disse Martin Lynge Rasmussen, estrategista sênior da empresa de pesquisa Exante Data, que estudou o fenômeno. 

“Cinco ou dez anos atrás, se você fosse chinês, poderia colocar seu dinheiro em imóveis e ter uma maneira de aumentar sua riqueza”, disse ele. “Isso não é mais atraente”, embora os recentes esforços de estímulo possam tornar as ações domésticas mais interessantes como alternativa e ajudar a reduzir a fuga de capitais, acrescentou. 

Pinturas e criptomoedas

A China começou a apertar o controle sobre a saída de capital em 2016. Na época, uma queda no setor imobiliário, um enfraquecimento da economia e uma pressão descendente sobre a moeda estimularam muitos chineses a enviar dinheiro para o exterior. Isso aumentou a pressão sobre o yuan e gerou temores de uma possível crise financeira mais ampla, caso o sentimento do investidor se voltasse decisivamente contra os mercados emergentes e os bancos detendo ativos chineses sofressem pesadas perdas.  

Tirar dinheiro da China ficou muito mais difícil, mesmo para pessoas endinheiradas com conexões no exterior em cidades ricas como Pequim, Guangzhou e Xangai, de acordo com banqueiros privados e funcionários de escritórios familiares em Hong Kong e Singapura. 

Hoje, os bancos em Hong Kong têm limites rígidos para novos depósitos em dinheiro destinados a eliminar possíveis violações do controle de capital. Todos os clientes que depositarem mais de US$ 10 mil em uma semana devem fornecer documentação mostrando a origem dos fundos, disseram banqueiros privados da cidade. 

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Para contornar as regras, alguns empresários criam empresas de fachada no exterior em nome de seus familiares, que são usadas para adquirir uma participação na empresa com sede na China, de acordo com pessoas em escritórios familiares que administram dinheiro chinês. 

Dessa forma, a empresa sediada na China pode ser redesignada como uma joint venture sino-estrangeira, que não está sujeita aos limites do governo para pessoas físicas, permitindo que seus proprietários sediados no país transfiram dinheiro para a entidade offshore na forma de dividendos e outros pagamentos. Mas movimentar dinheiro dessa maneira é demorado, disseram essas pessoas. 

A economia já em dificuldades da China enfrenta um desafio adicional de uma força de trabalho envelhecida e em declínio
A economia já em dificuldades da China enfrenta um desafio adicional de uma força de trabalho envelhecida e em declínio (Bloomberg)

Obras de arte são outro caminho. Uma pessoa em uma grande casa de leilões disse que a maioria das transações hoje é feita por quem quer tirar dinheiro da China.

O método é simples: uma pintura ou outra obra valiosa é enviada para Hong Kong e vendida em leilão. Mas, em vez de repatriar os recursos para a China continental, os fundos são mantidos no exterior em Hong Kong, em dólares americanos ou outra moeda estrangeira. De Hong Kong, que não tem controle de capital, o vendedor pode transferir o dinheiro para outro lugar.

As criptomoedas oferecem novas possibilidades de fuga de capital. Embora Pequim tenha proibido o comércio de criptomoedas em 2021, a criação de uma carteira não é ilegal. Os chineses podem usar sua moeda para comprar criptoativos com a ajuda de um facilitador. Depois de ter criptomoeda em sua carteira digital, conseguem converter esses ativos em dólares no exterior. 

Debate sobre dados

Estimar a fuga de capitais da China costumava ser uma tarefa simples. 

Como outros lugares, o país relata dados da balança de pagamentos que registram quanto dinheiro entra e sai do país. Normalmente, os recebimentos e pagamentos internacionais verificados nos dados devem somar zero em um determinado período, com apenas pequenas discrepâncias que desaparecem rapidamente. 

No caso da China, não apenas as somas não bateram, mas as lacunas também persistiram — um sinal de que algum dinheiro estava fugindo ilicitamente, sem ser declarado.

Essas somas aumentaram dramaticamente em 2015 e 2016 e atingiram o pico nos 12 meses até junho de 2017, chegando a cerca de US$ 228 bilhões. O governo respondeu apertando os controles de capital e o tamanho das lacunas colapsou. 

Quando a pandemia começou em 2020, elas começaram a aumentar novamente e dispararam em 2021 e 2022, pois as pessoas buscavam maneiras de tirar seu dinheiro — e a si mesmas — da China, para se afastarem das severas políticas da Covid-19.

Mais recentemente, as lacunas diminuíram tão drasticamente que apontaram para um pequeno influxo no segundo trimestre. Mas os economistas dizem que isso não se enquadra nas visões geralmente negativas sobre a economia chinesa. Também não se enquadra nas grandes saídas legítimas registradas em outras contas da China, o que sugere que empresas e investidores estão buscando melhores retornos no exterior. 

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Somente no segundo trimestre, as saídas líquidas de investimento direto totalizaram US$ 86 bilhões, um aumento em relação aos anos anteriores, com as empresas chinesas acelerando o esforço para gastar mais no exterior. 

Economistas como Rasmussen, da Exante Data, e Brad Setser, membro sênior do Conselho de Relações Exteriores, disseram que a incongruência é explicada por uma mudança que a China fez em 2022 na forma como calcula seus dados da balança de pagamentos. A mudança substituiu os dados alfandegários por levantamentos, que alguns economistas dizem ter o efeito de reduzir o enorme superávit comercial da China e ofuscar as saídas.

Em um comunicado, a SAFE disse que a mudança foi feita para medir “de forma mais abrangente e precisa” a balança de pagamentos do país à medida que os padrões comerciais evoluem e que especialistas de outras nações disseram que sua metodologia está “alinhada com os princípios dos dados internacionais da balança de pagamentos”.

Ajustando os dados para que fiquem mais próximos da forma como eram calculados antes, os economistas dizem que as evidências de fuga ilícita de capitais reaparecem. Usando essa medida, a lacuna nos dados de pagamentos para os 12 meses até setembro de 2022 foi de mais de US$ 370 bilhões, coincidindo com os lockdowns da Covid-19 nas principais cidades chinesas. 

A fuga de capitais medida dessa forma diminuiu desde então, mas estava bem acima de US$ 200 bilhões nos quatro trimestres até junho.

A SAFE da China disse que as lacunas estatísticas na balança de pagamentos não são incomuns para grandes economias comerciais, e também não são evidência de fuga de capitais. 

Bitcoin é uma das alternativas usadas pelos chineses
Bitcoin é uma das alternativas usadas pelos chineses (Bloomberg)

Escreva para Jason Douglas em [email protected] e Rebecca Feng em [email protected]

traduzido do inglês por investnews