China invade águas da América Latina com navios pesqueiros e esmaga produtores locais
Ao largo da costa peruana, surge um novo atrito geopolítico envolvendo o Dragão Asiático
Por três décadas, o sustento de Francisco Chiroque dependeu das lulas gigantes na costa do Pacífico desse país, uma das áreas pesqueiras mais ricas do mundo. Este ano, os resultados de sua pesca despencaram.
Chiroque e a indústria pesqueira peruana culpam as centenas de gigantescos navios pesqueiros chineses que percorrem a borda das águas nacionais do Peru. A captura de lulas do Peru caiu 70% até agora este ano, o que a indústria pesqueira diz ser resultado da pesca em escala industrial que as empresas chinesas trouxeram para os mares onde normalmente apenas pequenos barcos individuais atuam, os às vezes chamados pescadores artesanais.
“Eles pescam sem parar dia e noite”, disse Chiroque, de 49 anos, chefe da associação de pescadores de lulas em Paita, cidade na costa norte do Pacífico do Peru que abriga sua indústria de pesca de lulas. “É uma pilhagem horrível.”
Os problemas dos pescadores de lula do Peru marcam a última rodada de tensões internacionais envolvendo a frota pesqueira da China no exterior, de longe a maior do mundo. Autoridades e ambientalistas dos EUA dizem que os milhares de embarcações chinesas de tamanho industrial colocam em risco os ecossistemas e ameaçam as indústrias pesqueiras desde a África até a América Latina.
A pesca excessiva se tornou um ponto crítico de atrito geopolítico entre Pequim e os EUA, que se aliaram a países como o Peru. O governo Biden sancionou navios de bandeira chinesa pela chamada pesca ilegal, não declarada e não regulamentada, que os EUA dizem ter superado a pirataria como a principal ameaça global à segurança marítima.
A Guarda Costeira americana realizou operações contra a pesca ilegal na costa da América do Sul. Recentemente, pela primeira vez, a Guarda Costeira abordou embarcações de pesca na costa do Peru e do Equador.
“É uma concorrência desleal”, disse Elsa Vega, presidente de uma associação de pescadores artesanais do Peru. “É como Davi e Golias.”
Pequim vê sua frota de águas distantes, composta por milhares de navios fortemente subsidiados, como crucial em seu esforço para se tornar uma superpotência marítima, ao mesmo tempo em que fornece milhões de empregos e alimenta seus 1,4 bilhão de habitantes. A pesca excessiva na Ásia empurrou os navios chineses para mais longe de casa. Pequim também disse que o desenvolvimento de sua frota pesqueira é fundamental para salvaguardar os direitos marítimos da China.
O Ministério das Relações Exteriores chinês disse que a frota do país não é responsável pela diminuição das capturas de lulas, apontando que o próprio governo do Peru atribuiu o declínio às mudanças na temperatura do oceano.
O ministério disse que a China sempre respeitou a zona marítima do Peru, cumpre rigorosamente as regras para a pesca em águas internacionais e monitora de perto a posição das frotas de águas distantes. Além disso, afirmou que tem uma abordagem de tolerância zero no combate à pesca ilegal.
“A China é um país pesqueiro responsável”, disse o ministério. “A cooperação pesqueira é um destaque da cooperação China-Peru.”
O domínio pesqueiro da China alimentou uma reação negativa em países do Sul global, onde Pequim geralmente supera Washington, mas corre o risco de exagerar. Na costa de Gana, os navios chineses esgotaram pequenos peixes semelhantes à sardinha, vitais para as comunidades costeiras, de acordo com autoridades locais e conservacionistas. No Oceano Índico, os navios de atum chineses foram acusados de trabalho forçado e remoção de barbatanas de tubarão, uma prática proibida pelos EUA. Em 2016, a guarda costeira da Argentina afundou um navio chinês acusado de pesca ilegal.
“Em todos os mares do mundo, essa frota é conhecida por cometer infrações graves”, disse Alfonso Miranda, chefe do Calamasur, um grupo formado por representantes da indústria de lulas do México, Equador, Peru e Chile. “Isso pode resultar no desaparecimento dos pescadores artesanais do Peru.”
No Peru, barcos de madeira que normalmente estariam no mar agora boiam preguiçosamente ao lado de pelicanos e gaivotas na baía de Paita. Pescadores desempregados estão gastando suas economias. Alguns tentam ganhar a vida dirigindo mototáxis.
Segundo Meza, pescador de lulas de 54 anos, disse que inicialmente prestou pouca atenção aos navios chineses durante os anos abundantes, quando os peruanos pegaram tantas lulas que jogavam algumas de volta no mar.
“Nós também não somos santos”, disse ele, acreditando que os peruanos também pescavam lulas em excesso.
Meza agora passa seus dias ajudando a cuidar de seu neto. O pai do menino, também pescador, saiu para trabalhar em uma fazenda de mirtilo. Para economizar dinheiro, sua família parou de pagar contas de serviços públicos e pula o café da manhã.
“O mar é minha vida”, disse ele. “Mas a situação agora é caótica.”
O Oceano Pacífico na costa do Peru já garantiu o surgimento de civilizações antigas que enfrentaram o mar em barcos de junco. Mais recentemente, as águas frias e ricas em nutrientes estimularam uma indústria moderna de exportação de frutos do mar para todo o mundo, mas esse comércio foi afetado este ano. A empresa peruana de frutos do mar Seafrost processou apenas 25% das lulas planejadas para 2024, disse Baruch Byrne, gerente de operações da fábrica de Paita.
A primeira frota chinesa de 22 navios chegou à costa oeste da América do Sul em 2001, viajando pelo Pacífico em busca de lulas imensas, um animal voraz que pode crescer até quase três metros ao longo de uma vida útil de 12 a 18 meses.
Esses navios capturaram 17.700 toneladas de lulas naquele ano, de acordo com a Organização Regional de Gestão da Pesca do Pacífico Sul, grupo intergovernamental com sede na Nova Zelândia que inclui os EUA e a China e que supervisiona a pesca no Pacífico. Agora, os barcos de pesca chineses transportam cerca de 500 mil toneladas de lulas anualmente dessas águas.
Desde então, a frota cresceu, chegando a cerca de 500 navios. Eles usam luzes fortes para atrair lulas para a superfície à noite. Do espaço, as embarcações parecem uma cidade flutuante. Uma embarcação principal leva a pesca para a China. Outras fornecem combustível. Uma serve como hospital para os tripulantes, diz Eloy Aroni, especialista em pesca da Artisonal, organização com sede no Peru que monitora a frota.
Imagens de satélite mostram que os barcos passam grande parte do ano bem na borda das 200 milhas náuticas que fazem parte do território marítimo do Peru, circundando essa fronteira enquanto persegue as lulas.
As embarcações do Peru têm poucas chances de competir. As lulas se movem dentro e fora das águas marítimas do Peru, o que significa que, mesmo que os navios chineses não entrem nas águas peruanas, sua captura tem repercussões para os habitantes locais.
Alguns pescadores daqui dizem ter visto os navios chineses pescando dentro das águas peruanas, acusando-os de desligar seus dispositivos de rastreamento para evitar a detecção.
Em julho, pescadores locais pularam em seus barcos de madeira para cercar e insultar a tripulação de um navio industrial chinês que tentou atracar em Paita.
A indústria pesqueira diz que recebeu pouco apoio do governo da presidente Dina Boluarte, que viajou a Pequim em junho para aprofundar os laços com a China.
Hoje, as empresas chinesas possuem algumas das maiores minas de cobre do Peru, enquanto outras controlam praticamente toda a distribuição de energia na capital, Lima.
Em novembro, o líder chinês Xi Jinping deve inaugurar um megaporto de propriedade chinesa no Peru durante a cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico.
O Ministério da Produção do Peru, que supervisiona a indústria pesqueira, não respondeu a um pedido de entrevista. O ministro Sergio González minimizou o impacto da frota pesqueira chinesa, dizendo publicamente que a escassez de lulas foi causada por mudanças no oceano desencadeadas pelo fenômeno climático El Niño. A população deve se recuperar no ano que vem, disse ele.
Juan Carlos Riveros, biólogo e diretor de ciências da Oceana no Peru, organização de conservação com sede em Washington, DC, disse que, embora as lulas sejam suscetíveis às mudanças de temperatura, a pesca excessiva é a culpada. As capturas de lulas no Peru diminuíram durante o El Niño de 2016, mas não tanto quanto hoje.
“Na realidade, o que estamos testemunhando é um caso de pesca excessiva”, disse ele
Depois que terminou o ensino médio há 15 anos, pescar lulas era um dos poucos empregos em Paita para Elvis Chiroque (que não é parente de Francisco Chiroque). Naquela época, seu barco podia transportar cerca de 15 toneladas de lulas em uma semana.
Mas nos últimos anos, Chiroque, de 34 anos, notou que as lulas estavam ficando menores. E era preciso passar mais tempo fora para pegar a mesma quantidade de antes.
Durante sua última viagem em agosto, Chiroque ficou no mar por 22 dias. Voltou com uma tonelada de lulas, uma fração do necessário para cobrir os custos.
“Ficamos tristes, pensando em nossas famílias, em não conseguir ganhar dinheiro”, disse ele
Agora, o pai de três filhos planeja deixar Paita para trabalhar colhendo mangas. “Temos que fazer alguma coisa”, disse ele.
traduzido do inglês por investnews