Economia
Rússia pode dar calote? Entenda quando um país deixa de pagar credores
Juros e dívidas elevadas, instabilidade política, crises bancárias e recessão podem levar ao não pagamento de dívidas.
Desde que o conflito entre Rússia e Ucrânia começou, as três principais agências de classificação de risco globais reduziram a nota de crédito da Rússia, o chamado rating, que funciona como uma espécie de termômetro para o mercado identificar a capacidade de países ou empresas honrarem suas dívidas.
S&P Global, Fitch e Moody’s rebaixaram o país para um território considerado “junk“, ou lixo em português, que é a categoria considerada especulativa. Isso significa que, na avaliação das agências, há uma grande chance do país não arcar com os compromissos financeiros.
Ao rebaixar a nota da Rússia de ‘B’ para ‘C’ (considerado o grau especulativo), a agência Fitch, por exemplo, afirmou que o novo rating reflete a visão de que um “default” (calote) soberano é iminente.
O rebaixamento da Rússia ocorre à medida que sanções são impostas por nações ocidentais com o objetivo de retaliar economicamente o país e forçá-lo a retirar suas tropas da Ucrânia.
No início de março, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou, por exemplo, a proibição às importações de petróleo e outras fontes de energia da Rússia. Além disso, diversas empresas decidiram deixar o país ou interromper o fornecimento de produtos e serviços – iniciativas que implicam em menos dinheiro na economia local.
“O país iniciou a guerra com os cofres bem cheios, em torno de US$ 650 bilhões só de reservas internacionais. Mas as sanções, principalmente a exclusão do país do sistema swift (sistema de pagamento internacionais), colocam em dúvida a real efetivação do pagamento dos títulos de dívida emitidos e que estão nas mãos de investidores globais”, explica João Beck, economista e sócio da BRA.
A Rússia pode dar mesmo um calote?
Mesmo diante das preocupações sobre a capacidade da Rússia em honrar com os pagamentos, vale lembrar que, embora as notas dadas por agências sejam um indicativo importante para o mercado, não necessariamente o cenário previsto por elas irá se concretizar. “É uma mera opinião de uma empresa privada. Os investidores não são obrigados a seguir a avaliação”, explica Adriano Gianturco, coordenador do curso de Relações Internacionais do Ibmec.
Além disso, na visão do especialista João Beck, é improvável que ocorra um calote econômico geral por parte do país. O economista faz referência ao posicionamento de Robert Kahn, diretor de estratégia global da consultoria Eurasia Group, que fala em “calote político” em vez de financeiro.
Para Kahn, a Rússia, que deve U$15 bilhões para os Estados Unidos, “forçaria” o calote ao país norte-americano em função do isolamento de todo o sistema econômico. “Já para alguns países mais amigáveis, ela poderia pagar a dívida se financiando, vendendo petróleo para China e Índia, por exemplo”, acrescentou Beck.
O economista Keller pontua ainda que, embora a Rússia esteja queimando parte de suas reservas (superior aos US$ 600 bilhões), o país não deve zerar sua poupança, pelo menos no curto prazo, desde que o fim do conflito se estabeleça o quanto antes.
Até porque, lembra o especialista, mesmo com dinheiro em caixa, o país encontra dificuldades para acessar as reservas por conta das sanções internacionais. “E mesmo as empresas russas que possuam dinheiro em caixa, elas já começam a ter resistência do mundo em conseguir pagar. Os credores não estão aceitando o pagamento e os russos estão ficando inadimplentes, não por falta de recursos para pagar, mas pela não aceitação e bloqueio do mundo a tudo que for dinheiro deles, inclusive, pagamento de dívidas”, acrescentou.
Independentemente do que vai ocorrer, o fato é que o rebaixamento das notas é um fator prejudicial. Enquanto o “grau de investimento” (que é quando um país ou empresa tem uma capacidade extremamente forte de honrar compromissos financeiros) funciona como uma “carta fiança” de que o país não corre o risco de dar calote na dívida pública, ao perder esse grau, Jimmy Keller lembra que o país sai da categoria “sem risco”, para um país “especulativo”, como aconteceu com a Rússia e com o próprio Brasil em 2015. “E investir em um país assim pode trazer riscos elevados de crédito em detrimento do retorno sobre o capital”, explica.
Na prática, ao receber esse selo de mal pagador, o governo vai precisar pagar uma remuneração melhor se quiser continuar buscando recursos junto aos credores. “Por conta do risco maior, o Estado terá mais dificuldades para vender títulos públicos (para captação de dinheiro) e, por isso, terá que pagar juros maiores aos investidores”, explica Adriano Gianturco, do Ibmec.
Outro efeito danoso é a fuga de capital. Keller acrescenta que os grandes fundos de investimento mundiais têm políticas de risco que não permitem a alocação de recursos em países que não têm determinada nota de grau de risco. “Quando um país tem sua nota rebaixada para abaixo do limite estabelecido nesta política de alocação, imediatamente os ativos precisam ser liquidados e as posições fechadas, levando o mercado a um sell-off (venda) e uma forte pressão no câmbio, dada a fuga de capital”.
Como os países adquirem dívidas?
Os países têm duas maneiras de captar dinheiro. Uma delas é por meio da venda de títulos públicos, que ocorre quando os investidores (pessoas físicas, empresas e até outros governos) emprestam dinheiro ao Estado e depois de um tempo recebem o recurso de volta acompanhado de um rendimento.
Outra possibilidade é recorrer ao mercado internacional. Para isso, os países buscam, por exemplo, empréstimos junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), do qual é necessário ser membro. Ao todo 189 países são membros, incluindo Brasil e Rússia.
O economista da Keller Capital lembra que como os países tomam dívida no mercado internacional atrelada ao dólar, é fundamental que o câmbio e a balança comercial sejam favoráveis ao país para honrar aquela dívida.
“Como esses países não podem emitir dólares, a sua capacidade de honrar os compromissos em moeda estrangeira está diretamente ligada a capacidade de trocar produtos e serviços por dólar. Por isso é importante que o país mantenha seu câmbio em grau de paridade, que é a relação de poder de compra em moedas distintas”, explica.
O que pode gerar um calote?
No caso da Rússia, as sanções internacionais geram dúvidas sobre a capacidade do país de honrar com os seus pagamentos, mas diversos fatores podem levar um país a dar o calote efetivamente: juros e dívidas elevadas; instabilidade política (guerras, quedas de governo, golpes, impeachment); crises bancárias; estagnação ou recessão econômica por um período prolongado; dependência econômica de uma só commodity e desastres naturais (especialmente em países menores) estão entre eles, segundo especialistas.
Keller lembra, porém, que é necessário analisar a composição dos fatores, ter uma dívida alta, por exemplo, não significa, necessariamente, que o país deixará de honrar com os compromissos financeiros.
Ele lembra que o Japão, por exemplo, é um dos países que tem o maior percentual de dívida em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) – superior a 250% -, mas é considerado de alto grau de investimento. Já o Brasil, que tem atualmente uma dívida superior a 90% ao PIB, é considerado grau especulativo, ou seja, tem uma maior probabilidade de dar calote na dívida pública.
“O Japão tem a terceira maior reserva de dólares do mundo e está entre os top10 do mundo em reservas de ouro. Ou seja, ele tem um lastro de pagamentos para honrar a dívida. Para além disso é um país com nível de emprego, inflação e renda compatíveis com um país de primeiro mundo”, explica.
Para o especialista, o maior risco está em economias que não têm dominância fiscal. “São fatores macroeconômicos (como câmbio e política macroeconômica) que determinam o grau de investimento e a capacidade de honrar, o Japão é altamente endividado, mas é um país austero, que cumpre a cartilha de juros, moeda e emprego à risca e mantém a divida administrativa, além de ter muita reserva”, afirma Keller.
Quando é calote?
Nesse sentido, Adriano Gianturco, do Ibmec, explica ainda que nem sempre deixar de pagar uma dívida é sinônimo de calote. É possível, por exemplo, que um país deixe de honrar com um pagamento por meros erros administrativos ou, ainda, atrase parcelas por dificuldades financeiras momentâneas, mas que depois de um tempo são regularizadas.
Entretanto, se não tiver mais condições de honrar com a dívida é que ocorre o “default”, ou seja, o calote de fato. Nesse cenário, o docente do Ibmec explica é bastante difícil reaver uma dívida soberana.
“Quando alguém dá calote, seja pessoa física ou jurídica, o processo para receber o dinheiro é complicado, mas tem uma jurisdição acima disso. Porém, nos casos internacionais, não tem um poder acima, se o Estado soberano declarar default não será um indivíduo comum que vai conseguir o dinheiro de volta do Estado”, explicou o especialista ao lembrar, por exemplo, dos credores da Argentina que esperam até hoje pelo pagamento de uma dívida no valor de US$ 44 bilhões.
Países caloteiros
A lista de países que já deram calote ao longo da história é vasta. Entre os casos mais recentes está, por exemplo, a Argentina em 2001, com um calote de algo em torno de US$ 95 bilhões.
Entretanto, na última sexta-feira, o conselho executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI) aprovou um acordo de cerca de US$ 45 bilhões com o país. O acordo de facilidade estendido de 30 meses, que substitui um programa anterior de US$ 57 bilhões de dólares acertado em 2018, permitirá o desembolso imediato de US$ 9,650 bilhões, segundo informações da Agência Reuters.
Outro caso emblemático é o da Grécia em 2010, considerado por muitas especialistas o maior calote soberano da história moderna, com uma redução do valor devido, via reestruturação de dívida, em torno de US$ 140 bilhões.
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