Negócios
Fraude na Americanas era caso de polícia. E virou de fato
Investigação da Polícia Federal define os personagens por trás da falcatrua. Entenda como a antiga diretoria roubava os acionistas
Já era caso de polícia, mas a PF materializou esse fato, na última quinta-feira (27). A fraude contábil de R$ 25,3 bilhões que configura o caso Americanas já estava na história do mercado brasileiro. Agora as investigações caminham para definir os personagens dessa história, dar nomes aos bois.
A apuração da Polícia Federal, que contou com a delação de ex-funcionários da varejista, descobriu que as orientações para maquiar o balanço eram documentadas em e-mails e conversas de WhatsApp – convenhamos, pouca sofisticação para quem quase quebrou uma das principais redes do país.
Até o momento, dois nomes ganharam as manchetes: o ex-CEO Miguel Gutierrez e Anna Saicali, ex-comandante da B2W. Gutierrez chegou a ser preso na Espanha na véspera, mas foi solto no sábado (29). Anna se entregou em Portugal neste domingo (30) e desembarcou na manhã desta segunda-feira (1) no Brasil.
Outra dezena de ex-executivos e funcionários foram alvos de busca e apreensão. A PF afirma ter sequestrado cerca de R$ 500 milhões em bens dos investigados, ou menos de 2% do prejuízo que a Americanas teve com a fraude.
LEIA MAIS: A crise da meritocracia no pós-Americanas
A investigação da PF, juntamente com o Ministério Público Federal, confirma o que o mercado e a própria Americanas tinham concluído. O desvio de recursos acontecia por meio do “risco sacado” – uma operação em que um fornecedor antecipa o pagamento que tem a receber da varejista com um banco parceiro dela.
Sejamos mais claros. Uma empresa de televisão vendeu um lote de produtos para a Americanas. A praxe desse tipo de negócio é que a varejista só pague lá na frente, depois de 90 dias, digamos; só que a fabricante de TVs precisa do dinheiro antes para seu capital de giro. Essa fornecedora vai até um banco parceiro da Americanas e pede para receber antecipado, com certo desconto.
Com isso, a dívida que a Americanas tinha que pagar para o fornecedor ficava com o banco. A Americanas estava rolando essa dívida na base da confiança – e certa vista grossa dos bancos – e não deixava claro no balanço dela o tamanho do problema.
Os executivos “esqueciam” de colocar ali que a empresa devia cada vez mais dinheiro, de modo a garantir seus bônus anuais. Estavam roubando os donos da empresa – no caso, seus milhares de acionistas. Isso inclui gente que tinha papéis da Americanas de forma indireta, via fundos de investimento. E que viram os valor de suas cotas cair quando o rombo contábil foi a público.
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), vale notar, sempre se mostrou contrariada com o método como algumas empresas, entre elas a Americanas, contabilizavam o risco sacado no balanço.
Outra fraude identificada foram os incentivos comerciais dados a fornecedores, chamada “verba de propaganda cooperada” (VPC). É um acordo em que um fornecedor pode dar um desconto ou outra condição comercial para colocar publicidade de seu produto dentro da loja. O problema, neste caso, é que os diretores teriam registrado no balanço transações que nunca existiram.
“A investigação revelou, ainda, fortes indícios da prática do crime de manipulação de mercado, uso de informação privilegiada, também conhecido como ‘insider trading‘, associação criminosa e lavagem de dinheiro”, disse a Polícia Federal, em comunicado.
Na acusação do uso de informações privilegiadas, a PF aponta que o grupo de ex-executivos vendeu R$ 288 milhões de ações da Americanas antes de a fraude vir à tona.
Gutierrez, por exemplo, tinha apenas vendido R$ 13 milhões em papéis até julho de 2022. Após esse mês, ele soube que seria trocado por Sergio Rial no comando da empresa – ato contínuo, foram enviadas ordens de venda que totalizaram R$ 171,8 milhões até 11 de janeiro, no que os policiais consideraram uma movimentação “totalmente atípica”. No dia 12, após a divulgação da fraude, os papéis tombaram 77% na bolsa.
Ainda de acordo com a investigação, Anna Saicali negociou R$ 59,6 milhões, enquanto outro ex-diretor, José Timotheo de Barros, vendeu R$ 20,7 milhões – outros ex-funcionários venderam cifras que vão de R$ 800 mil a R$ 5,5 milhões.
Efeito
Desde 11 de janeiro, quando Serio Rial, então CEO da Americanas, disse ter encontrado “inconsistências contábeis” na varejista, todos os agentes de mercado buscam culpados. Numa nota divulgada nesta quinta, a varejista afirmou: “A Americanas reitera sua confiança nas autoridades que investigam o caso e reforça que foi vítima de uma fraude de resultados pela sua antiga diretoria, que manipulou dolosamente os controles internos existentes”.
O estrago na Americanas fechou mais de 130 lojas e tirou pelo menos 10 mil empregos e bilhões de bancos e do trio de ricaços Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles. Em uma negociação que se estendeu por todo o ano passado, fechou-se um acordo de salvação da Americanas de R$ 24 bilhões – metade com a conversão de dívida em ações da empresa e outros R$ 12 bilhões em injeção de dinheiro no caixa.
Veja também
- CVM acusa ex-CEO e outros sete ex-executivos da Americanas de uso de informações privilegiadas
- Sicupira e filho de Lemann deixam conselho da Americanas, diz fonte
- Em recuperação judicial, Americanas quer vender parte de ativos da fintech Ame
- Polícia Federal indica 41 ex-funcionários da Americanas em investigação sobre fraude
- Beto Sicupira lidera aporte do 3G para salvar a Americanas; desembolso foi de R$ 6,8 bilhões