Não é de hoje que a cultura da meritocracia é tema de debate entre especialistas, pelo impacto que a super competição causa nos executivos. Mas o tema ganhou mais atenção, inclusive dos próprios administradores dessas companhias, depois da crise deflagrada pela fraude contábil da Americanas.
Afinal, a varejista era considerada uma das principais representantes brasileiras dessa linha de gestão, que envolve resultados fortes obtidos a partir de muita autonomia aos seus executivos, metas desafiadoras e muita competição interna.
“As empresas no Brasil e no mundo estão voltadas para a meritocracia, mas também para o impacto que a cultura muito voltada para o desempenho pode causar”, afirma Ana Gusmão, diretora de soluções de Gente da Falconi. O risco é criar um ambiente tóxico, muito estresse e, em casos extremos, um incentivo para que dados sejam mascarados com o propósito de beneficiar ou proteger executivos, diz ela, que preferiu não se manifestar especificamente sobre o caso Americanas.
Há exemplos famosos. Em 2015, a Volkswagen admitiu ter instalado um software que maquiava em até 40% as emissões em modelos a diesel vendidos nos EUA e ter enganado a Agência de Proteção Ambiental americana (EPA). Em 2016, o banco Wells Fargo sofreu com o escândalo da abertura de contas falsas.
No Brasil, a Vale foi punida por negligenciar normas de segurança e ter deixado de interromper as atividades na mina do Feijão – o que culminou na tragédia de Brumadinho.
São mostras de “competitividade ruim”, nas quais as metas de curto prazo – mensais ou trimestrais – acabam privilegiadas Esses objetivos agressivos se tornam insustentáveis no longo prazo. Erro ainda comum em muitas companhias.
No caso da Americanas, não é possível fazer uma relação direta entre a cultura da meritocracia e a fraude descoberta no ano passado. A construção de um rombo de R$ 40 bilhões ao longo de anos não é algo trivial – implica o envolvimento de mais fatores.
Mas o episódio, sem dúvida, esquenta a discussão. A Americanas é uma das investidas dos empresários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, conhecidos por obter resultados acima da média por meio de uma gestão agressiva em todas as empresas por onde passaram. São basicamente os papas da meritocracia no Brasil.
A meritocracia, de qualquer forma, pode ser uma prática saudável, diz o consultor Joaquim Santini. O problema é que muitas empresas acabam estimulando uma espécie de “guerrilha interna”. Isso acontece quando são definidas metas individuais agressivas, que ditam a remuneração dos executivos independentemente do que está ocorrendo no restante da empresa.
“A rivalidade é da natureza humana. Se a empresa fortalece isso, muita coisa pode acontecer˜, diz o consultor. Um cenário muito comum é que o tiro saia pela culatra e, em vez de alta produtividade, a competitividade resulte em burnout, falta de engajamento e perda de talentos.
Santini cita um estudo publicado na revista Psicologia: Organizações e Trabalho, em 2021. A pesquisa apontou uma relação direta entre meritocracia mal aplicada e o aumento de transtornos mentais entre trabalhadores brasileiros. Segundo esse estudo, a prevalência de burnout foi significativamente maior entre os trabalhadores submetidos a práticas meritocráticas injustas, atingindo uma média de 29%, contra 14% em ambientes com práticas meritocráticas que os autores do estudo entenderam como adequadas.
Ana Gusmão, da Falconi, ressalta um movimento que algumas empresas começam a fazer: trocar as metas individuais pelas coletivas. E também da adoção de metas mais qualitativas. “É justo reconhecer o desempenho do colaborador, mas essa análise tem um viés: nem sempre as pessoas têm as mesmas oportunidades dentro das companhias”, diz.
É verdade que a maior parte das empresas no Brasil ainda opera sob um modelo de gestão centralizada, o que acaba inibe a inovação e a criatividade, diz Santini. E quando tentam sair desse estado de “letargia” muitas acabam fazendo uma transição descoordenada.
O ponto mais sensível – e muitas vezes negligenciado – é a definição de uma cultura organizacional clara, ou seja, o conjunto de práticas, rituais e parâmetros éticos, que forma a linha mestra da administração. E que ela conte com a adesão unânime de todo o board, algo que, nem sempre acontece. A definição de controles e da alçada de cada nível hierárquico são alguns dos elementos que podem impedir excessos na busca pelo cumprimento das metas.
Em outras palavras, o executivo deve ter autonomia, mas precisa enxergar os sinais vermelhos para determinadas práticas. “A autonomia é uma das principais razões para o engajamento. Mas, para que a empresa possa promover isso, é preciso definir uma cultura clara do que é tolerado, inclusive para o CEO”, explica Ana.
Na Americanas, a nova administração já começou a refletir sobre esse assunto. Entre os pontos em avaliação, estão o tempo de permanência dos principais executivos nos cargos e os superpoderes dos CEOs. Ainda que seja considerada prioritária, essa agenda depende de uma virada financeira da companhia, hoje sob recuperação judicial.
Em nota, a Americanas reiterou ser uma empresa credenciada em todos os principais órgãos de governança do país e no mundo, incluindo índices como o ISE-B3 e o Dow Jones Sustaintability Index. “A nova gestão esclarece que a fraude perpetrada na Americanas configurou a prática de manipulação dolosa de controles internos, que burlou os sistemas de governança existentes. A consolidação da nova Americanas se dará a partir da construção de uma única cultura, um mesmo jeito de ser, agir e pensar, permeado pela ética em todos os níveis.”
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