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A China está construindo 50 mil quilômetros de ferrovias de alta velocidade — que talvez nem use

A expansão resume a visão de Xi para o futuro da nação, com foco na tecnologia impulsionada pelo governo

Por Brian Spegele The wall street Journal
Publicado em
13 min
traduzido do inglês por investnews

Em seu primeiro dia no cargo, o líder Xi Jinping herdou a ambiciosa missão de construir 16 mil quilômetros de ferrovias de alta velocidade para ligar as maiores cidades da China. Ele abraçou esses planos e os superdimensionou.

O resultado 12 anos depois é uma das maiores obras públicas da história, que em breve ultrapassará 48 mil quilômetros de ferrovias de alta velocidade. Para muitos de seus cidadãos, a vasta rede é um dos sinais mais claros do progresso do país, especialmente em comparação com os EUA, que têm tido dificuldade para colocar em prática algum trem de alta velocidade. Para que ninguém se esqueça a quem agradecer, os melhores trens são chamados de “Rejuvenescimento”, para reforçar a promessa de Xi de restaurar o poder nacional da China.

A construção resume a visão de Xi para o futuro da nação, com foco em tecnologia avançada impulsionada por gastos do governo. Os líderes chineses já priorizaram o aumento da riqueza individual para manter a população feliz. O investimento colossal de Xi em trens é parte de um plano do Partido Comunista de retorno às raízes, enfatizando os benefícios coletivos do Estado.

O plano segue um modelo econômico desgastado, baseado na manutenção do crescimento por meio de gastos com infraestrutura — embora a China já tenha grande parte do que precisa.

Ele está se tornando uma draga gigante de dinheiro. A China gastou mais de US$ 500 bilhões em novos trilhos, trens e estações nos últimos cinco anos, enquanto a operadora ferroviária nacional do país, a China Railway (CR), está se aproximando de US$ 1 trilhão em dívidas e outros passivos. Para manter os pagamentos da dívida são necessários US$ 25 bilhões anualmente.

Embora o número de passageiros tenha se recuperado após o fim das restrições da Covid-19, aumentar esse número será especialmente desafiador nos próximos anos, já que a população chinesa deve encolher em cerca de 200 milhões de pessoas nas próximas três décadas. Algumas das linhas mais recentes são, na verdade, duplicamentos das linhas mais antigas. 

A expansão agora se estende a cantos mais serenos, no interior da nação chinesa, como o condado de Fushun, província central de Sichuan, onde a população de 700 mil residentes, principalmente rurais, vem encolhendo há anos. Os primeiros trens de alta velocidade chegaram lá em 2021, e agora existem pelo menos 12 estações ferroviárias de alta velocidade em um raio de cerca de 65 quilômetros no condado e arredores.

Em uma tarde recente, a estação de Fushun estava praticamente deserta, com cerca de 20 viajantes circulando em uma sala de espera cavernosa com assentos para mil pessoas. 

Outra estação ainda mais nova, a alguns quilômetros, estava igualmente vazia. Na praça em frente, Liu Chuanfu, de 50 anos, vendia bolinhos de arroz por 40 centavos a tigela. 

Liu percorreu a China por décadas como trabalhador da construção civil, inclusive em uma estação ferroviária de alta velocidade em uma rica cidade costeira. À medida que a economia desacelerava, o salário de Liu caiu 40%. Recentemente, ele voltou para casa em Sichuan, onde suas despesas são menores.

Como muitos outros chineses, Liu elogiou a conveniência do sistema ferroviário de alta velocidade. E logo depois questionou quanto mais o país deveria construir. 

“Já estamos saturados”, disse ele. 

História de crescimento

Os mais de 48 mil quilômetros de ferrovias de alta velocidade da China já são mais do que suficientes para circundar o globo. A China Railway prevê adicionar quase 24 mil novos quilômetros até 2035, a um custo de centenas de bilhões de dólares.

Esses gastos imensos são uma característica da história de crescimento da China, com o investimento representando cerca de 42% de seu produto interno bruto, em comparação com 26% globalmente. 

“Se você quer ficar rico, primeiro construa as estradas”, disse Xi para justificar os gastos com transporte, incluindo trens de alta velocidade — não importa o custo. 

Os EUA, por outro lado, têm apenas um serviço muito limitado na Costa Leste, que talvez pudesse ser considerado um trem de alta velocidade. A construção de uma linha de 800 quilômetros de Los Angeles a San Francisco, com custos ultrapassando os US$ 100 bilhões, ainda não tem data certa para conclusão. Embora as definições variem, os trens de alta velocidade normalmente circulam de 200 a mais de 350 quilômetros por hora. 

O desafio para a China é que esses trens são muito mais caros do que as alternativas, como trens ou ônibus tradicionais, que muitos economistas acreditam serem suficientes para grande parte do país.

O trem de alta velocidade faz mais sentido financeiro em áreas densamente povoadas, onde os viajantes pagarão mais caro para chegar ao seu destino rapidamente.

A linha que conecta Xangai e o centro tecnológico de Hangzhou, lar do Alibaba, teve uma média de cerca de cem mil passageiros todos os dias durante sua primeira década entre 2010 e 2020, de acordo com a mídia estatal.

Uma seção de tamanho semelhante que atravessa o condado de Fushun relatou uma média de apenas nove mil viajantes diários desde a inauguração em 2021. Cabe destacar que isso inclui o período até o final de 2022, quando a China estava sob rígidos controles da Covid-19, o que pode distorcer a conta.

Ao todo, os passivos da China Railway chegaram a um recorde de cerca de US$ 860 bilhões em setembro. A dívida total vinculada à expansão ferroviária do país é ainda maior, pois governos locais já endividados estão sendo obrigados a arcar com muitos dos custos de novos projetos. Com o tempo, os custos de manutenção devem aumentar. 

O risco de a operadora ferroviária dar um calote nos empréstimos é baixo, dado o forte apoio do governo chinês. E os chineses defensores da construção dizem que os trens rápidos criam efeitos indiretos positivos, como reduzir a poluição dos carros movidos a gasolina, encurtar os tempos de viagem e promover a urbanização. 

No entanto, à medida que o governo busca projetos que simbolizem seu status de potência líder, no nível individual muitos cidadãos estão se sentindo mais pobres e inseguros com relação ao futuro. Os investimentos ferroviários também desviam recursos de iniciativas como a construção de uma rede de segurança social mais forte, que, segundo economistas, é necessária para ajudar a população envelhecida e aumentar o consumo doméstico no longo prazo.

Zhao Jian, estudioso da Universidade Jiaotong de Pequim que critica a construção de ferrovias de alta velocidade, argumenta que a China está fechando os olhos para os perigos financeiros do sistema. Ele disse que seria melhor para o país ter construindo apenas alguns milhares de quilômetros de ferrovias de alta velocidade em suas áreas mais densamente povoadas. Centenas de bilhões de dólares poderiam ter sido investidos em ferrovias tradicionais, que também podem lidar com carga, e em mais pesquisas em áreas como chips avançados.

Os gastos com trens também podem prejudicar os esforços para aumentar as oportunidades econômicas para o povo chinês no longo prazo, com centenas de milhões de pessoas em todo o país sem acesso à educação.

“Basta fazer a análise de custo-benefício”, disse Scott Rozelle, economista da Universidade de Stanford que estuda o desenvolvimento chinês.

Esses esforços levam anos para dar frutos, enquanto a construção do sistema de trens oferece um impulso imediato a uma economia que tem tido dificuldade para manter as pessoas empregadas, disseram economistas. 

A mídia estatal se concentra nos novos trens como feitos da engenharia chinesa que criam empregos bem remunerados. Em locais de até 4,2 mil metros acima do nível do mar, um dos projetos ferroviários mais caros da China está em andamento, ligando a capital do Tibete, Lhasa, à cidade central de Chengdu, em Sichuan, a um custo de mais de US$ 50 bilhões.

“Nossa aldeia tem mais de 30 pessoas trabalhando nas ferrovias”, disse à mídia estatal um zelador de uma estação no Tibete ao longo da nova linha. 

Embora não sejam tecnicamente de alta velocidade, os trens circulariam a cerca de 160 quilômetros por hora — para um tempo total de viagem de 13 horas. Isso ainda é muito mais do que as duas horas de voo entre Chengdu e Lhasa, com muitas opções diárias. Os voos podem custar apenas US$ 50 por trecho, dificultando a competição dos trens. 

Assentos baratos

A China diz que pode fazer com que suas ferrovias sejam mais viáveis economicamente. Na última década, Pequim buscou uma série de reformas para fazer com que suas ferrovias operassem mais como empresas, abolindo os departamentos governamentais que há muito administravam os trens do país e inaugurando a China Railway em 2019. 

Um esforço para reduzir as despesas gerais ajudou a CR a obter um lucro de cerca de US$ 460 milhões no ano passado, depois de perder cerca de US$ 25 bilhões de 2020 a 2022, durante a pandemia. Seus resultados no ano passado foram impulsionados por mais de US$ 1 bilhão em “outras receitas”, dado esse que, na China, normalmente inclui subsídios estatais. 

Algumas de suas duas dúzias de unidades operacionais principais estão enfrentando sérias dificuldades. Sua maior subsidiária, com sede em Sichuan, perdeu US$ 1 bilhão em 2023 quando ia se expandindo para áreas rurais e cidades menores no interior.  

A CR e o Ministério das Finanças não responderam aos pedidos de comentários. O contador-chefe da empresa disse anteriormente que leva a sério seus problemas de dívida e que os riscos financeiros são administráveis, destacando a qualidade de seus ativos. 

Os esforços para aumentar a lucratividade são limitados pelo desejo de manter os preços das passagens baixos, o que garante aprovação para Xi e o governo. Um estudo realizado por acadêmicos chineses no ano passado mostrou que os preços das passagens de trem de alta velocidade na China eram menos de um quarto do custo médio dessas passagens globalmente.

Os trens se tornaram um ponto de orgulho nacional para muitas pessoas, incluindo Zhang Jianbo, que saiu da estação de Fushun em uma manhã recente após uma viagem de negócios com sua esposa a Chengdu. Se tivessem usado o carro, sua passagem de US$ 13 para a viagem de mais de 200 quilômetros não teria coberto os pedágios da rodovia, sem falar da gasolina. 

Muitos chineses resistem ao aumento de passagem, vendo a rede como um serviço público. Quando a CR anunciou aumentos de até 20% para algumas linhas no início deste ano, houve muitas críticas on-line. 

Ao todo, no ano passado, os viajantes fizeram 3,7 bilhões de viagens nas ferrovias do país, incluindo trens de alta velocidade e trens tradicionais. 

Zhao, o estudioso de Pequim, disse que muitas linhas chinesas estavam operando menos de 16 pares de trens diariamente em ambas as direções, uma fração de sua capacidade. Embora a CR tenha relatado um crescimento de 18% no número de passageiros no primeiro semestre de 2024 em comparação com o ano anterior em meio a um boom do turismo doméstico, suas receitas operacionais ficaram praticamente estáveis no mesmo período. 

Rotas duplas

A construção inicial de ferrovias de alta velocidade, sob o antecessor de Xi, Hu Jintao, buscou ligar as maiores e mais ricas cidades da China, usando tecnologias importadas do Japão e da Europa. 

A rota Pequim-Xangai, inaugurada em 2011, prosperou. Uma unidade listada da CR que opera o serviço entre as cidades teve lucros de mais de US$ 1,5 bilhão no ano passado. 

O país está agora praticamente duplicando algumas rotas. Os trens de alta velocidade operam há anos entre as cidades de Chongqing e Kunming, no interior, uma viagem que dura cerca de cinco horas. A CR diz que uma nova linha de US$ 20 bilhões que está sendo construída entre as cidades, seguindo um caminho diferente, reduzirá o tempo de viagem para cerca de duas horas, ao mesmo tempo em que apoiará a economia regional e promoverá a unidade nacional.

Agricultores colhem batata-doce e arroz seco sob os trilhos de uma linha de trem de alta velocidade no condado de Fushun. Foto: Gilles Sabrie/WSJ

Essa rota em breve trará trens de alta velocidade para o condado de Gao, em Sichuan, ao sul de Fushun. Na sede do condado, os promotores imobiliários estão erguendo novos blocos de apartamentos em um distrito que abrigará sua estação ferroviária de alta velocidade.

A população do condado de Gao de cerca de 375 mil, incluindo muitos criadores de porcos e produtores de grãos, encolheu quase 10% desde 2019, pois os moradores deixavam a região em busca de trabalho em outros lugares. A produção econômica per capita é de dois terços do nível nacional.  

A área não carece de conectividade. Trens de alta velocidade passam pela cidade de Yibin, 40 minutos ao norte. A metrópole de Chengdu, com 20 milhões de habitantes, fica a cerca de duas horas.

O maior problema para o condado de Gao e para os moradores de suas 200 aldeias é a falta de emprego.

“Se você é trabalhador e quer ganhar mais dinheiro, precisa encontrar trabalho fora”, disse uma moradora cuja casa na zona rural fica à sombra dos trilhos elevados da nova linha. Ela disse que as autoridades garantiram que os trens que passarão em breve não serão muito barulhentos.

Na vizinha vila de Luojia, a construção da linha acelerou o declínio da comunidade, disseram os moradores, já que o governo requisitou terras para trilhos e para outro projeto de atualização do sistema de abastecimento de água local. 

“Mais e mais pessoas foram para outro lugar”, disse Hu Mingqun, de 62 anos, que administra um centro de saúde da aldeia com o marido. “Aqueles que ficam em casa para plantar não ganham muito dinheiro porque suas terras encolheram.” 

Ainda assim, Hu disse que gostava de pegar o trem de alta velocidade para visitar sua filha em outra província e confiava que o sistema acabaria por melhorar a vida na China.

Escreva para Brian Spegele em [email protected]

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