A questão das apostas esportivas nos EUA
Menos de seis anos depois que uma decisão da Suprema Corte abriu caminho para apostas esportivas generalizadas nos EUA, as ligas de esportes enfrentam uma onda de escândalos
O esporte americano passou mais de um século mantendo as apostas o mais longe possível, em nome da preservação da pureza competitiva e do combate ao escândalo e à corrupção.
Agora, menos de seis anos depois que a Suprema Corte abriu as portas para que os estados adotassem as apostas esportivas legais, as principais ligas dos EUA já estão enfrentando os lados mais sombrios dessa atividade com frequência alarmante. E no centro dos problemas está a população cuja capacidade de apostar é a mais severamente restringida: os próprios atletas.
Só nas últimas duas semanas vimos o envolvimento de jogadores das principais ligas profissionais e universitárias em uma avalanche de escândalos de jogos de azar que mostraram o quão perigoso o novo cenário se tornou.
No mês de março, a NBA, Associação Nacional de Basquete, recebeu reclamações de jogadores e de um treinador sobre a crescente influência das apostas e seus perigos em potencial. Dias depois, o atacante Jontay Porter, do Toronto Raptors, se tornou alvo de uma investigação da liga por supostas atividades suspeitas de apostas. A NFL, a liga de futebol americano, por sua vez, suspendeu dez jogadores envolvidos com apostas apenas no ano passado.
As polêmicas se estenderam também às ligas universitárias. Nas preparações para o March Madness — o maior evento de apostas esportivas dos Estados Unidos — o time de basquete masculino da Universidade Temple foi sinalizado pela proeminente empresa de vigilância de jogos de azar, a U.S. Integrity, por atividades de apostas suspeitas em seus jogos.
A situação ficou preocupante o suficiente para que o presidente da Associação Atlética Colegiada Nacional (National Collegiate Athletic Association, a NCAA), Charlie Baker, ampliasse na quarta-feira o pedido de sua organização por uma proibição nacional de apostas baseadas no desempenho de atletas universitários. Ele acrescentou que “estes últimos dias mostram que há mais trabalho a fazer”.
No final de março, um cenário de pesadelo na MLB, a principal liga de beisebol, também foi um lembrete de que, mesmo com a proliferação do jogo legal, o jogo ilegal nos EUA continua sendo uma força potente. O astro do Los Angeles Dodgers, Shohei Ohtani, o atleta mais bem pago da história do esporte americano, se viu envolvido em um escândalo de apostas decorrente da associação de seu intérprete de longa data com uma suposta casa de apostas ilegal que está sob investigação federal.
Ohtani negou que tenha apostado no esporte e acusou o intérprete, Ippei Mizuhara, de roubar seus milhões para pagar suas próprias dívidas de jogo. Mizuhara não foi encontrado para comentar.
As principais entidades esportivas profissionais, que abraçaram o cenário do jogo legal fechando acordos com empresas de apostas, agora percebem o quanto têm a perder nessa nova era.
“Todos os benefícios positivos e o envolvimento adicional dos fãs que poderiam vir das apostas esportivas não significam nada se não estivermos protegendo a integridade do jogo”, disse Marquest Meeks, vice-conselheiro geral da MLB para apostas esportivas e conformidade, em uma entrevista em meados do ano passado.
Os escândalos de jogos de azar há muito tempo contaminam o esporte. O caso do Black Sox de 1919 envolveu oito jogadores acusados de entregar o jogo na World Series por dinheiro. O astro do beisebol Pete Rose foi definitivamente banido por apostar no beisebol, ele que era então o maior rebatedor de todos os tempos no Hall da Fama. Escândalos periodicamente afetam o basquete universitário, e o árbitro da NBA Tim Donaghy foi preso por apostar em jogos que ele próprio apitou.
Essas questões, no entanto, foram basicamente mantidas distantes dos organizadores de competições, restritas às casas de apostas esportivas de Las Vegas e à rede nacional de apostas ilegais. As ligas esportivas, visando preservar a integridade de seu produto, continuaram a ver o jogo como um grande tabu.
Contudo, à medida que a estrutura de apostas esportivas legais se expandiu, começando com uma decisão da Suprema Corte em 2018 e seguida pelos próprios esforços de legalização de jogos de azar nos estados, os próprios esportes não podiam esperar para lucrar. Uma conversa que sempre acontecia nos bastidores acabou se tornando pública.
As probabilidades agora são discutidas abertamente em transmissões ao vivo. Anúncios de aplicativos de apostas parecem estar em todos os intervalos comerciais e espalhados por estádios e arenas. As ligas esportivas têm até programação focada em apostas em suas redes oficiais.
A mensagem clara é que as ligas querem que seus consumidores continuem apostando, acreditando que os torcedores permanecerão grudados na TV se tiverem dinheiro em jogo. Mas, na pressa de garantir seus ganhos, elas criaram uma dissonância entre encorajar os torcedores a apostar e tranquilizá-los, mostrando que os resultados em campo permanecem imaculados.
Isso ficou muito claro no último fim de semana, durante uma transmissão na ESPN, rede que tem relações comerciais com praticamente todas as ligas esportivas americanas, além de licenciar seu nome para uma casa de apostas, a ESPN Bet. Em um bloco sobre apostas no basquete universitário, o apresentador Rece Davis descreveu oportunidades de apostas como um “investimento sem risco”, termo proibido na publicidade de jogos de azar em vários estados. Davis mais tarde descreveu seu comentário como uma piada, mas o incidente destacou o quão entrelaçados se tornaram os esportes e as apostas.
“Em 14 de maio de 2018, os esportes e as apostas esportivas se uniram e provavelmente nunca mais serão separados”, disse o texto do presidente da U.S. Integrity, Matt Holt, referindo-se ao dia em que a Suprema Corte derrubou a Lei de Proteção ao Esporte Profissional e Amador, que proibia as apostas esportivas nos Estados Unidos.
O que está em jogo agora é o cerne da experiência esportiva: torcedores e participantes devem acreditar que o que estão vendo é verdadeiro. No entanto, à medida que as ligas e os apostadores se aproximam, a mera sugestão de que os atletas poderiam ser motivados a manipular os resultados tem sido suficiente para criar novas dúvidas.
No ano passado, a Universidade do Alabama demitiu o treinador de seu time de beisebol, Brad Bohannon, depois que este foi flagrado fornecendo informações privilegiadas sobre sua equipe a um apostador. O apostador, um treinador de beisebol juvenil em Indiana chamado Bert Neff, concordou em se declarar culpado de obstruir uma investigação do júri federal no início deste ano. Bohannon, que não falou publicamente sobre o incidente, recebeu penalidades da NCAA que efetivamente impedem sua contratação por uma equipe universitária.
Na mesma época em que Bohannon foi demitido, a Universidade de Iowa e a Universidade Estadual de Iowa anunciaram que receberam informações das autoridades sobre dezenas de atletas suspeitos de apostar em esportes, alguns dos quais apostaram em seu próprio time. A maioria deles foi sancionada pela NCAA, e alguns foram acusados criminalmente.
“Basta um torcedor razoável dizer ‘Estou assistindo a uma peça de teatro ou isso é realmente esporte?’ para que a credibilidade de um esporte comece a ruir”, afirmou Declan Hill, especialista em manipulação de resultados da Universidade de New Haven.
Desde que a proibição da aposta esportiva foi suspensa, ligas que antes as viam como uma ameaça existencial à sua integridade se esforçaram para fazer parcerias com empresas de jogos de azar. No começo deste ano, o astro do Los Angeles Lakers, LeBron James, se tornou embaixador da marca DraftKings, onde dará dicas para jogos de futebol americano. A própria NBA também anunciou um novo recurso projetado para combinar a experiência de apostas com a ação ao vivo: os torcedores que assistirem aos jogos no League Pass, grande plataforma de streaming, poderão optar por ver as probabilidades na interface do aplicativo e clicar para fazer apostas.
Nada, no entanto, tornou mais público o casamento entre esportes e apostas nos EUA do que o que ocorreu no deserto de Nevada em fevereiro: a NFL realizou seu primeiro Super Bowl em Las Vegas.
“Eles legalizaram as apostas esportivas e não somos mais indesejados”, disse a prefeita de Las Vegas, Carolyn Goodman, antes do jogo. “Com isso: bingo!”
Ultimamente, porém, os atletas têm sentido o peso de um mundo esportivo que, de repente, coloca as apostas em primeiro plano. Na semana passada, o armador do Indiana Pacers, Tyrese Haliburton, disse que conversa com um psicólogo esportivo em parte buscando ajuda para se distanciar da negatividade relacionada às apostas, que está tomando conta de sua mídia social.
“Para metade do mundo, estou apenas ajudando-os a ganhar dinheiro no DraftKings”, disse Haliburton na noite de terça-feira, citando um dos parceiros da liga. “Sou um prop.” Ele estava se referindo às chamadas “prop bets”, nas quais é possível apostar em resultados específicos, como quantos pontos um jogador vai marcar ou quantos rebotes pegará.
O treinador do Cleveland Cavaliers, J.B. Bickerstaff disse que as apostas “foram longe demais”.
“Eu pessoalmente tive meus próprios casos com alguns apostadores esportivos, que conseguiram meu número de telefone e me enviavam mensagens malucas dizendo que sabem onde eu moro, sobre meus filhos e todas essas coisas”, acrescentou.
O porta-voz da NBA, Mike Bass, garantiu que casos de assédio relacionados a apostas esportivas são investigados.
Então, poucos dias após as queixas de Haliburton e Bickerstaff, a NBA se viu às voltas com um novo caso de “prop bets”. A liga está investigando atividades suspeitas em torno de Porter, depois que usuários de aplicativos fizeram apostas consideráveis de que seus totais de pontos, rebotes e assistências em dois jogos ficariam todos abaixo das linhas estabelecidas por analistas de probabilidades. Quando os números de Porter ficaram abaixo dessas marcas e as apostas foram pagas, surgiram as suspeitas de possíveis irregularidades.
Os representantes de Porter não responderam imediatamente a um pedido de comentário. Os Raptors divulgaram seu afastamento da equipe por motivos pessoais.
A NCAA recorreu às legislaturas estaduais pedindo regulamentações que tirariam jogadores individuais da mira dos apostadores. O grupo está fazendo lobby para proibir as “prop bets” relacionadas especificamente a jogadores e não ao placar final do jogo — o tipo de aposta no caso de Porter na NBA.
Os estados de Ohio, Maryland e Vermont aderiram recentemente ao pedido da NCAA, proibindo as operadoras de oferecer esse tipo de aposta. Na quarta-feira, Baker disse que a associação planejava entrar em contato com autoridades de todo o país esta semana pedindo-lhes restrições semelhantes.
“É possível que ocorram certas situações em que alguém simplesmente diz: ‘Olha, você é meu amigo. Somos amigos há muito tempo. Perdi US$ 500 na semana passada porque você não jogou bem. E eu ainda te amo, mas tenho que pagar o aluguel na semana que vem. Só preciso que você perca seus dois primeiros lances livres’”, disse Baker no mês passado.
Os atletas têm problemas ainda maiores quando são eles que fazem as apostas. As ligas profissionais dos EUA os proíbem de apostar em seus próprios esportes, mas pouca coisa os impede de jogar em outras ligas. O problema agora, com as apostas esportivas legais disponíveis no seu celular, é que muitos deles nem sabem o que é permitido.
“Como todo mundo, estamos tentando aprender e educar, garantir que todo o nosso pessoal — não apenas os jogadores, mas toda a equipe — entenda a política”, disse o comissário da NFL, Roger Goodell.
Quando a NFL suspendeu atletas há cerca de um ano, alguns deles não haviam apostado no futebol americano, mas quebraram uma regra da liga que proíbe o uso de aplicativos de jogos de azar nas instalações do time.
Em outras palavras, simplesmente estavam se comportando como torcedores normais, seguindo a mesma tendência de milhões de outros americanos agora incentivados — e capacitados — a apostar em esportes. ( Andrew Beaton contribuiu para este artigo)
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traduzido do inglês por investnews