Na semana passada, o grupo francês Sodexo anunciou a instalação de um novo modelo de negócio no mercado brasileiro que vai focar na alimentação por delivery. O projeto é baseado nas “cloud kitchens”, algo relativamente novo no mercado brasileiro, mas que se relaciona com a lógica do “coworking”.
Com a pandemia, os números do delivery ficaram mais atraentes. Segundo a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), é esperada neste ano uma movimentação de R$ 19,5 bilhões no setor. Os executivos da Sodexo confessam que se apressaram com a instalação do negócio que já estava planejado antes do início da quarentena. E embora reivindiquem inovação e pioneirismo ao trazer o modelo para o Brasil, eles não são os primeiros a montar uma “cloud kitchen” por aqui.
O que é cloud kitchen?
O administrador de empresas Daniel Guedes e o médico Kiko Hwang, que decidiu entrar no mundo da gastronomia, foram os precursores que abriram juntos o Digital Restaurant no final de 2018. “É uma “cloud kitchen” por definição: multiaplicativo, multiculinária e multimarca”, explica Hwang, co-fundador e chefe da cozinha.
Eles iniciaram com comida japonesa, e agora já oferecem seis tipos de culinária diferentes, além dessa: brasileira, italiana, chinesa, e hambúrguer; tudo em uma só cozinha. “O segmento de pizza é um pouco separado, sushi é outra área à parte, e as outras culinárias quentes estão juntas. Acabamos trabalhando com três equipes”, relata.
Com mais ou menos 80 metros quadrados de instalações, Hwang afirma que não há muito diferença para qualquer outra cozinha de alta performance, a não ser a adaptações que ele chama de “ciência do delivery”. “O prato que você recebe no restaurante tem que ter sua preparação redesenhada, para ser consumida ao menos 30 minutos depois, ficando abafada na embalagem”, explica.
Em busca de um nome
Outros empreendimentos vêm usando o conceito de “cloud kitchen”, mas se diferem em alguns aspectos do Digital Restaurant. Por exemplo, o ex-CEO da Uber, Travis Kalanick, através da sua nova empresa, CloudKitchen (nome que exaure o conceito), também gera um negócio multiaplicativo, multiculinária e multimarca, mas que no fim, não mexe com comida. “O negócio dele não é a ‘cloud kitchen’. O negócio dele é imobiliário.”, declara Hwang.
Realmente, o negócio de Kalanick é alugar cozinhas bem equipadas, em localizações baratas e próximas dos clientes, para restaurantes especializados em delivery, que coordenam sua demanda a partir de aplicativos — como o Uber Eats, lançado durante o tempo de Kalanick na Uber. Na Digital Restaurants a renda vem do que sai da cozinha, e não do aluguel dela, e as marcas são todas próprias.
Mercados emergentes
Talvez, o que há de comum é a origem da ideia. Daniel Guedes conta que aprendeu sobre “cloud kitchen”, “dark kitchen”, “ghost kitchen” e outros nomes que esse tipo de modelo levam, em uma excursão para executivos na China. Lá o negócio tem uma escala chinesa. Com a mudança de hábitos do país após a pandemia, o mercado de delivery espera exceder 300 bilhões de yuans até o final do ano, aproximadamente R$ 200 bilhões.
Os investidores sabem que esses modelos de negócio decolam mesmo em países com uma grande demanda de consumidores, e que ao mesmo tempo oferecem um mercado de trabalho competitivo e barato para viabilizar as entregas. China, Índia, e agora o Brasil, são os maiores destaques.
Vantagens de negócio e desvantagens de trabalho
Na opinião do professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), Ruy Braga, a estratégia desses modelos é ganhar vantagem em duas frentes: compartilhamento de custos e relaxamento dos direitos trabalhistas. “Parece com essa última onda recente de espaços de ‘coworking’”, analisa.
Ele também explica que a precarização do trabalho dos entregadores aconteceria independente do modelo de negócio do restaurante. “Não associaria isso ao aumento do número de entregadores”, mas completa “a não ser que as próprias empresas de aplicativo comecem a investir nesse tipo de negócio. Aí sim eu diria que é uma nova configuração”.
Não seja por isso. A colombiana Rappi, fundada em 2015 e que já passou de U$ 1 bilhão em valor de mercado, tornando-se um unicórnio, acabou a parte de testes com cozinhas compartilhadas desde o ano passado. Segundo Ricardo Bechara, diretor de expansão e cofundador da Rappi no Brasil, o plano passa agora para a etapa de ganhar escala.
O período da quarentena pode ter vingado para as empresas que estavam bem posicionadas no setor de delivery. Mas foi um terror para os restaurantes. Kiko Hwang acrescenta: “Mesmo com as entregas, não tem espaço para todo mundo. O mercado não vai ser o mesmo com fim do isolamento, as pessoas ainda vão sair menos e acostumar a cozinhar mais em casa. São tempos desafiadores.”