Um novo megaporto chinês na América do Sul está chacoalhando os EUA
O projeto do Peru pode acelerar o comércio com a Ásia e plantar a bandeira de Pequim na vizinhança de Washington
Nesta cidade serena na costa do Pacífico da América do Sul, a China está construindo um megaporto que pode desafiar a influência dos EUA em uma região rica em recursos, que Washington há muito considera seu quintal.
O porto de águas profundas de Chancay, sendo construído nesta região entre pelicanos e pescadores em pequenos barcos de madeira, é tão importante para Pequim que o líder chinês Xi Jinping deve inaugurá-lo no final do ano, em sua primeira viagem ao continente desde a pandemia.
De propriedade majoritária do gigante grupo China Ocean Shipping, conhecido como Cosco, o Chancay promete acelerar o comércio entre a Ásia e a América do Sul, beneficiando clientes tão distantes quanto o Brasil com tempos de navegação mais curtos através do Pacífico para tudo, desde mirtilos até o cobre.
Enquanto nações ao redor do mundo estremecem com uma nova enxurrada de manufatura barata chinesa, o porto pode abrir novos mercados para seus veículos elétricos e outras exportações. A China já é o principal parceiro comercial da maior parte da América do Sul.
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Os EUA temem que o controle chinês sobre o que pode se tornar o primeiro verdadeiro centro comercial global da América do Sul permita que Pequim fortaleça ainda mais seu controle sobre os recursos da região, aprofunde sua influência entre os vizinhos mais próximos dos EUA e, por fim, instale seus militares nas proximidades.
“Isso facilitará ainda mais para os chineses a extração de todos os recursos da região, então deve ser preocupante”, disse a general do Exército, Laura Richardson, que dirige o Comando Sul dos EUA, no mês passado em uma conferência de segurança na Universidade Internacional da Flórida.
Ex-autoridades americanas dizem que o projeto destaca o vazio diplomático que os EUA deixaram na América Latina, pois concentraram recursos em outros lugares, mais recentemente na Ucrânia e no Oriente Médio.
“Isso muda o jogo”, disse Eric Farnsworth, ex-diplomata de alto escalão do Departamento de Estado que agora lidera o escritório de Washington do think tank Council of the Americas (Conselho das Américas). “Isso coloca a China de maneira inédita e importante na América do Sul como a porta de entrada para os mercados globais. Não é apenas uma questão comercial nesse momento, é uma questão estratégica.”
Localizado 80 quilômetros ao norte da capital do Peru, Lima, o porto de US$ 3,5 bilhões — financiado por empréstimos bancários chineses — será o primeiro na costa do Pacífico da América do Sul capaz de receber meganavios, dados seus quase 18 metros de profundidade, embora outros portos da região tenham grande capacidade de movimentação de contêineres. Isso permitirá o transporte de cargas diretamente entre o Peru e a China, em vez de em navios menores que devem ir primeiro para o México ou a Califórnia.
A Cosco diz que Chancay tem como objetivo apenas a promoção do comércio.
“Este é um projeto comercial para promover o desenvolvimento”, disse Gonzalo Rios, vice-gerente geral da Cosco no Peru. “Não há nada escondido aqui.”
Logo depois do acordo do porto em 2019, a mídia estatal chinesa mostrava previsões do futuro do Peru como um centro no comércio sino-sul-americano, com sugestões de que poderia ajudar Pequim com outras prioridades, como a ligação de um cabo submarino.
“O Peru poderia ser a âncora para tal corredor não apenas por causa de sua localização geográfica, mas também por causa de suas relações com a China”, disse um comentário em inglês publicado no China Daily.
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O Peru desconsiderou as preocupações dos EUA. O Congresso do país de 33 milhões de habitantes, que está longe de qualquer potencial conflito global, tem que aprovar a chegada de militares estrangeiros, não de um operador portuário.
O ministro das Relações Exteriores do Peru, Javier González-Olaechea, disse que se os EUA estão preocupados com a crescente presença da China no Peru, então devem intensificar seus próprios investimentos, acrescentando que “todos são bem-vindos” para investir.
“Os Estados Unidos estão presentes em quase todo o mundo com muitas iniciativas, mas não tanto na América Latina”, disse González-Olaechea em entrevista. “É como aquele amigo muito importante que passa pouco tempo conosco.”
Chancay é um eco de um porto da Cosco na Grécia em 2016, que deu à China uma posição no sul da Europa. Hoje, as empresas chinesas controlam ou operam terminais em cerca de cem portos estrangeiros. De acordo com o AidData, laboratório de pesquisa da universidade William Mary da Virgínia, elas financiaram quase US$ 30 bilhões em trabalho em pelo menos 46 países entre 2000 e 2021.
Os investimentos portuários proporcionaram à China uma vantagem diplomática em nações ávidas por investimentos. Navios da marinha chinesa já utilizaram mais de um terço dos portos que as empresas de seu país possuem ou operam em todo o mundo.
Mas os portos não parecem ser bases militares chinesas discretas, e navios da marinha da China são de fato recebidos de forma cerimoniosa. E a análise de custo-benefício comercial da construção de portos pela China levará algum tempo para ser conhecida, já que serão precisos anos para estabelecer centros comerciais em novos mercados. Preocupações mais imediatas com seus portos, como dívidas em Moçambique a indícios de danos ambientais no Quênia, já estão em evidência, juntamente com sinais na Europa de que os interesses locais só vêm depois dos da China.
Os EUA discutiram preocupações com autoridades peruanas sobre o controle da China sobre infraestruturas vitais, incluindo Chancay, disse uma ex-autoridade dos EUA e uma ex-autoridade peruana com conhecimento das negociações. O que preocupa Washington é a interação entre as empresas comerciais chinesas e o governo — especificamente os militares. Os portos, e os equipamentos neles contidos, podem ter usos comerciais e militares.
A lei da China exige que suas empresas considerem as necessidades de defesa nacional em suas operações, o que pode significar fornecer acesso preferencial a navios militares em terminais portuários, compartilhar informações potencialmente valiosas e apoiar a defesa e a mobilização, disse Isaac Kardon, pesquisador sênior do Carnegie Endowment for International Peace (Fundo Filantrópico Carnegie para a Paz Internacional).
“Os americanos deram uma cochilada”, disse John Youle, proeminente empresário no Peru e ex-diplomata dos EUA. “De repente, acordaram.”
Essa mudança pode estar evidente em meados de novembro, quando Xi deve visitar o Peru para uma cúpula Ásia-Pacífico. Independentemente de o presidente Biden participar ou não da cúpula — marcada para depois da eleição de novembro —, o líder chinês provavelmente roubará a cena com um projeto que visa fortalecer a influência de Pequim no Hemisfério Ocidental.
O porto colocou o Peru diretamente no meio da rivalidade entre as duas superpotências na América do Sul.
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O Brasil, maior economia da América Latina, quer desenvolver semicondutores com a China depois de rejeitar os pedidos dos EUA para excluir a Huawei Technologies das redes 5G. Empresas chinesas estão construindo um metrô na capital da Colômbia, Bogotá. Honduras cortou laços com Taiwan, na esperança de receber uma enxurrada de investimentos chineses. E na Argentina, a China está comprando minas de lítio, um componente essencial para os veículos elétricos.
O Peru recebeu investimentos chineses em tudo, desde portos até mineração de cobre e eletricidade, o que dará às empresas chinesas o controle sobre praticamente toda a distribuição de energia de Lima.
“O Peru está aumentando ainda mais sua dependência econômica da China e se tornando vulnerável a uma possível coerção econômica chinesa”, disse Leland Lazarus, especialista em relações China-América Latina da Universidade Internacional da Flórida.
O Peru ocupa o quinto lugar entre as nações mais influenciadas pela China no mundo, de acordo com um indicador produzido por duas organizações críticas a Pequim, a Doublethink Lab e a China in the World Network. Os veículos fabricados na China são onipresentes no país. No arborizado bairro de Miraflores, na capital, não muito longe de um parque com o nome de John F. Kennedy, as autoridades locais inauguraram o chamado Parque China, com vista para o Pacífico, com uma pérgola e estátuas de leões trazidas do país asiático para celebrar o aprofundamento dos laços.
No porto, onde há placas em espanhol e chinês, um túnel de quilômetros de extensão dará acesso a caminhões de carga sem que seja preciso passar pela cidade. Guindastes automatizados e veículos sem motorista transportarão carga para alguns dos maiores navios do mundo, tão longos quanto o Empire State Building é alto.
A construção de Chancay causou tanto barulho e bagunça para uma outrora sonolenta comunidade de pescadores que os moradores a culparam por rachaduras nas paredes de suas casas, o desabamento de uma estrada e o declínio da pesca da região. A Cosco diz que consertou casas e a estrada e que trabalha para mitigar o impacto sobre os pescadores.
“A pesca não é o que era”, disse Hugo Pasache, pescador de Chancay. “Daqui a um ano, vou vender tudo e fazer outra coisa.”
Daniel Bustamante espera que o porto abra novos mercados asiáticos para os mirtilos e abacates que cultiva na costa do Peru e que agora envia principalmente para a Europa e os EUA. As atuais rotas marítimas entre o Peru e a China — que duram cerca de 35 dias — são longas para que a maioria dos alimentos perecíveis chegue aos mercados. Chancay ajudará a reduzir esse tempo em um terço, diminuindo os custos do negócio.
“Isso será uma janela para a Ásia”, disse Bustamante. “Nossa expectativa é poder crescer muito nesse mercado.”
Particularmente tentador para a China é fazer com que o Brasil use o porto. Desde que a China ultrapassou os EUA e se tornou o maior parceiro comercial do Brasil em 2009, um grande obstáculo permanece: O Brasil está no oceano errado.
As exportações para a China, que agora compra cerca de dois terços do minério de ferro e da soja do Brasil, envolvem ir para o leste pelo Atlântico ou para o norte para acessar o Pacífico pelo Canal do Panamá.
Com Chancay, exportadores brasileiros tão distantes quanto a cidade de Manaus, poderiam reduzir o tempo de embarque para a China pela metade, diz Omar Narrea, economista da Universidade do Pacífico do Peru.
Mas chegar a um porto do outro lado da floresta amazônica e das montanhas andinas continua sendo um grande desafio. O Peru tem uma rodovia em seu extremo sul que o liga ao Brasil e diz que novas rodovias e ferrovias conectadas a Chancay estão sendo planejadas.
“Esse é o tipo de projeto em que todos ganham”, disse o ministro dos Transportes do Brasil, Renan Filho. “Mas algumas partes são extremamente complexas.
”Escreva para Ryan Dubé em [email protected] e James T. Areddy em [email protected]
traduzido do inglês por investnews