‘Dark Wire’: a armadilha mais genial do FBI
O Anom era um celular perfeito para bandidos. E os criminosos adotaram em massa. Só que ele vinha grampeado de fábrica
Em sete de junho de 2021, forças policiais de todo o mundo realizaram a maior ação policial da história. Da Austrália à Espanha, centenas de criminosos acordaram com a porta de sua casa sendo aberta aos chutes. Foram mais de 500 prisões; 12 toneladas de cocaína apreendidas, além de 22 toneladas de haxixe ou maconha e mais de 300 armas de fogo. Foi o culminar de vários anos de coleta de informações, planejada pelo FBI e pelo gabinete do procurador dos EUA em San Diego.
Como conta Joseph Cox no livro “Dark Wire”, o longo caminho para a execução dessa ação conjunta data de um desafio com o qual a polícia se deparou no início dos anos 2000: seus suspeitos estavam usando cada vez mais telefones especialmente criptografados fornecidos por um nicho de mercado de provedores que modificavam aparelhos comercialmente disponíveis, para que rodassem sistemas desenvolvidos por eles. “Antes, os criminosos usavam telefones ou pagers feitos pelas mesmas empresas que todos usamos; porém, logo desenvolveram seu próprio setor de tecnologia, que lançava novos telefones ou recursos, não muito diferente dos lançamentos anuais do iPhone da Apple. Os clientes eram leais à sua marca preferida e adoravam produtos inovadores.”
Havia empresas especializadas prontas para atender às necessidades de gângsteres, com foco em privacidade, incluindo recursos como a limpeza remota de um telefone (caso seu proprietário se encontrasse na parte de trás de um carro de polícia, por exemplo). As mensagens eram transmitidas através de servidores no exterior, para maior segurança.
Impedido pelos desafios de penetrar nessas redes, o FBI fez algo radical: criou seu próprio sistema. Essa nova empresa de telefonia, chamada Anom, vendia aparelhos seguros para o crime organizado em todo o mundo, e os usuários não tinham ideia de que o FBI conseguia monitorar suas conversas em tempo real.
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Com a Anom, policiais federais estavam entrando em um mercado já competitivo. Como uma verdadeira startup de tecnologia, tiveram que recrutar programadores e desenvolver os dispositivos, além de oferecer atendimento ao cliente. Os telefones eram vendidos em um esquema de pirâmide: apenas aqueles indicados por outros usuários poderiam entrar. De acordo com Cox, o FBI trabalhou com um informante (um antigo “cara da tecnologia” de uma gangue de drogas da Austrália), que foi o testa-de-ferro da empresa.
A Anom ia entrando no mercado à medida que os concorrentes iam sendo capturados e presos por autoridades policiais. Então, os usuários que se viam de forma repentina precisando de uma nova rede migravam para a nova alternativa. Como qualquer bom produto de tecnologia, a Anom era atualizada regularmente com novos recursos. Os usuários podiam compartilhar posts, marcar uns aos outros, enviar fotos: no final, o FBI estava administrando um site de mídia social para cartéis de drogas.
Cox, jornalista investigativo que cobriu a Anom para a Vice Media e conduziu inúmeras entrevistas com muitas das pessoas envolvidas — de ambos os lados da lei — alterna entre as atividades dos mocinhos e dos bandidos no estilo de um bom thriller policial. Lemos sobre vários personagens sinistros fazendo compras na Louis Vuitton em Dubai, ou falando sobre quantos quilos de metanfetamina entregarão na próxima semana, ou ameaçando matar alguém e entrando na paranoia de delações, porque, de alguma forma, as autoridades continuavam invadindo seus laboratórios de drogas.
O grande paradoxo desse projeto era que o FBI não podia usar informações sobre pessoas dentro dos EUA, porque não possuía mandados individuais. Os federais podiam penetrar em células da máfia, mas a lei americana de grampos telefônicos era um obstáculo muito grande.
O emaranhado legal em torno das escutas telefônicas remonta às leis aprovadas para o telégrafo no século XIX. Diferentes estados têm estatutos diferentes, e os tribunais ainda têm dificuldade de determinar qual grau de privacidade é razoável na era digital. Para o FBI com a Anom, havia também a possível acusação de “induzir pessoas a agir contra a lei com o propósito de juntar provas para uma condenação”. Assim, em vez de agir contra mafiosos locais, os federais estavam servindo como uma câmara de compensação de informações para agências de aplicação da lei de outros países, rastreando atividades criminosas no exterior.
E isso gerou um mapa da atividade criminosa internacional. “Grupos criminosos não agem no vácuo”, escreve Cox. “Em um mundo globalizado, eles estão mais conectados uns aos outros do que nunca, e a interface de grupos ligados ao Anon mostrou isso nos termos mais claros possíveis. Essas redes criminosas sobrepostas e mutáveis se espalham dia a dia e semana a semana, um vasto e crescente universo de traficantes de drogas.” As autoridades descobriram grupos que não estavam em seu radar e observaram como até mesmo gangues rivais trabalhavam juntas.
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E, claro, o projeto também levantou sérias questões de liberdades civis. O objetivo do FBI não era fornecer telefones para não criminosos, mas não tinha como controlar aonde os dispositivos iam parar. Alguns chegaram às mãos de pessoas inocentes, como documenta Cox. (Em um caso, um advogado de defesa descobriu, para seu horror, que a polícia neerlandesa estava vigiando suas conversas com clientes.)
Apesar de todo o sucesso do projeto Anom, a parte deprimente é a pouca diferença que fez para o crime global. Apesar das prisões em larga escala e das apreensões imensas, o tráfico de drogas continua inabalável. O que a polícia encontrou foi apenas uma pequena fração da oferta. Para cada suspeito levado algemado, havia outros assumindo seu lugar.
Mas houve pelo menos um benefício de longo prazo, como explica Cox: a operação gerou dúvidas entre os criminosos e fomentou a cautela em relação aos serviços telefônicos criptografados. Os usuários simplesmente não conseguiam “deixar de lado a sensação de que o FBI poderia estar por trás de qualquer novo dispositivo que chegasse ao mercado”. Muitos criminosos voltaram aos métodos mais antigos (e potencialmente vulneráveis), como telefones descartáveis, ainda se perguntando quem poderia estar ouvindo.
Katrina Gulliver está escrevendo uma história sobre crime e polícia.
Apareceu na edição impressa de primeiro de junho de 2024 como ‘Há um aplicativo para isso’.
traduzido do inglês por investnews