Entre os bilhões em investimentos para ampliar a oferta de energia elétrica a partir de fontes renováveis no Brasil, dois dos movimentos empresariais mais recentes do setor chamaram a atenção pelo contraste com a pauta em voga.
Enquanto o que mais se viu nos últimos anos era uma avalanche de dinheiro para projetos de usinas solares e eólicas, Eneva e Âmbar Energia assinaram R$ 7,6 bilhões em cheques nas últimas semanas para a compra de quase duas dezenas de usinas termelétricas movidas a diesel ou a gás natural.
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Esses ativos emitem uma grande quantidade gases de efeito estufa (GEE), ainda que as térmicas tenham uma participação anual pequena na comparação com o total de GEE que o país emite (0,85% – até porque as termeléricas a combustível fóssil respondem por apenas 8,9% da nossa matriz elétrica).
A dúvida que surgiu após os negócios da dupla Eneva e Âmbar, inclusive entre executivos, é a seguinte: por que ainda existem empresas que investem em usinas termelétricas se o futuro é “verde”?
A resposta é mais simples do que se pode imaginar: precisamos das térmicas para o sistema elétrico funcionar funcionar em sua plenitude – e vamos continuar precisando, provavelmente, por um bom tempo.
A qualquer hora
O motivo que justifica o investimento em termelétricas tem a ver justamente com a ascensão de projetos de usinas eólicas e solares. As duas fontes são atualmente responsável por 33,4% da energia elétrica gerada no país e com tendência de ainda mais crescimento para os próximos anos.
Apesar de sua inegável sustentabilidade, essas matrizes são intermitentes – não produzem energia 24 horas por dia, sete dias por semana. Então alguém precisa “carregar o piano” quando não há sol ou falta vento – prazer, usina termelétrica.
Tem mais. A necessidade das térmicas também surge em períodos de estiagem, quando as hidrelétricas, responsáveis por 48% da nossa matriz atual, não conseguem desempenhar todo seu potencial, a exemplo do que ocorreu na seca de 2021 e na crise do “apagão” do início dos anos 2000. Por isso que, com certa frequência, o governo federal promove leilões de compra de energia termelétrica, os chamados leilões de reserva de capacidade, para garantir esse equilíbrio.
E não é que falte energia elétrica no país, pelo contrário: sobra energia na maior parte do dia. Só que há um descasamento entre o ápice da oferta (o período diurno, favorável a ventos e, claro, com sol) e o ponto alto da demanda, no início da noite. Até existem estudos para que, no futuro, baterias possam armazenar a eletricidade gerada pelo sol e pelos ventos, mas hoje é uma tecnologia cara e com baixa escala.
“O sistema elétrico precisa de fontes despacháveis [que conseguem gerar eletricidade a qualquer momento]. É isso que traz a nossa segurança energética. Se não choveu o suficiente, se não ventou ou o dia está nublado, é a térmica quem vai segurar”, resume Marcelo Cruz Lopes, diretor de comercialização e novos negócios da Eneva.
Jogo de forças
A Eneva, empresa que tem a família Moreira Salles entre seus investidores, anunciou recentemente a compra de quatro usinas termelétricas de um de seus acionistas, o BTG Pactual, por R$ 2,9 bilhões, em uma operação que foi amarrada com um aumento de capital (“follow-on”) de R$ 4,2 bilhões.
Poucas semanas antes, em meados de junho, a concorrente Âmbar Energia, controlada pela J&F Investimentos da família Batista, comprou 13 ativos de geração termelétrica da Eletrobras por R$ 4,7 bilhões. A aquisição deverá colocar a companhia como a terceira maior do segmento no país, atrás justamente de Eneva e Petrobras.
Outro player que está investindo na energia termelétrica é a GNA, uma joint venture entre Prumo, BP, Siemens e SPIC Brasil, que tem hoje a terceira maior usina do país em São João da Barra (RJ). O grupo afirma que pretende investir R$ 10 bilhões na tese de gás natural na América Latina até 2025.
“Nós acreditamos na geração termelétrica e entendemos que é um mercado que ainda pode crescer. Por mais que a gente reconheça a importância das fontes renováveis, o sistema vai requerer um crescimento das fontes despacháveis”, reforça Lopes, da Eneva. Inclusive, a companhia divulgou nesta semana a intenção de investir mais R$ 4 bilhões para ampliar a capacidade de seu principal parque térmico, localizado no Sergipe, caso vença o próximo leilão de reserva de capacidade do governo federal, ainda sem data prevista para ocorrer.
Vale destacar que os investimentos em energia verde seguem firmes. Bem firmes. No ano passado, foram US$ 25 bilhões destinados para iniciativas renováveis – o Brasil só ficou atrás de China e Estados Unidos no quesito investimento em matrizes renováveis, segundo levantamento da BloombergNEF.
Por outro lado: se a termelétrica é quase como um backup da energia renovável, quanto mais a matriz verde cresce, mais a retaguarda precisa acompanhar.
Cenários
Nessa lógica, cria-se outro desafio, lembra David Zylbersztajn, professor da PUC-RJ e ex-presidente da Agência Nacional do Petróleo e Gás (ANP), o da viabilidade econômica. “As termelétricas têm um custo elevado e não dá para apenas pensarmos nelas como um backup. Agora, como dar essa viabilidade para as termelétricas – e se, de fato, serão elas a ter esse papel – é uma política que o Estado precisa ser definir.”
Pois bem. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE), braço do governo federal responsável por desenhar os cenários de longo prazo para que os governantes decidam, dá algumas pistas. No relatório de perspectivas para o Brasil de 2050, a EPE fez um comparativo entre um cenário em que caminhamos para uma matriz elétrica 100% renovável; outra sem restrição de emissões (com 7,8% da matriz não-renovável) e uma com o governo restringindo a emissão dos GEE (o que daria 5,75% de fontes não-renováveis).
Dentre os cenários, a segunda opção foi a que melhor equilibrou a sustentabilidade com a economia. Na primeira opção, a geração de eletricidade teria um custo estimado de R$ 794 bilhões em dinheiro de hoje. Na segunda, com a escolha das matrizes a critério do mercado, R$ 742 bilhões. A terceira, com a imposição governamental de restrições, custaria R$ 772 bilhões – e teria uma presença de energia não-renovável muito parecida com a do segundo cenário. Isso acontece porque o grosso das empresas tem metas agressivas de redução nas suas emissões.
“Caso as perspectivas de custos utilizadas neste estudo se confirmem, uma matriz de baixo carbono é obtida a menor custo por meio de uma expansão que não se limita apenas às fontes renováveis”, diz a EPE, no relatório.
Os grandes consumidores
Outro ponto que não pode ser menosprezado é que as indústrias, as reais grandes consumidoras de energia, precisam de fontes despacháveis para garantir sua operação e que, em alguns casos, também dependem do gás natural (principal combustível das termelétricas) para o funcionamento de suas caldeiras, fornos e afins.
Essa é a situação da Braskem.
A gigante petroquímica gasta algo próximo a US$ 1 bilhão por ano em energia – 5% de seu custo. A empresa, inclusive, tem três usinas termelétricas para consumo próprio, sendo a maior delas na planta de Camaçari (BA).
Hoje, 90% do volume de energia consumido pela Braskem no mundo vem de fontes térmicas, especialmente o gás natural para seus fornos, enquanto 10% do consumo é eletricidade. E, pelo menos no curto e médio prazos, será difícil mudar essa proporção.
“O desafio hoje é termos mais ativos industriais movidos a eletricidade e menos térmicos, mas ainda não temos essa tecnologia. Não existe um forno industrial movido a eletricidade. Temos uma necessidade diária de gás natural”, explica Gustavo Checcucci, diretor de energia e descarbonização industrial da Braskem e que também é conselheiro do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). “Temos condições de substituir alguns itens da fábrica, como as turbinas, mas não são os principais consumidores de energia.”
Embora não seja uma transição fácil, a Braskem tem procurado diminuir o impacto de sua operação eletrificando o que é possível. A empresa tem dez projetos em renováveis, com o investimento ocorrendo por meio de parcerias – na prática, uma empresa especializada na geração de energia limpa constrói um projeto que se financia por um contrato longo de fornecimento, geralmente de uma década ou mais, para a Braskem.
Foi o que ocorreu, por exemplo, em um acordo de R$ 400 milhões com a francesa Veolia para a produção de energia renovável a partir da biomassa de eucalipto em Alagoas, com fornecimento garantido para a Braskem por 20 anos. Ou o contrato de R$ 2,1 bilhões com a Casa dos Ventos para o recebimento de energia elétrica gerada por dois parques eólicos no Rio Grande do Norte em um acordo de 22 anos.
Até 2030, a Braskem pretende emitir 15% menos (ou 1,6 milhão de toneladas de CO2) do que emitia em 2020 e ter 85% da energia comprada vinda de fontes renováveis – índice que está atualmente em 80%. A transição por lá tem que sempre priorizar competitividade e confiabilidade e, neste momento, a energia térmica é a segurança. “Hoje em dia nada é mais confiável do que a energia térmica”, completa Checcucci.
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