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Como a crise de confiança na ciência levou um antivax ao comando da Saúde nos EUA

Nomeação de RFK por Trump para secretaria de Saúde teve largo apoio de eleitores irritados com as medidas da covid-19

Por Liz Essley White The wall street Journal
Publicado em
13 min
traduzido do inglês por investnews

A ascensão de Robert F. Kennedy Jr. de figura marginal da política americana a futuro chefe da Saúde dos EUA foi alimentada pelo ceticismo e pela falta de confiança na medicina — opiniões que viralizaram na pandemia da covid-19.

Pessoas que antes eram rejeitadas por sua descrença na medicina convencional agora estão comemorando um novo campeão em Washington. Os cientistas, enquanto isso, tentam descobrir como poderiam ter administrado a pandemia sem desencadear um movimento populista que, segundo eles, ameaça medidas de saúde pública de longo prazo.

O ressentimento persistente com as restrições da pandemia ajudou Kennedy e sua campanha “Make America Healthy Again” (em tradução livre, “Façam os EUA Saudáveis de Novo”) a atrair para além de pessoas de esquerda ou direita, eleitores preocupados com a contaminação química de alimentos, água e remédios. Muitos deles compartilharam dúvidas sobre as vacinas e sentiram que suas preocupações foram ignoradas pelos especialistas ou consideradas ignorantes.

Kennedy uniu a multidão de céticos da era da covid com pessoas que há muito desconfiavam da medicina convencional e dos conglomerados de alimentos. Juntos, ajudaram a trazer Donald Trump de volta à Casa Branca. Com a nomeação de Kennedy para chefiar o Departamento de Saúde e Serviços Humanos, o establishment médico está se preparando para uma revisão da política de saúde dos EUA.

As autoridades que venceram a pandemia se preocupam em não perder a confiança das pessoas que salvaram. Médicos, cientistas e autoridades de saúde pública estão se perguntando como podem reavê-la. Entre as epifanias pós-eleitorais: não subestime nem fale mal de quem não tem diploma de medicina.  

As autoridades temem que Kennedy promova remédios não comprovados, nomeie céticos em relação às vacinas para comitês consultivos de imunização e dificulte o trabalho do governo com doenças infecciosas em uma futura pandemia. 

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Kennedy declarou que se opõe a uma série de práticas da indústria alimentícia: corantes alimentares, o uso de defensivos agrícolas como o glifosato, óleos saturados de sementes e adição de açúcares, entre muitas outras questões. Autoridades médicas dizem que algumas das opiniões dele, como suspeitar de alimentos ultraprocessados, têm mérito científico, enquanto outras são infundadas. As indústrias alimentícia e farmacêutica estão planejando conquistar Kennedy onde puderem e enfrentá-lo onde não puderem.

Kennedy não respondeu aos pedidos de comentários

Grande parte da popularidade de Kennedy reflete a revolta da época da pandemia, quando a população foi instruída a ficar em casa ou a usar máscaras, quando escolas e empresas permaneceram muito tempo fechadas, além da exigência de vacinação nas salas aulas, nos aviões ou em restaurantes.

Uma multidão aplaudindo Robert F. Kennedy Jr. em um comício em 29 de setembro no National Mall, em Washington. Foto: Al Drago para wsj

“Não estávamos realmente considerando as consequências em comunidades que não a da cidade de Nova York”, os lugares onde o vírus não estava agindo com tanta força, disse o ex-diretor do Instituto Nacional de Saúde (NIH, na sigla em inglês), Francis Collins, em um evento no ano passado.

As autoridades se concentraram em maneiras de parar a doença e não consideraram “que isso, na verdade, perturba totalmente a vida das pessoas, arruína a economia e mantém muitas crianças fora da escola”, disse Collins. Os EUA em geral adotaram a abordagem certa, disse ele, mas ignorar as consequências de longo prazo foi “realmente lamentável. Esse foi outro erro que cometemos.”

As autoridades de saúde pública se perguntam se têm influência suficiente para a próxima emergência nacional. “A ciência está perdendo seu lugar como fonte de busca da verdade”, disse o dr. Paul Offit, médico infectologista do Hospital Infantil da Filadélfia. “Ela está se tornando apenas mais uma voz na sala.”

As restrições pandêmicas afetaram Joel Grey, vendedor de carros aposentado de 62 anos em Belfair, Washington, que votou em Trump. Ele foi vacinado apenas porque o diabetes o colocava em maior risco de complicações da covid-19. Ele contou ter visto conhecidos perderem o emprego porque não queriam tomar a vacina e botou a culpa da morte de sua mãe de 87 anos, em parte, no isolamento da pandemia.

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Grey ficou frustrado com os cientistas dizendo aos americanos como viver: “Eu simplesmente não acho que eles tenham um lugar em nossa vida”. Sua visão foi amplamente compartilhada.

Em outubro de 2023, 27% dos americanos que responderam a uma pesquisa do instituto Pew Research Center disseram que tinham pouca ou nenhuma confiança de que os cientistas agiam no melhor interesse do público, mais que os 13% de janeiro de 2019.

Joel Grey, vendedor de carros aposentado, em Belfair, Washington. Foto: Grant Hindsley para o WSJ

“Últimas bobagens”

O grupo sem fins lucrativos fundado por Kennedy, chamado Children’s Health Defense (“Defesa da Saúde Infantil”, em tradução livre), recebeu um impulso durante a era dos lockdowns, época de crescente interesse em informações e conselhos médicos e nutricionais alternativos. A organização arrecadou mais de US$ 46 milhões de 2020 a 2022, quase dez vezes mais do que arrecadou nos três anos anteriores à pandemia, mostram os registros fiscais.

O grupo publicou artigos dizendo que as vacinas contra a Covid-19 sabotavam o sistema imunológico e enriqueciam os acionistas das farmacêuticas. “Ignore as últimas bobagens sobre ‘variantes’. Mantenha o foco nos perigos das vacinas contra a covid”, dizia a manchete de um artigo de 2021. Outros artigos pintaram um alvo nas costas do médico Anthony Fauci, chefe do Centro de Controle e Prevenção de Doenças do governo federal (CDC, na sigla em inglês), e os grupos que apoiavam vacinas, incluindo a Fundação Bill & Melinda Gates.

Para combater essas opiniões, Jessica Malaty Rivera, epidemiologista com centenas de milhares de seguidores no Instagram, compartilhou informações sobre a importância das vacinas e das máscaras. Ela classificou alegações infundadas como desinformação e chamou de “vigaristas” os influenciadores que as divulgaram.

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Em retrospecto, Rivera disse que suas mensagens às vezes repreensivas não ajudaram. “Todo mundo quer uma atitude dramática”, disse ela. “Não é uma maneira eficaz de comunicar a ciência. Simplesmente não é.” Ela e outros dizem que estão diminuindo o uso da palavra desinformação, dizendo que isso faz as pessoas sentirem que estão sendo chamadas de mentirosas ou de burras.

A epidemiologista Jessica Malaty Rivera em sua casa na terça-feira, em São Francisco. Foto: Ian Bates para o WSJ

Durante a pandemia, Palmira Gerlach tinha dúvidas sobre as vacinas, mas os médicos “foram muito desdenhosos”, lembrou a mulher de 44 anos. 

Gerlach, dona de casa nos arredores de Pittsburgh, contou que mentiu ao pediatra de seu filho dizendo que havia tomado a vacina, tentando evitar julgamentos. O médico disse a ela: “Boa menina”. Na verdade, Gerlach havia recorreu a podcasts com Kennedy, atraída pela disposição de questionar as medidas adotadas na pandemia.

Um desafio para as autoridades de saúde foi aprender a combater a covid-19 enquanto centenas de pessoas morriam todos os dias. Os pesquisadores precisaram de meses apenas para esclarecer o modo de contágio do vírus. Isso significava que as respostas às perguntas comuns continuavam mudando: Tudo bem se reunir ao ar livre? Quando seria seguro visitar os avós? Tenho de usar máscara facial em todos os lugares?

As autoridades de saúde às vezes erram. No início, elas disseram que as vacinas covid-19 evitariam a transmissão ou infecção. Mais tarde, descobriram que reduziam o risco de hospitalização ou morte.  

Shelli Hopsecger, proprietária de uma pequena empresa em Olympia, em Washington, que se descreveu como independente, disse que ouviu atentamente as autoridades de saúde quando a pandemia começou. Mas, à medida que o fechamento das escolas e os bloqueios se arrastavam, começou a questionar o que estava sendo dito.   

Hopsecger, de 56 anos, disse que a pandemia a fez perceber o papel poderoso que as agências federais de saúde desempenhavam em sua vida. “Todos nós estamos cientes agora de que essas agências existem e que olham para essas coisas em nosso nome”, disse ela. “Como cidadãos, é hora de começarmos a dizer a eles o que queremos que eles vejam.”

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No ano passado, Hopsecger disse que começou a ouvir as entrevistas de Kennedy em podcasts por recomendação de seu filho de 26 anos. Ela se lembrou de Kennedy mencionar como milhões de americanos sofrem de doenças crônicas, apesar das grandes somas gastas em saúde.

“Kennedy definitivamente está no caminho certo”, disse Hopsecger. “Nossas políticas e sistemas atuais não estão conseguindo prevenir ou mesmo reverter doenças crônicas.”

Palmira Gerlach e seu filho em casa na segunda-feira em Sewickley, Pa. Foto: Nate Smallwood para WSJ

Nós e eles

A intenção de voto em Kennedy como candidato presidencial independente havia caído para um dígito quando ele apoiou Trump em agosto abraçando o slogan “Make America Healthy Again”.

A carreira de Kennedy — advogado ambiental, ex-viciado em heroína e sobrinho do falecido presidente John F. Kennedy — deu uma guinada em 2005, quando ele começou a questionar o uso de vacinas. Ele diz que se exercita, medita e participa de reuniões dos programa de superação do abuso de substâncias Twelve-Step todos os dias.  

Enquanto fazia campanha para Trump, Kennedy falou sobre como mais americanos eram obesos e mais jovens estavam sendo diagnosticados com câncer. Ele criticou a qualidade dos alimentos e alertou que a água e os medicamentos estavam poluídos por toxinas e produtos químicos. Criticou a medicina por empurrar pílulas e injeções, em vez de abordar as causas profundas da doença.

“Durante a Covid, todos nós ouvimos: ‘Confie nos especialistas’. Mas isso não existe”, disse Kennedy em um episódio do podcast “What is Money?” em abril. “Confiar nos especialistas não é uma característica da ciência. É o oposto da ciência. Não é uma característica da democracia.”

Muitos médicos, cientistas e autoridades de saúde com credenciais tradicionais compartilham a visão de Kennedy de que os alimentos ultraprocessados contribuem para a obesidade, mas também dizem que mais estudos são necessários. Da mesma forma, muitas figuras da saúde concordam que os cientistas precisam fazer mais para entender o papel dos microplásticos e dos chamados produtos químicos eternos (PFAs, na sigla em inglês) nos alimentos e na água. 

No entanto, muitos cientistas e autoridades da indústria alimentícia dizem que alguns dos corantes e produtos químicos que Kennedy aponta como perigosos são incapazes de afetar a saúde humana em quantidades tão pequenas. Quase todos estão alarmados com as alegações não comprovadas ou refutadas de Kennedy — de que as vacinas causam autismo, ou que a AIDS pode não ser causada pelo HIV e que os antidepressivos estão ligados a tiroteios em massa. 

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Ashley Taylor, empresária de 33 anos da cidade de Nova York, concorda com as opiniões de Kennedy sobre a segurança alimentar e o papel dos especialistas. Ela se tornou crítica da medicina tradicional depois que a cirurgia de escoliose que fez na adolescência a deixou com dor crônica e dependente do analgésico Tylenol. Ela disse que rejeitou as recomendações de seus médicos e encontrou alívio para seus problemas nas costas na acupuntura, em uma dieta nutritiva, na ioga e no pensamento positivo. 

Taylor disse que as autoridades de saúde durante a pandemia ignoraram os estudos sobre imunidade natural e não reconheceram que as pessoas que haviam tido a covid-19 não precisariam terem sido vacinadas. “O que eu simplesmente não aprovo é apresentar informações propositalmente de uma forma que não permita que o público americano desenvolva sua própria opinião”, disse ela.

Taylor ouviu parte do livro de Kennedy, “The Real Anthony Fauci: Bill Gates, Big Pharma, and the Global War on Democracy and Public Health” (A verdade sobre Anthony Fauci, Bill Gates, Big Pharma e a Guerra Global contra a Democracia e a Saúde Pública). Ela foi atraída por suas ideias ainda mais depois de assistir a uma mesa redonda com Kennedy e seus aliados em setembro sobre nutrição. O encontro foi organizado pelo senador Ron Johnson (Republicano do Wisconsin) no Senado.

Antes, Taylor votava nos democratas, mas disse que agora votou em Trump.

Médicos, pesquisadores e autoridades de saúde tradicionais se preparam para um departamento federal de saúde liderado por Kennedy. Estão considerando a melhor forma de se comunicar com o público se precisarem contrariar decisões que se desviam das medidas de saúde pública estabelecidas. 

Alguns funcionários do Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA, na sigla em inglês) já pararam de dizer que as vacinas são seguras e eficazes, e agora preferem dizer que os benefícios superam os riscos, segundo uma pessoa familiarizada com o assunto. A mudança tem como objetivo deixar claro que todas as intervenções médicas têm riscos, disse a pessoa, e acabar com o argumento de que efeitos colaterais raros significam que as vacinas não são seguras.

O virologista Greg Poland disse que aconselha os cientistas a se comunicarem com humildade e empatia, a falarem como um médico compassivo falaria com um paciente. “Não somos dogmáticos. Não queremos forçar as pessoas”, disse ele. “Nosso objetivo é transmitir informações.”

Para construir a confiança nas vacinas, Poland, que também é ministro presbiteriano, fala a igrejas conservadoras e grupos cívicos. Ele lhes diz que será verdadeiro e transparente e depois explica como as vacinas funcionam e como os cientistas chegam a um consenso. 

Poland disse que sempre fica até o fim para responder a todas as perguntas.

Escreva para Liz Essley Whyte em [email protected]

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