Já se passaram cinco anos desde que Carlos Ghosn escapou do Japão para o Líbano, acusado de desviar milhões de dólares das montadoras que dirigia, Nissan e Renault.

Ele acorda todas os dias às 05h30. Sua esposa, Carole, acorda mais tarde, e os dois caminham pela praia com seu golden retriever, Melqart — batizado em homenagem a um deus fenício que simbolizava a vida e a morte —, ou se exercitam com um personal trainer em sua residência de US$ 20 milhões, que a Nissan afirma ser de propriedade da empresa. Outros dias, Ghosn pega seu iate de 120 pés, que a Nissan também reivindica, mas nunca sai de águas libanesas.

Fuga do Japão

Com passaportes libanês, francês e brasileiro, Ghosn certa vez se descreveu como um cidadão do mundo. Mas depois de fugir do Japão escondido em uma caixa de equipamento de áudio em um jato particular, ele continua sendo um fugitivo internacional e não pode deixar o Líbano, pois tem mandados de prisão emitidos por promotores franceses e japoneses.

Nos encontramos recentemente em uma universidade libanesa onde Ghosn dirige um programa de liderança executiva, e seus assessores distribuíam xícaras de papel com a frase “O café aumenta a felicidade”, enquanto seus guarda-costas vigiavam do lado de fora

Um colega de universidade enfatizou a necessidade de chegar 30 minutos mais cedo, já que Ghosn é sempre pontual. Como um típico executivo corporativo, ele usava um terno azul, com uma camisa e um suéter, com o cabelo levemente grisalho para um homem de 71 anos. 

“As senhoras estão cuidando de você?”, perguntou Ghosn enquanto nos sentávamos, ainda acostumado com assistentes pessoais de um CEO internacional.

Sem salário

Não mais administrando um império automobilístico, Ghosn explicou que tem mais tempo para ler e estava atualmente na metade do romance vencedor do Prêmio Pulitzer “Trust“, sobre um titã de Wall Street que tenta mudar o que acredita ser uma narrativa falsa sobre sua vida. Ele também é investidor em uma vinícola que produz blends tintos e brancos, com vinhedos espalhados pelas montanhas do Líbano. 

Ghosn trabalhou, sem receber salário, por quase cinco anos nos programas de liderança executiva para empreendedores na Universidade do Espírito Santo de Kaslik, que fica cerca de 30 minutos ao norte da capital libanesa, Beirute. 

Para o primeiro programa, chamado “Estratégias de Negócios e Desempenho com Carlos Ghosn”, ele reuniu ex-colegas do mundo dos negócios para darem palestras. Entre eles estavam Dieter Zetsche, da Daimler, e Thierry Bolloré, ex-executivo-chefe da Renault e da Jaguar Land Rover.  

Inicialmente, o programa custava US$ 10 mil para participantes libaneses e US$ 20 mil para estrangeiros, com os lucros indo para a universidade. “Acabou sendo visto como muito elitista”, disse Ghosn, e, desde então, evoluiu para um “Bootcamp de Gestão Estratégica e de Crises com Carlos Ghosn”, de três dias, mais barato, para gerentes de nível médio, basicamente para libaneses. Cerca de 64 pessoas estão inscritas para o programa do mês que vem.

Acusações sobre Carlos Ghosn

Alguns alunos reconheciam o fugitivo internacional em caminhadas pelo campus. “Carlos, você é o melhor”, gritou um deles quando se cruzaram na escadaria. 

“Eu me sinto bem, porque as pessoas me consideram uma vítima”, disse Ghosn. 

Promotores franceses e japoneses acusam Ghosn de subnotificar compensações e orquestrar um complexo fluxo de dinheiro entre a Nissan, a Renault e um revendedor de automóveis do Oriente Médio para encher seu próprio bolso.

Carlos Ghosn nega qualquer irregularidade, argumentando que um grupo de funcionários da Nissan trabalhou para derrubá-lo enquanto ele lutava para manter viva uma aliança entre a montadora e a Renault.

Ele disse que enfrentou um processo legal prolongado no Japão e uma taxa de condenação quase total, deixando-o sem opção a não ser fugir do Japão em dezembro de 2019. 

Os promotores japoneses e franceses emitiram mandados de prisão contra Ghosn. Mas o Líbano — onde passou grande parte de sua infância — não extradita seus cidadãos, e Ghosn ficou em segurança no Estado mediterrâneo.

Contudo, houve danos colaterais. Um ex-boina verde dos EUA, Michael Taylor, e seu filho, Peter Taylor, que ajudaram Ghosn a escapar, foram extraditados dos EUA e ambos passaram 20 meses na prisão japonesa por esse motivo. 

A esposa de Ghosn, cidadã americana, não pode deixar o Líbano, pois enfrenta um “alerta vermelho” da Interpol por alegações de ter dado falso testemunho no Japão no caso do marido.

Esperança em Trump

Ghosn disse que sua única chance é o governo Trump pedir para o Japão rescindir o alerta, que ele acredita estar impedindo sua esposa de viajar por causa de uma contravenção. “Minha esposa é prisioneira por uma razão muito simples: porque ela é minha esposa”, disse ele.

A Casa Branca encaminhou perguntas ao Departamento de Estado, que não quis comentar. 

Os problemas legais de Ghosn não diminuíram seu entusiasmo por um mundo interconectado. Apesar da recente volatilidade nos mercados, ele vê com otimismo a direção da economia global.

As tarifas de Trump, em sua opinião, são apenas uma tentativa de corrigir a balança comercial desequilibrada entre os EUA e outros países, particularmente a China, mas não representam o fim da globalização. 

“Hoje, pensar que este é o fim da globalização, francamente, é uma piada”, disse Ghosn, um dia depois que a Casa Branca de Trump introduziu um novo regime tarifário que agitou os mercados. 

“Pelo contrário, as pessoas querem saber o que está acontecendo em todos os lugares”, continuou Ghosn. “Elas são influenciadas por diferentes culturas.” A ironia dessa mensagem não passa despercebida para ele, que reconhece não estar vendo muito do mundo. 

Carlos Ghosn leciona leciona estratégia empresarial na Holy Spirit University de Kaslik – Foto: Ali Khara / WSJ

Nascido no Brasil, Ghosn se mudou para o Líbano quando era criança e foi criado em grande parte por sua mãe, depois que seu pai foi preso em conexão com o assassinato de um padre. Ele se destacou na escola, e então foi estudar em Paris. Depois de se formar, trabalhou na Michelin e depois na Renault, desenvolvendo uma reputação de transformar as operações.

Como executivo da Renault, ajudou a formar uma aliança com a Nissan em 1999, sendo pioneiro na parceria transcontinental e liderando ambas as empresas por mais de uma década.

Ele diz que a divergência das montadoras desde sua saída contribuiu para as crescentes dificuldades financeiras da Nissan.

A Nissan, aliás, “está implorando por alguma ajuda financeira”, afirmou Ghosn, “e a Renault voltou a ser o que era antes de 1999: uma pequena empresa europeia”.

A Renault não quis comentar e a Nissan não respondeu aos pedidos de comentários. 

Preso no Líbano

Os promotores franceses estão se preparando para levar Ghosn a julgamento. Embora o Japão não permita julgamentos à revelia, a França, sim — e Ghosn não descarta a possibilidade de comparecer pessoalmente.

Ele disse que já havia pedido para viajar ao Brasil para ver sua mãe, que tem a doença de Alzheimer, mas as autoridades libanesas negaram seu pedido por causa dos mandados de prisão internacionais em seu nome. 

“Se você passar os próximos dez anos só enfrentando essas batalhas e se revoltando com a situação, perde dez anos de sua vida”, disse ele.

Traduzido do inglês por InvestNews

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