Nossa soja vive uma relação de dependência mútua com a China: 75% do que o Brasil exporta vai para lá; 70% do que a China importa vem daqui.

E esse entrelaçamento comercial tende a ficar ainda mais intenso. O segundo maior fornecedor para a China é justamente os EUA — responsáveis por 23% da soja que a China compra de fora. Em dinheiro, são US$ 36,4 bilhões para o Brasil, US$ 12 bilhões para os Estados Unidos.

Agora, a guerra comercial entre as duas potências, com o Trump mandando 145% de taxa sobre os produtos chineses e Xi Jinping respondendo com 125%, tem tudo para aumentar a fatia brasileira nesse bolo.

Quem diz é a própria China. Na semana passada, Zhao Chenxin, vice-diretor da Comissão Nacional de Desenvolvimento do país, falou numa coletiva de imprensa: “São basicamente grãos para ração. Essas variedades [de soja, milho e outros grãos dos Estados Unidos] são altamente substituíveis e há oferta suficiente no mercado internacional”, afirmou Zhao. “Mesmo que não compremos mais grãos para ração e óleo dos Estados Unidos, isso não vai ter qualquer impacto na oferta de grãos do meu país”.

Traduzindo do chinês, “mercado internacional” quer dizer, em grande parte, Brasil. Em termos de soja, 86% da produção global vem do Brasil ou dos Estados Unidos (57% BR; 29% US). Claro que outros países podem suprir parte dos US$ 12 bilhões em soja que os EUA mandam para lá. Mas a relevância do Brasil nessa seara é indiscutível.

O embate comercial começou para valer em abril, com a escalada das tarifas a níveis termonucleares. Ainda não há estatísticas de importação chinesa relativas ao mês passado. Mas uma notícia divulgada pelo China Media Group, conglomerado de mídia estatal chinês, afirmou que, só no porto Ningbo-Zhoushan, que fica ao sul de Xangai, eram esperados 40 navios abarrotados de soja importada do Brasil no mês de abril.

Isso representaria um aumento de 48% em relação às 27 chegadas em abril de 2024, de acordo com a imprensa estatal. A notícia era ilustrada por imagens de navios supostamente carregados de soja brasileira.

Um deles, o navio Ever Radiance, atracou por lá em 24 de abril, depois de deixar o Porto de Santos em 5 de março, segundo dados da ferramenta Mapyx, do Naval Port.

Navio Ever Radiance no Porto de Zhoushan, na China
Imagem divulgada pelo China Media Group mostra o navio Ever Radiance atracado no Porto de Zhoushan em 24 de abril.

E os fazendeiros dos EUA já deram indicativos de que não esperam uma demanda forte. O Departamento de Agricultura dos EUA (USDA), informou em abril que eles já planejam reduzir a área de plantio da soja em 4%. Diante das ameaças chinesas, talvez seja pouco.

A dependência chinesa

De cada seis sacas de soja que todos os países do mundo exportam, 60% tem a China como destino. É uma questão de sobrevivência. A China concentra 17,3% da população do planeta e 8,6% da área cultivada. No Brasil, a relação é outra: 2,6% da população mundial e 4,6% da área cultivada.

Com o enriquecimento chinês, aumentou também o consumo de carne no país. E os grãos de soja viraram um dos produtos mais cobiçados pelos chineses, para serem triturados e alimentarem as criações de porcos e aves, as preferências nacionais.

Desde 2022, o governo chinês tem feito esforços para encontrar outras alternativas de ração, de modo a reduzir sua vulnerabilidade no comércio exterior. As importações até diminuíram, mas seguem mastondônticas. Veja:

Déjà vu

Já aconteceu antes. Em 2018, no primeiro mandado de Trump, EUA e China também entraram em guerra comercial.

A briga naquele ano começou em março, quando os EUA impuseram 25% de tarifas sobre importações de aço e alumínio da China. Em junho, ela ampliou o rol de produtos tarifados, incluindo carros. Foi aí que a China retaliou com 25% de tarifas para uma lista de 545 produtos, dos automóveis à agricultura.

A soja americana entrou nessa leva. E a China foi obrigada a concentrar suas compras de soja no Brasil.

O preço pago pela soja brasileira chegou a subir 148% em média, segundo um relatório da Cogo Inteligência. E o Brasil, que no começo da década passada só respondia por um terço da soja importada pela China, chegou a concentrar 75% desse total em 2018.

Essa guerra arrefeceria em 2020, ainda sob Trump, depois de vários acordos. O problema (para os americanos) é que os exportadores de soja dos EUA jamais recuperaram o espaço perdido no mercado da soja chinês. E o Brasil manteve seu patamar elevado:

Agora, a China segue a mesma estratégia.

“Eles apostam que visar a soja será um ponto dolorido para a Casa Branca: os agricultores dos EUA são uma importante base política [para Trump]”, afirmou Joseph Webster, especialista do Centro de Energia Global do Atlantic Council, um think tank dos EUA.

Timing vantajoso

E o timing não poderia ser melhor. Todo ano, as exportações brasileiras tendem a crescer a partir do segundo trimestre, enquanto as dos EUA começam a cair. E a situação volta a se inverter por volta de outubro — já que as safras de cada país acontecem em épocas diferentes.

Neste ano, dados de comércio exterior da China indicam que as importações de soja americana até março aceleraram, possivelmente como antecipação aos efeitos tarifários.

Mas a expectativa é que elas caiam em abril, com potencial para o Brasil atingir níveis inéditos de venda para a China.

E o setor tem fôlego para aproveitar a oportunidade. Ao contrário de outras lavouras, que têm sofrido com extremos climáticos, a soja deve bater recorde de produção neste ano.

Em maio, a safra 2024/2025 entra no último mês de colheita e, segundo estimativas da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a estimativa é de chegar a quase 168 milhões de toneladas — 14% na comparação com o ano passado: