A maior disputa societária do Brasil foi também o principal teste já enfrentado pela arbitragem empresarial, que completará três décadas no país em 2026.

Durante sete anos, o impasse entre J&F e a Paper Excellence pelo controle da Eldorado Celulose acumulou questionamentos sobre a arbitragem, suspeitas de espionagem, troca de árbitros e batalhas judiciais paralelas.

No fim, nem a Justiça nem a arbitragem deram conta de resolver o conflito: o desfecho veio com um acordo bilionário fechado em uma sala do banco BTG Pactual, com a família Batista aceitando recomprar a parte do antigo sócio por US$ 2,7 bilhões.

O caso da Eldorado expôs os limites do sistema de resolução de conflitos fora dos tribunais — mas não representou, segundo profissionais ouvidos pelo InvestNews, uma derrota para o modelo. Apesar dos questionamentos, estima-se que apenas uma fração das arbitragens seja efetivamente cancelada pelo Judiciário.

Mesmo com seus custos e restrições, a arbitragem se consolidou como o principal foro usado por grandes companhias para resolver disputas societárias, concessões e fusões. Um sistema técnico, confidencial e caro — que virou o tribunal discreto dos grandes negócios.

“A grande maioria das disputas é feita e resolvida sem que ninguém fique sabendo”, resume Rodrigo Fonseca, presidente do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC), a principal entre as oito câmaras arbitrais que existem no país. No ano passado, o CAM-CCBC registrou 126 novos casos de arbitragem, com cerca de R$ 6 bilhões em disputa.

A arbitragem se consolidou no meio empresarial brasileiro ao longo das últimas décadas. Em 2024, o Brasil foi o segundo país que mais atuou na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (ICC, em inglês), localizada em Paris e a principal câmara arbitral do mundo. Foram 156 disputas, atrás apenas das empresas dos Estados Unidos (167). O ICC soma US$ 354 bilhões em litígios de empresas do mundo todo.

O caminho privado

Diferentemente da Justiça tradicional, onde juízes são designados pelo Estado e os processos seguem um rito fixo e público, a arbitragem é um caminho privado e deve ser previsto nos contratos. No Brasil, essa via foi regulamentada pela lei de 1996, e só deslanchou de fato após ser declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2001. 

De lá pra cá, tornou-se o método preferido da elite empresarial para resolver conflitos de alto valor — especialmente entre sócios, em contratos de fusão e aquisição ou concessões com entes públicos.

Os árbitros são escolhidos pelas próprias partes, o processo corre sob sigilo e a sentença tem o mesmo peso de uma decisão judicial. Nada impede que um impasse bilionário seja resolvido por três especialistas reunidos numa sala, fora dos tribunais. E é exatamente isso que acontece.

O caso que marcou a entrada da arbitragem no radar das grandes empresas brasileiras aconteceu logo após a publicação da lei, quando a Caoa acionou a Renault após a montadora francesa romper unilateralmente um acordo de distribuição de veículos no Brasil. E, obviamente, foi judicializada.

O litígio foi submetido à ICC, com a Caoa pedindo US$ 600 milhões em indenização à Renault. Em 2002, a Corte Arbitral Internacional entendeu que a montadora francesa não foi culpada pelo fim da parceria e decidiu que a indenização ao grupo brasileiro seria de R$ 5 milhões. Apesar das tentativas de judicialização, a Caoa acabou vendo suas tentativas serem negadas.

“Foi um marco, porque teve uma discussão sobre a instalação da arbitragem. Foi a primeira vez que se consolidou o uso de uma cláusula para arbitragem em contratos”, relembra Vamilson Costa, sócio do CTP Advogados, que atuou no caso, considerado o leading case (caso de referência) da arbitragem no Brasil.

Na Justiça

Se a disputa da Caoa ajudou a consolidar a arbitragem no país, o caso da Eldorado Celulose mostrou seus limites. O impasse se arrastava desde 2018, atravessou os tribunais, virou uma guerra de liminares e só foi encerrado com um acordo extrajudicial há poucos dias — e fora da sentença arbitral.

Unidade industrial da Eldorado Brasil Celulose em Mato Grosso do Sul
Eldorado: briga pelo controle da empresa foi tema de arbitragem (Divulgação)

Apesar da complexidade do caso, que envolveu a suspeição de árbitros, disputas paralelas no exterior, acusação de espionagem e tentativas de anulação, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) havia preservado a decisão da arbitragem, que deu razão à Paper, embora outras batalhas jurídicas não permitissem um desfecho da disputa.

“O Judiciário mostrou respeito à arbitragem e a protegeu. Isso é relevante como mensagem para todos os players”, diz o advogado e árbitro Gabriel de Britto Silva, membro da comissão de arbitragem da OAB/RJ. “Há plena segurança jurídica quanto ao uso da arbitragem no país, que está madura.”

Outro “teste de estresse” da arbitragem empresarial envolveu a Iguá Saneamento e o governo do Rio de Janeiro. Vencedora do leilão dos serviços de água e esgoto da região metropolitana do Rio de Janeiro em 2021, a Iguá constatou que alguns indicadores operacionais não correspondiam aos anunciados à época do leilão de privatização.

Diante da divergência de números, a Iguá iniciou uma arbitragem contra o governo estadual para obter R$ 828 milhões no desconto da outorga de R$ 7,3 bilhões. Ao quitar a última parcela, a Iguá acionou a arbitragem e reteve o valor em uma conta arbitral (que só poderia ser sacada pelo vencedor da arbitragem). 

Iguá Saneamento
Iguá Saneamento (Divulgação)

O governo do Rio resolveu judicializar o caso, mas, no fim, fechou acordo com a Iguá para decidir a questão na arbitragem, mas com a contrapartida que os R$ 828 milhões fossem para os cofres públicos. No fim, a lógica contratual da arbitragem venceu: mesmo judicializada, a disputa voltou à esfera privada — e será resolvida fora dos tribunais.

De acordo com estudo do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr), menos de 1% das sentenças arbitrais foram anuladas entre 2018 e 2022. “A prática de anulação após uma derrota não vem sendo aceita pelos tribunais”, lembra Britto Silva. 

“O sucesso da judicialização é muito restrito. Quando a parte cumpre espontaneamente a decisão da Justiça, você nem fica sabendo que o caso existiu”, acrescenta Fonseca, do CAM-CCBC.

Em números

Nos últimos anos, a arbitragem brasileira se consolidou não só como prática comum, mas como sistema em franca ascensão. Em 2023, as principais câmaras do país administraram mais de R$ 29 bilhões em disputas, envolvendo desde brigas societárias até contratos de infraestrutura e energia, segundo levantamento da Câmara de Arbitragem Empresarial – Brasil (Camarb).

As brigas societárias, como contratos de M&A ou acordo de acionistas, lideram o número de arbitragens, com os contratos de construção e infraestrutura ocupando a segunda posição.

A duração média das arbitragens ficou em torno de 24 meses, tempo que pareceria irreal para qualquer processo similar no Judiciário. Cerca de um quarto dos valores em disputa vieram de litígios com entes públicos, num movimento crescente de adesão à arbitragem por estados, municípios e empresas estatais.

“Contratos novos de concessão e PPP saem quase todos com cláusula de arbitragem. Temos visto um crescimento de causas nos estados e municípios, especialmente em saneamento”, afirma Fonseca.

Quem arbitra — e por quê

A arbitragem nunca foi pensada para ser popular (e continua não sendo).

O custo de entrada é alto: uma disputa de R$ 10 milhões pode gerar despesas entre R$ 600 mil e R$ 1 milhão, somando taxas da câmara, honorários dos árbitros e despesas processuais. Isso sai quase três vezes mais que o custo no judiciário.

Ainda assim, para as empresas que usam, o valor compensa. “Em causas de grande porte, vale cada centavo”, diz Vamilson Costa, sócio do CTP Advogados. O argumento principal? Tempo.

Enquanto a Justiça comum pode levar uma década para concluir um processo complexo, a arbitragem costuma entregar uma sentença em dois anos — com índice elevado de cumprimento espontâneo, ou seja, sem contestações.

Além da agilidade, as empresas valorizam a especialização técnica. As partes podem indicar árbitros com experiência no setor em disputa: advogados, professores, ex-juízes, engenheiros ou contadores — dependendo do tema.

A composição do tribunal costuma ter três membros, escolhidos pelas próprias partes. O resultado é um ambiente menos formal, mais técnico e, segundo os praticantes, mais eficiente. Um tribunal da elite, feito sob medida para quem pode pagar e não tem tempo a perder.