As empresas de cartão de crédito ganharam um novo e poderoso aliado na luta contra o Pix: o presidente dos EUA, Donald Trump.

O Pix, há muito tempo o pesadelo da Visa, da Mastercard e de big techs, é um dos vários alvos de investigações dos Estados Unidos sobre alegações de práticas comerciais desleais.

Se o governo Trump concordar com os argumentos das empresas de que o Pix possui uma vantagem injusta e precisa de padrões de segurança mais elevados, seria uma vitória para as empresas e um golpe contra tecnologias de pagamento apoiadas pelo governo, como a do Brasil.

As reclamações corporativas contra o Pix, criado e regulamentado pelo Banco Central brasileiro, foram ignoradas durante anos em Washington. A campanha ganhou força quando o governo Trump começou a se mobilizar em apoio ao aliado de direita Jair Bolsonaro, condenado neste mês por planejar um golpe.

O Pix é usado em transações que antes eram feitas com cartão. Agora, tornou-se um poderoso símbolo de soberania diante da escalada da guerra comercial dos EUA, à qual Brasília promete resistir.

A batalha para capturar o mercado de transações digitais no Brasil é um microcosmo de um esforço das empresas de cartão de crédito para defender o que seria, segundo elas, um campo equilibrado em todo o mundo.

Pix é o preferido entre meios de pagamento

Lançado em 2020, o Pix rapidamente se tornou um sucesso. Hoje, são quase 160 milhões de usuários ativos mensais em um país de 210 milhões de habitantes. Só em agosto, mais de R$ 3 trilhões foram movimentados pela rede, segundo o Banco Central.

O Banco Central afirmou que o incentivo ao uso do Pix atraiu mais pessoas para o sistema bancário formal.

Oferecendo transferências instantâneas sem taxas para os consumidores, o Pix agora ultrapassa os cartões de crédito e débito como o método de pagamento preferido no Brasil.

Quando o governo Trump levou sua guerra comercial ao Brasil na tentativa de resgatar Bolsonaro de problemas na Justiça, ele abriu a porta para que as empresas de cartão argumentassem que o Pix não estava cumprindo as regras.

A repressão sobre o Brasil ganhou força em julho, quando os EUA anunciaram tarifas comerciais de 50% sobre algumas exportações brasileiras.

Paralelamente, o Escritório do Representante do Comércio dos EUA lançou um ampla investigação contra o Brasil por supostas práticas desleais, incluindo serviços de comércio digital e pagamentos eletrônicos.

‘Campo de jogo desigual’

Em uma audiência, representantes de grupos comerciais sediados nos EUA alegaram que o Pix prejudicou empresas privadas e confundiu a linha entre o regulador e os participantes do mercado.

Sean Murphy, vice-presidente do Conselho da Indústria de Tecnologia da Informação, que representa empresas como a Visa, a Mastercard, Amazon e Apple, citou um “campo de jogo desigual para empresas de serviços de pagamento digital que competem com a alternativa apoiada pelo governo”, de acordo com uma transcrição da audiência.

O conselho argumentou que o banco central poderia explorar o acesso a informações confidenciais e sigilosas sobre seus concorrentes privados. O conselho acrescentou que o Pix deveria estar sujeito aos mesmos padrões regulatórios, de segurança cibernética e operacionais, além de supervisão, das plataformas do setor privado.

Neil Herrington, da Câmara de Comércio dos EUA citou uma “falta de transparência e separação de governança” devido ao duplo papel do banco central como operador e regulador do sistema.

O governo brasileiro sustenta que suas políticas e iniciativas de serviços de pagamento eletrônico não discriminam, já que as plataformas digitais são livres para oferecer seus próprios serviços de pagamento.

O diplomata brasileiro Roberto Azevedo, consultor da Confederação Nacional da Indústria, rebateu as alegações de que o Pix reduziu a concorrência. “Este sistema de pagamento aumentou a inclusão financeira, reduziu a dependência de dinheiro físico e aumentou a eficiência no varejo e no comércio eletrônico, beneficiando fortemente as empresas dos EUA”, disse Azevedo na audiência.

O ex-presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que chefiava a instituição quando o Pix foi lançado, disse que o argumento anticompetitivo não faz sentido. “O Pix foi criado para promover a inclusão e gerar competição bancária, e o Banco Central não lucra com ele”, disse. “Pelo contrário, gasta dinheiro todo ano para manter o Pix.”

A Visa informou que está monitorando a investigação e interagindo com autoridades governamentais no Brasil e nos EUA para identificar oportunidades de fortalecimento da colaboração em pagamentos digitais. A Mastercard não respondeu aos pedidos de entrevista.

Sistemas indianos e russos

O Brasil é apenas um campo de batalha na disputa global por sistemas de pagamento. Nos EUA, por exemplo, as empresas de varejo estão de olho nas stablecoins como uma alternativa digital aos métodos de pagamento tradicionais.

“O sistema UPI da Índia, que, assim como o Pix, é gratuito para consumidores e quase sem custos para comerciantes, demonstra a rapidez com que um sistema baseado em contas, patrocinado pelo Estado, pode substituir os cartões em larga escala quando se tornar o padrão para o comércio diário”, disse o consultor em pagamentos Richard Crone, em São Francisco.

No caso da plataforma russa Mir, o uso disparou depois que os EUA e aliados impuseram sanções e a Visa e a Mastercard se retiraram em 2022, mostrando como a pressão americana pode sair pela culatra, disse Crone. “A consequência não intencional da postura atual dos EUA em relação ao Brasil pode ser a mesma”, afirmou.

Crone calcula que cada mudança de 1% dos cartões de crédito gera uma perda de US$ 200 milhões a US$ 400 milhões em taxas. “Este impacto só aumentará exponencialmente quando o Pix adicionar pagamentos autônomos”, acrescentou, referindo-se a transações totalmente geradas por IA.

O Pix já está incorporando novas ferramentas que imitam cartões de crédito, como o Pix Parcelado, que divide as compras em mais parcelas com taxas mais baratas, e o Pix Automático, para pagamentos recorrentes.

Estes recursos “podem substituir parcialmente os cartões de débito e crédito”, de acordo com Daniel Alvarenga, advogado especializado em fintechs e que faz parte do grupo de trabalho Pix do BC.

Mercado de cartões no Brasil

Ainda assim, os brasileiros não perderam o apetite por cartões de crédito, às vezes apenas porque eles podem dar acesso a cobiçadas salas VIP de aeroportos ou permitir que acumulem milhas aéreas.

Uma pesquisa do Banco Central dos métodos de pagamento preferidos, de 2024, mostrou que a preferência por cartões de crédito cresceu de 44,5% em 2021 para 51,6% em 2025. E o número de emissões de cartões de crédito cresceu de 239 milhões em 2020 para 510 milhões em 2024.

O Brasil vê a investigação, que levará de seis a 12 meses, como uma forma de o governo Trump ainda retaliar o país, caso suas tarifas sejam definitivamente derrubadas na justiça, de acordo com uma pessoa familiarizada com o assunto.

Os ataques dos EUA ao Brasil estão gerando outro efeito contrário, ao aumentar a popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Lula encontrou um novo propósito ao desafiar Trump antes das eleições presidenciais no próximo ano.

Em um evento no mês passado, Lula atacou as empresas de cartão de crédito.

“Qual é a preocupação deles?”, perguntou ele. “É que, se o Pix dominar o mundo, os cartões de crédito desaparecerão.”