O consumo de cerveja dá poucos sinais de melhora, mas a guerra entre as gigantes do setor está mais quente do que nunca. E deve, em breve, ganhar contornos ainda mais tensos. Segundo fontes ouvidas pelo InvestNews, a desafiante Heineken se prepara para questionar mais uma vez no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) contratos de exclusividade com bares firmados pela líder Ambev. O que parecia uma história concluída, promete ter novos capítulos.

O desafio da Heineken, hoje a segunda maior cervejaria do país, com 25% do mercado, não é pequeno. Ela vive uma espécie de jogo de rouba-monte com a Ambev – que tem a seu favor um portfólio bastante diverso e uma força de distribuição difícil de ser replicável. E esse disputado mercado cresce muito pouco: desde 2021 esse mercado de mais de 15 bilhões de litros pouco andou e, em 2025, chega a tropeçar. Na visão dos analistas, não há sinais de uma retomada consistente até o fim desta década.

Com tudo isso, a companhia inaugura sua fábrica de Passos (MG) em novembro com uma promessa ambiciosa: aumentar sua capacidade de produção em 10%. Ao chegar à sua 15 fábrica no país, o grupo holandês avança na estratégia de ampliar volume.

Para Mauro Homem, vice-presidente de sustentabilidade e assuntos corporativos da Heineken Brasil, o projeto simboliza o compromisso de longo prazo da companhia no país. “De 2020 para cá, já investimos mais de R$ 6 bilhões no Brasil. Agora destravamos qualquer restrição de capacidade e estaremos ainda mais competitivos, com eficiência logística e proximidade maior dos clientes”, afirma.

Com maior capacidade produtiva, os esforços da Heineken vão se voltar para a distribuição, especialmente porque a fábrica está no Sudeste, principal mercado do setor.

A outra resposta à inércia do mercado tem a ver com o portfólio, porque é na criação de novas ocasiões de consumo, categorias e sabores que as fabricantes têm visto espaço para crescer. De 2019 até o ano passado, os rótulos premium cresceram 10% segundo a consultoria Euromonitor. São as cervejas de maior valor agregado, como a própria Heineken e marcas como Corona e Stella, da Ambev.

O peso da líder e a briga de bar

Mas ganhar mercado no Brasil não é simples. A holandesa Heineken desembarcou no Brasil em 2010, quando comprou a operação de cerveja da mexicana Femsa, dona da Kaiser e da Sol. Mas foi em 2017 que deu o salto: a compra da Brasil Kirin (antiga Schincariol) por 1,025 bilhão de euros a transformou na número 2 do setor – embora ainda tenha uma boa distância da líder Ambev.

A holandesa cresceu rápido, mas a Ambev continua sendo um obstáculo de peso: com 60% de participação, a líder ainda domina o setor. A empresa é reconhecida pela habilidade de gerir portfólio. Novos rótulos e sabores são testados constantemente, e iniciativas como a Brahma Duplo Malte ou a expansão de Corona no Brasil mostram a agilidade da líder para criar e fortalecer marcas.

“A Ambev é uma aula de como trabalhar portfólio”, resume Cid Passini, diretor da consultoria L.E.K.. “Ela sabe posicionar e criar um mosaico de produtos que cobre diferentes preços, regiões e ocasiões de consumo.” Neste mês, a Ambev começou a testar em poucos mercados a Flying Fish, uma cerveja com toque de limão que pertence à holding Ab InBev.

E mesmo enfrentando o desafio de voltar a crescer vendas e recompor margens, a Ambev conta com um sistema de distribuição extremamente azeitado e eficiente, capaz de colocar Brahma, Skol, Antarctica, Original, Budweiser, Corona, Spaten e tantos outros rótulos em praticamente qualquer bar ou supermercado do país.

A Ambev investiu em soluções digitais que a tornaram referência em inovação. O BEES, sua plataforma B2B, conecta milhões de pontos de venda e permite gerir pedidos de forma rápida e personalizada. Já o Zé Delivery, de entregas de bebidas em casa, transformou-se em um case global de sucesso, expandindo o alcance direto ao consumidor. No primeiro trimestre deste ano, o número de pedidos cresceu 5%, para 17 milhões.

O tom da briga, porém, aumentou. A disputa ficou evidente nos espaços mais “nobres” de consumo, especialmente nos contratos de exclusividade em bares de bairros boêmios das grandes cidades e patrocínios de grandes eventos. Em 2022, a própria Heineken levou ao Cade uma contestação contra os acordos de exclusividade da Ambev nesses pontos de venda. Em 2024, o órgão antitruste estabeleceu novas regras para limitar a prática, entendendo que havia risco de prejudicar a concorrência.

Fontes de mercado afirmam que a Heineken tem argumentado com o Cade que as restrições impostas no acordo não estão sendo cumpridas. O grupo tem agendado audiências com conselheiros para mostrar estudos que evidenciam o não cumprimento, especialmente em São Paulo e Rio de Janeiro, apurou o InvestNews. A empresa não quis comentar, mas em comunicados à época da decisão, afirmou que “o objetivo da companhia é permitir a liberdade de escolha dos consumidores e garantir o crescimento do mercado”.

O fim do samba de (quase) uma nota só

A Heineken fincou sua bandeira no país apostando pesado na força da própria marca. A garrafa verde ganhou status de símbolo social — virou diferencial no churrasco ou na mesa do bar — e se consolidou como sinônimo de cerveja premium. Esse trabalho transformou o Brasil no maior mercado consumidor da companhia em todo o mundo. Em paralelo, a Amstel cresceu de forma acelerada, dobrando de tamanho em cinco anos e entrando no grupo das cinco cervejas mais vendidas do país.

A estratégia fez a Heineken se posicionar como “premium acessível”, como define Passini. “O consumidor entendeu o valor agregado e passou a enxergar a marca como objeto de desejo, mas dentro do orçamento da maioria”, diz. A Heineken também soube explorar ocasiões de consumo com a versão 0.0, que se destacou ao se associar a territórios como a Fórmula 1. Para Passini, a marca saiu na frente na corrida das sem álcool.

Mas todo o esforço de marca do grupo por anos se concentrou no rótulo principal e na Amstel, o que limitou sua capacidade de criar mais categorias, segundo especialistas. É o caso de cervejas low carb ou sem glúten, algo em que a líder Ambev se antecipou com rótulos como Michelob Ultra e Stella Pure Gold.

Os sinais de mudança de planos ficaram mais evidentes neste ano e o grupo passou a explorar também outras marcas do portfólio. A Eisenbahn foi a patrocinadora oficial do festival The Town, em São Paulo, por exemplo. Na primeira edição, em 2023, a patrocinadora do evento foi a marca Heineken. Para Renata Cabral, analista do Citi, esse movimento indica maior diversificação da estratégia no Brasil. “A escolha de Eisenbahn sinaliza que a empresa busca ampliar relevância no portfólio local, conectando-se a diferentes públicos e ocasiões de consumo, reforçando a competição frente à Ambev, que sempre se apoiou em múltiplas marcas”, afirma.

O próximo capítulo

Dados da Statista apontam que o volume per capita de consumo de cerveja no Brasil deve terminar 2025 em 75,8 litros, e não deve superar os 84 litros em 2030. Além da estagnação em volumes, o setor como um todo enfrenta limitações de rentabilidade. As margens EBITDA tendem a seguir pressionadas, o que reforça a importância de categorias de maior valor agregado, como premium, zero álcool e novas variantes funcionais.

Mas, para Homem, ainda há espaço em novas ocasiões e categorias. “O consumidor brasileiro está bebendo melhor, escolhendo marcas com atributos de qualidade e valor agregado. Isso abre oportunidade não só para a Heineken, mas também para marcas como Eisenbahn e Praya”, diz. Entre as apostas, ele cita a expansão do mercado premium e a força das cervejas sem álcool, que já ganham tração como alternativa em eventos e no dia a dia.

No primeiro semestre, a Heineken saiu favorecida pelo movimento de “beber menos, beber melhor”: mesmo com clima mais frio e inflação pressionando o consumo fora de casa, a companhia ganhou participação de mercado no canal off-trade, como supermercados e e-commerce. “Esse espaço é onde temos maior oportunidade de crescer”, afirma Homem. A vantagem no primeiro semestre também teve outra razão: a Heineken fez menos reajustes de preço do que a Ambev, o que favoreceu o grupo holandês no curto prazo.

O time de analistas da XP estima uma queda de 6,1% nos volumes de cerveja Brasil da Ambev no terceiro trimestre, citando clima e preço relativo. No segundo, a queda foi 8%, o que pressionou o papel. A corretora, agora, rebaixou a ação de neutro para venda.

A disputa, portanto, continua acirrada. O próximo capítulo será escrito em novembro, quando a fábrica mineira abrir as portas — e com ela, a aposta holandesa de que a garrafa verde ficará cada vez mais presente nas mesas brasileiras.