Após anos de gastos maciços em defesa, o país entrou em um estado de militarização permanente, que transformou fábricas e absorveu centenas de milhares de trabalhadores. Essa guinada ajudou a evitar uma retração econômica, mas tornou um eventual recuo ainda mais arriscado.
E o Kremlin não demonstra intenção de recuar. O presidente Vladimir Putin considera essencial manter uma força militar russa bem equipada — algo que líderes ocidentais temem que possa ser direcionado contra a Otan dentro de cinco anos — e pretende integrar a indústria bélica florescente à sua visão de longo prazo.
Enquanto Putin traça seus planos e a Europa despeja bilhões para rearmar seus exércitos, a grande questão será o destino do excesso de tanques e mísseis produzidos pelas fábricas russas. Moscou pode tentar transformar esse gasto orçamentário em receita, exportando armas para aliados como a China.
Mas, ao mesmo tempo em que esses equipamentos se acumulam nas fronteiras orientais da Otan, elevando a tensão com a Europa, também podem virar um fardo para uma economia que já sofre com sanções, fragilidade bancária e crescimento baixo.
Na semana passada, em visita à mais antiga fábrica de defesa do país, Putin deixou claro que pensa além do conflito atual: “A demanda por forças armadas modernas não termina aqui”, disse.
O aumento da produção militar tem sido impressionante. Antes da invasão em larga escala da Ucrânia, em 2022, a meta era entregar cerca de 400 veículos blindados no ano seguinte. Agora, esse número é dez vezes maior. O país também abriu linhas próprias de drones, após inicialmente depender de importações do Irã. Foram produzidas 1,5 milhão de unidades em 2024, contra 140 mil em 2023.
Os custos, porém, também são enormes. Entre 2022 e 2024, os gastos com defesa chegaram a pelo menos 22 trilhões de rublos (US$ 263 bilhões). E não há sinal de contenção para os próximos anos, pressionando um orçamento já sufocado pelas sanções.
A Rússia pode se inspirar no pós-Segunda Guerra. A mobilização da União Soviética em 1941 abriu caminho para que o país se tornasse um dos maiores exportadores globais de armas, lembra Tatiana Orlova, da Oxford Economics. Para ela, a guerra atual virou um “grande campo de testes” para novas armas e tecnologias, que devem ser exportadas tanto por Moscou quanto por Kiev assim que o conflito arrefecer.
Antes da invasão, a Rússia já era o segundo maior fornecedor de armas do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. As vendas caíram porque a produção foi consumida na própria guerra, mas sinais de recuperação já aparecem. Indústrias russas voltaram a participar de feiras na Índia, China, Oriente Médio, África e, pela primeira vez em seis anos, em países como Malásia e Brasil. A oferta cobre todo o espectro de equipamentos militares, com possibilidade de transferências de tecnologia e produção conjunta.
A estatal Rosoboronexport, responsável por 85% das vendas externas, afirma que a demanda reprimida levou sua carteira de pedidos a um recorde de US$ 60 bilhões. Estimativas do Centro para Análise do Comércio Mundial de Armas indicam que a Rússia poderia exportar de US$ 17 bilhões a US$ 19 bilhões por ano nos primeiros quatro anos após o fim da guerra, puxada pelo apetite do sul global em reduzir dependência dos EUA.
“É claro que a demanda por armas russas não desapareceu”, disse Anna Borshchevskaya, do Washington Institute for Near East Policy. Para ela, países do Oriente Médio e do Norte da África veriam até mesmo um cessar-fogo temporário como oportunidade para explorar as novas cadeias de fornecimento de Moscou. O preço também pesa: com a escala de produção, alguns equipamentos ficaram mais baratos do que antes da invasão.
Ainda assim, a estratégia tem falhas. A carteira da Rosoboronexport, embora robusta, representa menos da metade do orçamento anual de defesa. E clientes potenciais podem sofrer pressões ocidentais, como ocorreu quando Donald Trump pediu que a Índia parasse de comprar petróleo russo. Além disso, segundo Orlova, mesmo que as fábricas militares continuem operando e sustentem parte da atividade econômica, cortes salariais e demissões podem ocorrer, já que a demanda externa dificilmente manterá as linhas funcionando em regime contínuo.
Putin insiste que os investimentos em armamentos não foram desperdiçados. Para ele, a transição exigirá não apenas mais exportações, mas também a aproximação entre indústrias militares e civis. Componentes usados em setores como construção naval, aviação, eletrônicos, equipamentos médicos e agricultura poderiam ganhar uso “dual”, atendendo tanto à defesa quanto à economia tradicional.
O fator decisivo, porém, continuará sendo a manutenção de uma força de combate pronta para agir além da Ucrânia. Na visão do Kremlin, a capacidade ampliada de produção militar não é um recurso temporário — veio para ficar.