A criação da faixa 4 do Minha Casa Minha Vida levou a Cury, uma tradicional construtora com mais de 60 anos de mercado, a refazer – para melhor – as estimativas de vendas para 2025. “É um momento de alinhamento dos astros”, comemorou o presidente do conselho e diretor da empresa, Ronaldo Cury De Capua. É que a nova regra alcança um mercado potencial de 120 mil novos beneficiários. Uma ajuda e tanto em um cenário no qual os juros elevados têm afastado centenas de milhares famílias do crédito imobiliário.
Ao longo das décadas, a Cury se especializou no mercado de residências populares nas regiões metropolitanas de São Paulo e Rio de Janeiro. No primeiro trimestre, comercializou R$ 2,1 bilhões, dos quais 70% para clientes do programa MCMV. Mas essa fatia poderia ter sido bem maior, perto de 95%. Isso porque boa parte dos clientes que não se enquadraram no programa tinham renda que, hoje, está dentro da faixa 4 do MCMV – entre R$ 8 mil e R$ 12 mil por mês. E isso amplia o potencial de vendas de empresas como a Cury.
“Os recursos direcionados ao MCMV estão na máxima histórica. Com a aceleração de unidades vendidas no programa, os planos diretores nas capitais paulista e fluminense também passaram a incorporar incentivos para trazer a habitação popular para as áreas mais centrais”, diz De Capua. Isso significa que esse novo crédito imobiliário surge em um momento no qual os novos projetos em São Paulo e no Rio passam a ter mais apelo a famílias de classe média que, sem conseguir financiar, preferem pagar aluguel do que adquirir imóveis em áreas mais periféricas.
MCMV finalmente inclui a classe média
Mas por que o governo resolveu criar uma nova faixa no programa Minha Casa Minha Vida? O principal motivo foi ajudar as famílias de classe média que acabaram excluídas do crédito imobiliário no atual cenário de juros altos. São pessoas com uma renda acima do antigo teto do MCMV mas que, ao mesmo tempo, não conseguiam arcar com as taxas de mercado, que ficaram mais altas.
Uma pesquisa do curso de desenvolvimento de negócios imobiliários da FGV indica que cada variação de um ponto percentual no custo médio do financiamento habitacional barra o acesso de até 1 milhão de famílias. E foi o que aconteceu do início de 2024 para cá, quando a taxa média saiu de 10,5% ao ano para 11,5%.
A nova faixa, de quebra, vai ajudar o próprio setor de construção, dando um impulso extra na aquisição da casa própria. A ampliação da abrangência do programa também tem a ver, de maneira indireta, com a crise da poupança. O programa de habitação popular se tornou, na prática, uma maneira de socorrer seu irmão mais velho e mais rico, o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), que depende dos recursos da caderneta e atende, principalmente, a classe média.
A poupança funciona como a principal fonte de recursos para o SFH. A lei obriga os bancos a direcionar 65% do saldo depositado na caderneta para o crédito imobiliário no sistema financeiro de habitação. Vale tanto para as linhas contratadas pelas construtoras quanto aos empréstimos destinados às pessoas físicas.
O dinheiro depositado na aplicação tem um custo baixo para os bancos – afinal, a poupança rende bem menos do que o CDB, por exemplo. E isso viabiliza a oferta das menores taxas de financiamento de todo o mercado de crédito. Mais baixas até do que as do consignado.
A caderneta oferece uma remuneração fixa de 0,5% ao mês mais a variação da taxa referencial de juros (TR). Isso representa um retorno de 6,17% mais a TR. No caso dos recursos obtidos de investidores, o menor custo é definido pela taxa básica Selic, atualmente em 14,25% ao ano, que o CDI acompanha de perto.
E é por isso mesmo que cada vez menos brasileiros deixam seu dinheiro na poupança – de 2021 a março de 2025, os saques superaram os depósitos em R$ 287,7 bilhões. E aí, as instituições financeiras precisam complementar esse “funding”, como o mercado chama as fontes de recursos, com dinheiro mais caro captado de investidores por meio de títulos de renda fixa, como as letras de crédito imobiliário (LCI), as letras imobiliárias garantidas (LIG) e os certificados de recebíveis imobiliários (CRI).
Segundo a Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip), na atual estrutura de funding do crédito imobiliário do sistema brasileiro de poupança e empréstimo (SBPE) a participação da caderneta encolheu para 30% de uma fatia que superava 65% em 2015. Os instrumentos de mercado, por outro lado, já representam 40%. O restante vem do FGTS. O problema é que esse mix acaba encarecendo as linhas de financiamento.
Solução para a crise da poupança
“A situação da poupança é irreversível”, afirma o presidente da Abecip, Sandro Gamba. “Entendemos que caderneta não vai voltar a ter o mesmo percentual na estrutura de recursos para o mercado imobiliário.”
A solução provisória para esse esgotamento da poupança foi usar um fundo federal que recebe dinheiro de royalties do petróleo, o Fundo Social do Pré-sal, para abastecer a faixa 4 do MCMV e subsidiar parte dos juros. Ou melhor, uma mistura de recursos do fundo com aqueles captados no mercado.
Serão R$ 15 bilhões vindos dos royalties e outros R$ 15 bilhões obtidos por instrumentos de renda fixa pelas instituições. Como resultado o empréstimo habitacional na banda mais alta do programa habitacional vai sair a 10,5% anuais, bem mais baixo do que os 11,5% ao ano na média do financiamento do SFH.
Além disso, o mutuário poderá parcelar em até 420 vezes (35 anos), com um limite de financiamento de R$ 500 mil, para imóveis novos e usados. O teto é para o valor emprestado, sem considerar a entrada.
“Esses R$ 30 bilhões vão sair bem rápido”, afirma o presidente da Associação Brasileira das Incorporadoras (Abrainc), Luiz França. “Se tivessem mais recursos, o mercado absorveria sem dificuldade, porque a demanda no Minha Casa e no médio padrão continuam bem fortes.”
Nova fonte de recursos
França, da Abrainc, defende que os recursos dos royalties do petróleo destinados ao setor imobiliário sejam permanentes. “Que esses R$ 15 bilhões do fundo sejam recorrentes é um pleito que a gente tem. O mercado imobiliário é de médio prazo, porque da compra do terreno até o lançamento de um empreendimento leva um tempo grande, e sem previsibilidade é difícil para as incorporadoras fazerem um planejamento.”
Gamba, da Abecip, que representa os bancos com atuação no crédito imobiliário, defende ainda uma mudança nas regras de emissão das LCI. Conforme o dirigente, as letras de crédito imobiliário têm sido, atualmente, uma das principais fontes de captação das instituições de recursos para as linhas de financiamento à construção e para aquisição da casa própria.
No início da 2024, uma resolução do Conselho Monetário Nacional (CMN) mudou as regras para emissão de LCIs e ampliou para 9 meses o prazo para que o investidor possa ter liquidez diária na aplicação, sem penalidade de rendimento. Na norma antiga, eram três meses. “Antes da alteração do prazo de liquidez, as instituições captavam em média R$ 30 bilhões por mês. Após a regulamentação caiu para R$ 10 bilhões e hoje a produção tem girado em torno de R$ 20 bilhões. Além disso, o custo de distribuição aumentou.”
O presidente da Abecip explica que, com aumento do custo, a LCI tem ficado muito perto do patamar do CDI, quando, historicamente, saia entre 80% a 90% do referencial de juros conservador, devido ao benefício de isenção de IR para a pessoa física. “Para efeito do crédito, pressiona a taxa do financiamento e não contribui da forma que teria de ser para o custo do crédito imobiliário.”