Economia
‘Não tem saída’ para o Renda Cidadã sem estourar teto de gastos, diz economista
Miguel Daoud, analista de economia e política da Global Financial Advisor, afirma que o mercado segue à espera de solução para as contas públicas.
Nas últimas semanas, preocupações sobre o Renda Cidadã e o teto de gastos deixaram de ser novidade no mercado financeiro. Essas incertezas, que levaram o Ibovespa e o real aos piores patamares na comparação com as bolsas e moedas de outros países, fazem parte do temor do mercado sobre o agravamento do problema histórico das contas públicas no Brasil.
Em meio ao pagamento do auxílio emergencial e da piora das contas públicas, o governo propôs a criação do programa Renda Cidadã para substituir o Bolsa Família. No entanto, ainda não se sabe como ele será financiado, e as possibilidades levantadas até agora geraram ruídos no mercado (como usar o abono salarial, precatórios e acabar com o desconto no Imposto de Renda).
Apesar da recorrência das preocupações, o economista Miguel Daoud, analista de economia e política da Global Financial Advisor, afirma que “o mercado tem esperança de que se encontre uma solução” para o descontrole das contas públicas – mas ela tem que ser sustentável.
“O mercado sabe qual é a saída. A a alternativa mesmo que o governo deveria colocar é o corte de gastos. Mas, até agora, não se disse quando vai cortar, onde vai cortar, de que forma vai cortar. Então, esse ‘vai e não vai’ realmente cria uma perda de credibilidade”, diz Daoud, acrescentando que o principal problema do mercado financeiro hoje é que “o gerenciamento das expectativas na questão fiscal está muito ruim, e isso acaba trazendo para o presente essa volatilidade”.
Veja abaixo a entrevista completa:
Investnews: Esses desencontros na comunicação do governo sobre como financiar o Renda Cidadã já estão precificados pelo mercado?
Miguel Daoud: Não. O mercado tem esperança de que se encontre uma solução. Mas a gente sabe que essa solução, sem você tentar uma alternativa que é bastante complicada que é rever esse teto de gastos, você não tem saída. Não tem alternativa. Ou você tem um aumento de impostos ou você vai ter que rever, porque não tem de onde tirar o dinheiro. Essa possibilidade de tirar o desconto do Imposto de Renda, mexer com precatório, mexer com abono, todas essas tentativas de ver se há uma aceitação praticamente não existe. Tanto que a posição do governo é realmente cada vez mais postergar essa decisão para, lá na frente, tentar encontrar uma saída. Mas, na minha opinião, praticamente não existe.
Investnews: Mas o governo reforça que a ideia é financiar o programa sem estourar o teto de gastos.
Miguel Daoud: Eu sou favorável de você flexibilizar o teto para questões emergenciais. Vamos pensar o seguinte: qual é a saída até dezembro para isso? Nós não vamos ter uma fada mágica, que com a sua varinha vai resolver o problema. Nós temos um aumento do desemprego. Até dezembro, a gente deve chegar em torno de 17% de desemprego. Nós vamos entrar no próximo ano em janeiro com uma população desempregada, na informalidade, e com esses “invisíveis” que o governo falou. Então, não tem saída. Não tem como resolver isso dentro do Orçamento que toma 94%, com despesas obrigatórias. E nas discricionárias também tem um monte de coisa que não pode mexer. Então, a minha alternativa é diante disso.
Investnews: Como o mercado avaliou até agora as possíveis soluções apresentadas até agora, como levantar recursos do abono salarial, Fundeb, precatórios ou desconto do IR?
Miguel Daoud: O mercado sabe qual é a saída. O mercado não gosta que proponha uma alternativa. Porque a alternativa mesmo que o governo deveria colocar é o corte de gastos. Mas, até agora, não se disse quando vai cortar, onde vai cortar, de que forma vai cortar. Então, esse “vai e não vai” realmente cria uma perda de credibilidade.
Porque o que o mercado faz no presente tem a ver com expectativa. O que faz a expectativa é o gerenciamento da expectativa. E o gerenciamento das expectativas na questão fiscal está muito ruim. E isso acaba trazendo para o presente essa volatilidade.
Quando você fala “vou usar os precatórios”, o que está fazendo? Você sabe que vai dar o calote do calote. Isso é uma coisa que jamais juridicamente seria sustentável. Então, toda medida que, aos olhos da sociedade, não são factíveis, você gera instabilidade. Então, é mais fácil não falar nada.
Investnews: Além do desempenho do Ibovespa e da alta do dólar, quais outros efeitos já podemos notar desse ruído?
Miguel Daoud: Se você olhar as taxas futuras (de juros), vai ver que está subindo. E, quando você tem uma alta na curva de juros, você tem um impacto na taxa implícita de juros, que é a taxa que o governo usa para rolar sua dívida. Se você tem 1 ponto, 2 pontos na sua taxa de juros, imagina o custo que isso tem para a sua dívida.
Por isso, eu não sei por que o Paulo Guedes insiste nessa questão do teto de gastos. Não tem saída. “Ah, mas aí eu vou descontrolar a dívida”. Por um lado ou pelo outro, você já está descontrolando a dívida. Está pagando mais juros. Se você não tiver coerência naquilo que tenta administrar, fica difícil. Não é que eu ache que tenha que furar o teto. Não. Todos os países do mundo não estão preocupados com isso. Eles estão preocupados com “depois do que a gente vê o que faz”.
Então, o que falta? Exatamente o gerenciamento das expectativas. O que não pode é deixar essa incerteza. E tem uma coisa mais grave: esse mercado enseja a oportunidade de especulação. Se você olhar o mercado de derivativos da bolsa, você tem bilhões de dólares negociados por dia entre juros, câmbio, fica esse vai e vem. E isso gera oportunidade para especulação.
Investnews: Por que mesmo com essas incertezas não vemos movimentos bruscos da bolsa?
Miguel Daoud: O problema da bolsa é que o investidor não tem para onde ir. A bolsa nos últimos anos evoluiu muito com a queda da Selic. E os investidores que estão ali não têm muita alternativa. Sofre num dia, se alegra no outro dia.
Quando não se tem gerenciamento das expectativas adequado, acaba trazendo para o presente essa volatilidade.
Investnews: Quando a regra do teto de gastos foi apresentada pelo governo Temer, muitos analistas diziam que estávamos construindo uma casa com teto, mas sem paredes. Como você vê isso hoje?
Miguel Daoud: Exatamente. Você estabelece um teto sem sustentação, que são as reformas. O teto desaba. E outra coisa: se você for olhar a condição em que foi criado o teto, naquele momento foi uma tentativa que o Temer teve exatamente para gerenciar expectativa, porque estava muito ruim. A coisa melhorou, o Brasil começou a ter uma recuperação. Infelizmente a reforma da Previdência não saiu na ocasião. Mas, se tivesse saído a reforma da Previdência, se o Temer não tivesse tido os problemas que teve, hoje a história seria outra. E o que mudou na realidade da economia? Absolutamente nada. Só a expectativa que trouxe para o presente.
Investnews: Qual saída definitiva o mercado está esperando?
Miguel Daoud: A questão da dívida a longo prazo, ter um programa de corte de gastos, e ter implementadas as reformas. Agora, neste ano não tem reforma. O ano que vem, se fizer reforma fiscal, boa parte não vai poder implementar, só em 2022.
O entendimento político do governo eu acho que é correto. O Bolsonaro pelo menos faz isso corretamente, apesar de seus fiéis escudeiros não estarem gostando, não tinha o que fazer, não tinha outra saída a não ser essa tentativa de relacionamento entre os poderes – com o Congresso, o Supremo.
O Brasil precisa hoje é isso. Uma tentativa de entendimento. A coisa não é mais econômica. É mais ter, politicamente, uma tentativa de um pacto que permita o gerenciamento dessas expectativas que estão muito incertas. Você não consegue melhorar a arrecadação, o emprego. Mas só consegue fazer isso se houver o entendimento da sociedade como um todo de que você está no caminho certo.