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Economia

Shows, viagens e futebol: por que a inflação de serviços tira o sono dos bancos centrais

Índices podem não estar refletindo totalmente o quanto esses gastos pesam sobre o bolso do consumidor

Comprar um apartamento ou ir ao show da Lady Gaga em Las Vegas? Esse é o (bom) dilema que Enrico Fernandes, administrador de empresas por formação, precisa enfrentar este ano. E que ilustra muito bem a nova realidade de grande parte da população mundial: a troca de gastos com bens duráveis por entretenimento. Fenômeno que mexe com a dinâmica de preços e, possivelmente, não esteja sendo plenamente captado pelos índices de inflação.

Enrico tem 27 anos, não tem carro, mora sozinho – ou melhor, com dois gatos – em um apartamento alugado em Santos, litoral paulista. Seu esquema de trabalho, na área de tecnologia, é totalmente remoto. Com esse perfil, fica muito mais fácil, é claro, acomodar no orçamento  as viagens e os shows – no caso específico da Lady Gaga, o ingresso cobiçado por Enrico custa US$ 1.600.

Essa mudança no padrão de consumo trouxe um impacto tão relevante sobre a economia que gerou uma tese de investimento entre os gestores da Faria Lima, com direito a nome próprio: SME (Sports, Music and Entertainment). O que esses profissionais enxergam é que vale a pena alocar recursos em negócios que envolvam algum tipo de experiência, para usar a palavra do momento.

De certa forma, isso se explica pela experiência do confinamento e da crise sanitária provocada pela Covid, que mudou a forma como as pessoas passaram a administrar o tempo e o dinheiro.

Para Jackson Reis Takata, de 31 anos, ir aos jogos do Palmeiras é uma das atividades que estão no topo das prioridades. Engenheiro e sócio-torcedor do clube paulista, Jackson diz que o programa ficou mais caro depois da pandemia, especialmente quando o jogo é fora de São Paulo e é preciso arcar também com o custo do deslocamento.

“Mas o Palmeiras é uma das coisas que me conectam com meu pai. E a pandemia trouxe essa reflexão sobre onde a gente gasta o dinheiro. Hoje eu invisto mais em criar memórias do que em bens materiais”, diz.

Esse investimento, que engloba também shows internacionais e viagens pela América Latina, consome uma parte importante do seu orçamento.

A mudança na forma de gerir o orçamento familiar, no entanto, não é apenas filosófica. Ela está diretamente relacionada ao aumento da renda. É isso que permite que as pessoas troquem bens por serviços, que é a classificação técnica para essa categoria de gastos.

E esse comportamento não está restrito à classe média. Hoje, ela é observada também entre as famílias de renda mais baixa, como resultado de um período longo de mercado de trabalho aquecido no país.

André Braz, economista e coordenador adjunto do índice de preços ao consumidor da Fundação Getulio Vargas, explica que, hoje, as famílias brasileiras gastam, em média, 30% do que ganham com serviços, o que inclui mensalidade escolar, restaurantes e atividades de lazer, como cinema, show, teatro e passagem aérea. Isso é uma média: quanto maior a renda da família, mais espaço para gastos com lazer ou outros serviços.

Quem fornece essa informação é a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF). A cada cinco anos, o IBGE vai a campo para entender com o que famílias e indivíduos gastam. E que peso cada um desses itens deve ter no cálculo da inflação. Só que a atualização dessa sondagem, que leva 12 meses para ser feita,  está  atrasada: a última edição foi concluída em 2019. A coleta da nova pesquisa sequer começou. 

Para Braz, é provável que, de lá para cá, as pessoas estejam comprometendo uma fatia maior do seu orçamento com serviços.  “Com a taxa de desemprego abaixo de 8%, estamos assistindo a uma melhora da renda”, diz. O problema disso é: se as cestas de inflação estão defasadas, os índices podem não estar refletindo totalmente o quanto esses gastos pesam sobre o bolso do consumidor. E a inflação pode estar subestimada.

É por isso que os bancos centrais, apesar da inflação de bens industrializados estar em queda, não estão super confortáveis em relaxar a política monetária”, afirma Solange Srour, diretora de macroeconomia para o Brasil no UBS Global Wealth Management. Nos Estados Unidos, os últimos dados de inflação já mostraram uma nova alta dos preços de serviços, observa.

No Brasil, o Banco Central já indicou que está preocupado com esse fenômeno que, segundo Roberto Campos Neto, presidente do BC, é mundial. E que está relacionado com o aumento da renda. “O mercado de trabalho tem sido uma grande surpresa, não só no Brasil – é um fenômeno que vem ocorrendo em outros países, junto com rendimentos e massa salarial”, afirmou Campos Neto na última segunda-feira (27), em um encontro com empresários promovido pelo Lide, em São Paulo.

A questão, explica Solange, é que a política monetária tem muito mais dificuldade para combater essa inflação. Os preços dos serviços, diz, têm um impacto direto sobre a demanda e a atividade e, portanto, ajudam a alimentar a inflação. “Os serviços não sofrem com competição externa. Por isso não se ajustam tão rapidamente”.

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