“Ok. E se eu subir sua tarifa de importação de 10% para 99%?”
“Isso poderia quebrar meu negócio.”
“Você devia ter pensado nisso antes de fabricar na China.”
O diálogo acima nunca aconteceu de verdade — mas está mais próximo da realidade do que parece. No TikTok, a empreendedora americana Haley Pavone, fundadora da Passion Footwear, encenou esse papo surreal para explicar como a nova onda de tarifas promovidas por Donald Trump são uma grande ameaça a sua empresa.
A companhia de Haley criou um salto alto conversível: um mesmo par pode virar salto agulha, plataforma, tamanco ou sapatilha, basta encaixar na base. A Passion emprega 12 pessoas nos EUA e fabrica na China por necessidade técnica.
Dizendo de outra forma: não há nos Estados Unidos uma cadeia produtiva capaz de atender às necessidades específicas da empresa de Haley.
Aliás, não só nos EUA, em nenhum outro lugar do mundo — e agora, com as tarifas trumpistas sobre a China saltando para 125%, Haley pode ver seu negócio desmoronar, e 12 cidadãos americanos perderão seus empregos. Multiplique isso pelas milhões de Haleys que existem por lá, e podemos ter uma crise séria pela frente.
No Brasil não é diferente. Pense com quantas lojas que vendem capinhas e acessórios para celular você cruzou no último mês. Praticamente tudo ali dentro vem da China: não fosse a relação comercial entre Brasil e a segunda maior economia do mundo – e a capacidade produtiva única dos chineses – os muitos milhares de empregos gerados por essas lojinhas não existiriam.
Tudo isso simboliza uma questão maior: o que significa, em 2025, tentar reverter por decreto 50 anos de globalização?
Um novo tarifaço, um velho alvo
Nesta quarta-feira (9), o presidente Donald Trump anunciou a tarifa mais agressiva de sua segunda gestão: 125% sobre todos os produtos importados da China. Ao mesmo tempo, prometeu uma trégua de 90 dias para outros países, padronizando a tarifa geral em 10%. É o tipo de movimento que parece mirar em tudo, mas atinge de forma cirúrgica a espinha dorsal do comércio — e deixa claro que o adversário, mais uma vez, é a China.
Trump diz que quer trazer empregos de volta aos Estados Unidos. Mas o efeito imediato é outro: produtos mais caros, cadeias produtivas em choque e empresários como Haley sem saber como continuar produzindo.
O problema é estrutural. Trazer uma fábrica de volta para os EUA não significa criar os empregos que ela gerava na China. Primeiro, porque muitos processos hoje são automatizados. Segundo, porque os custos trabalhistas e logísticos nos EUA são muito mais altos. E terceiro, porque falta gente nos Estados Unidos disposta a fazer esse tipo de trabalho.
Nos frigoríficos, por exemplo, mais de 40% dos trabalhadores são imigrantes. Boa parte dos americanos simplesmente não aceita os turnos, os riscos e o salário. O mesmo vale para colheitas sazonais e funções industriais repetitivas. Ou seja: as políticas antimigratórias de Trump dificultam a própria reindustrialização que ele promete.
Quase tudo mais caro
Com as novas tarifas, o custo da vida americana tende a subir. Celulares, brinquedos, roupas, eletrônicos, bicicletas, móveis — boa parte desses itens é fabricada na China ou depende de peças e insumos chineses.
Lembra da inscrição na traseira dos iPhones? Em inglês, está escrito “projetado pela Apple na Califórnia, montado na China” – um lembrete de que a globalização das últimas décadas não só criou empregos fabris na China, mas também fez surgir em solo americano a empresa mais valiosa da história.
A resposta da China
A China não ficou parada. Elevou as tarifas médias sobre produtos dos EUA para 84%, lançou investigações antitruste contra empresas como a DuPont, ampliou sua lista de companhias americanas “não confiáveis” (sujeitas a sanções) e restringiu exportações de insumos críticos para a indústria de defesa e de chips.
É um arsenal montado com frieza: Pequim quer maximizar o custo político para Washington — sem prejudicar demais sua própria economia.
O curioso é que, mesmo com todo esse risco, 70% das empresas americanas ainda querem manter ou aumentar seus laços com a China, segundo uma pesquisa da Fundação da Câmara de Comércio dos EUA. A razão é óbvia: produzir na China ainda é mais barato, mais rápido e mais eficiente. E muitas empresas não conseguem fazer isso em nenhum outro lugar com a mesma qualidade e escala. Aquelas que seguirem operando terão de cobrar mais caro.
Especialistas viram na inflação relativamente alta dos EUA sob Joe Biden um fator que ajudou Donald Trump a vencer a eleição em 2024. Agora, a política comercial de Trump tem tudo para corroer ainda mais rapidamente o poder de compra dos americanos.
Um mundo menos americano?
Enquanto os EUA impõem tarifas, outros países se aproximam. China, Japão e Coreia do Sul retomaram uma cúpula trilateral que estava suspensa desde 2019. O objetivo: reduzir a dependência da economia americana e acelerar um acordo de comércio regional.
Essa reorganização global mostra que o isolacionismo americano pode estar incentivando a integração entre seus concorrentes. E isso teria reflexos duradouros no equilíbrio de poder econômico mundial.
O Brasil também está nesse jogo. E por um motivo especial. Esqueça soja e minério de ferro: 78% do que exportamos para eles são produtos industrializados.
Entram aí produtos de altíssimo valor agregado – caso de aviões e peças de aeronaves que a Embraer vende para os americanos. Elas eram isentas de imposto de importação.
Agora, ficam sujeitas à tarifa básica de 10% que Trump impôs a todos os países. Ou seja, perde terreno em relação às suas concorrentes americanas, e talvez precise buscar mercado em outros países para repor o que perdeu por lá.
Salto alto
No final do vídeo, Haley Pavone diz, com um misto de ironia e desânimo: “Já sobrevivemos à pandemia, ao colapso da cadeia logística, à última guerra comercial… posso tentar mais uma pivotada.”
É o jeito. Como resumiu o CEO da gestora Citadel, Ken Griffin: “Mesmo que o sonho de empregos voltando para os EUA se concretize, isso para daqui 20 anos. Não são 20 semanas.”
A guerra comercial de Trump pode até parecer uma jogada estratégica para seus seguidores mais dedicados — mas, por enquanto, tem se mostrado mais como um jogo de azar. E, como sempre, quem paga a conta não são os governos. São os consumidores. E as Haleys do mundo.