Esse tipo de operação é o coração dos chamados fundos de investimento em direitos creditórios (FIDCs), que transformam essas dívidas em oportunidade de lucro para investidores. Esses produtos vêm conquistando espaço na indústria e começam a chegar ao investidor comum. A dúvida é: o varejo está pronto para entender o risco do que está comprando?
Precisamos falar de FIDCs por um motivo simples: eles estão tomando espaço de outros tipos de produtos no mercado. Segundo dados da Anbima, a entidade reguladora do mercado de capitais, esses fundos já estão batendo de frente com os veículos tradicionais em termos de participação na indústria como um todo e também no bolso do investidor.
Nos últimos 12 meses, a captação de recursos entre todos os fundos do mercado foi liderada pelos FIDCs: foram R$ 81,2 bilhões direcionados para esses produtos. É mais do que o dinheiro movimentado em outras categorias, desde os gigantescos fundos de renda fixa tradicionais, que continuam recebendo recursos dos investidores, até os fundos de ações e multimercados, que enfrentam saídas fortes há vários meses.
O patrimônio dos FIDCs é de R$ 732 bilhões atualmente, o equivalente a 7% da indústria de fundos. Ainda está muito atrás dos fundos de renda fixa, com R$ 4,3 trilhões, mas já à frente dos fundos de ações, que somam R$ 642 bilhões. É um crescimento importante até sobre os multimercados, que hoje têm R$ 1,6 trilhão de patrimônio.
O que exatamente um FIDC faz?
Quase todo investimento é, no fundo, uma forma de emprestar dinheiro. Você pode emprestar para o governo, comprando títulos públicos, para as empresas tradicionais, comprando debêntures, ou para os bancos, negociando CDBs. E você pode investir em um FIDC, que negocia um direito de crédito, o recebível. Por serem operações montadas caso a caso para as empresas, é comum chamarem os FIDCs de dívida estruturada.
Vamos voltar ao nosso exemplo da faculdade. Sempre haverá alguma inadimplência, mas o grosso da receita com mensalidades é praticamente garantido de se receber. Daí o nome, recebível.
Depois de comprar os recebíveis, a gestora coloca o FIDC à disposição para os investidores. E aí, quando você aplica seus recursos em um fundo desse tipo, o seu dinheiro é usado para financiar a empresa na outra ponta.
É uma troca de fôlego: quem precisa de caixa recebe antes e quem tem recursos investidos participa dos lucros dessa antecipação. Com isso, a empresa ganha o que precisa na hora e o investidor passa a lucrar com os juros e retornos embutidos na operação.
Esses fundos não são novos. Eles existem desde o início dos anos 2000. Acontece que, como são instrumentos complexos, os órgãos reguladores nunca permitiram que os investidores de varejo acessassem esses produtos – até, 2023, quando a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) mudou as regras. O entendimento de que esses produtos hoje podem ser oferecidos ao investidor em geral tem a ver com as cotas dos FIDCs.
Vamos entender.
A estrutura do FIDC
Quem monta o FIDC que vai negociar os recebíveis de uma empresa é uma gestora. Quando o produto é colocado de pé, ele é dividido em diferentes tipos de cotas, como se fosse uma pirâmide. É uma estrutura que define quem recebe primeiro e quem absorve as perdas primeiro caso algo dê errado.
De novo, vamos pensar na faculdade. Cada mês, o dinheiro pago pelos alunos vai entrando e sendo repassado aos investidores seguindo uma ordem de prioridade. Se parte dos alunos não pagar a mensalidade, o primeiro impacto recai sobre as cotas subordinadas: o investidor que comprou essas cotas perde rendimento ou até parte do capital.
As cotas seniores, por outro lado, continuam recebendo normalmente, até que o nível de inadimplência seja tão alto que esgote toda a proteção oferecida pelas subordinadas. Só então as cotas seniores começarão a sentir os efeitos da inadimplência. É por isso que a CVM permitiu o acesso apenas dessas cotas para o público em geral. Em troca dessa segurança, o rendimento do investidor da sênior é um pouco menor.
A porta para o varejo se abriu, mas a passagem ainda é pequena porque as mudanças são novas. Os investidores que mais têm acesso ao FIDC são aqueles de alta renda e menos de 5% do universo desses fundos tem mais de 500 cotistas, segundo gestores. Mas as coisas devem crescer cada vez mais daqui para frente com a estrutura de fundos de fundos, os FOFs, que é quando um veículo compra cotas de outro – no caso, um fundo que compra FIDCs.
Quem defende a oferta de FIDCs para o varejo vê exatamente nessa estrutura a vantagem para o investidor. Isso porque muitas empresas podem fazer essa negociação de recebíveis e vários FIDCs serem montados. A gestora pode, então, criar um cesta com esses fundos, garantindo uma pulverização grande.
Ricardo Binelli, sócio e diretor da Solis Investimentos, a primeira gestora a estruturar um fundo de fundos de FIDCs para o varejo, destaca que esse modelo reduz o risco de concentração, impedindo que um problema no fluxo de pagamentos de uma companhia contamine o investimento como um todo e prejudique o rendimento do investidor na outra ponta.
Outro risco particularmente grande no mercado de FIDCs é o ambiente de juros altos. Taxas elevadas na economia prejudicam todo mundo, mas as companhias menores ou que buscam crédito de forma alternativa, fora das linhas bancárias tradicionais, podem sair ainda mais esmagadas e sem condições de honrar seus pagamentos. Hoje, são mais de 8 milhões de CNPJs negativados até julho, segundo dados da Serasa.
Mas isso não contaminou os FIDCs de forma generalizada, segundo Binelli. As cotas subordinadas, justamente as que sofreriam mais com um cenário de pressão sobre as companhias, estão sadias, na visão do executivo.
E os riscos?
As cotas seniores protegem mais os investidores, é verdade. Mas, mesmo assim, um FIDC pode ter tudo dentro – inclusive coisas muito mais arriscadas. É onde está o grande problema.
Pense no caso dos precatórios. São dívidas do governo reconhecidas pela Justiça, valores que o governo federal, de estados ou de municípios estão devendo para pessoas físicas ou jurídicas. Quem tem um precatório tem um “crédito” contra o governo. Por isso, esses títulos passaram a ser usados em algumas estruturas de FIDCs: o fundo compra precatórios com desconto, apostando que vai receber o valor cheio mais adiante.
Em teoria, gera um bom retorno. Em teoria. O governo pode demorar anos para pagar ou simplesmente não arcar com a dívida, porque não tem dinheiro.
E aí tem quem veja o mercado brasileiro como despreparado para esse tipo de investimento por enquanto.
José Eduardo Barbosa, sócio e diretor da Multiplica Crédito & Investimento, observa que a estrutura de cotas dos FIDCs, em que apenas as seniores podem ser ofertadas ao público geral, ajuda a “blindar” esse público. Mesmo assim, são produtos que exigem um nível de acompanhamento muito maior do que os tradicionais. A Multiplica tem mais de 50 FIDCs. Nenhum é para o investidor comum. A oferta é feita apenas para investidores profissionais ou qualificados (com mais de R$ 1 milhão investidos).
Pelo seu maior risco, os FIDCs prometem retornos acima do CDI, a referência do mercado. Não é raro encontrar produtos que pagam um prêmio, um dinheiro a mais, de 4% ao ano nesses produtos – o que daria 126% do CDI, por exemplo. Mas tudo tem seu preço: esses fundos têm risco de crédito maior, dependem da qualidade dos recebíveis – uma estrutura com a qual o investidor sequer está familiarizado – e não oferecem a simplicidade de uma aplicação tradicional de renda fixa.