Por conta disso, chama a atenção uma iniciativa recente da Stellantis. A dona da Fiat e da Jeep (entre outras 14 marcas) estreou no mercado de peças usadas, que de alguma forma concorrem com as novas.
Antes de entrar nesse detalhe, vamos ao fato. A Stellantis inaugurou neste mês uma planta bem diferente em Osasco (SP). Trata-se de uma “linha de desmontagem”. Se numa fábrica normal os carros vão recebendo peças quando chega sua vez na fila, aqui acontece o contrário: os operários despem os carros.

No caso, automóveis da Stellantis que chegaram ao fim da vida útil – ou que passaram por algum acidente irreversível. A ideia do Centro de Desmontagem Veicular, como a empresa chama a estrutura, é aproveitar as peças que tiverem sobrevivido em bom estado, recondicionar e por no mercado, a preços mais em conta.
Mas isso não canibaliza justamente as vendas de peças novas? “Não. As peças não-originais respondem por 80% do mercado. Nossa briga não é do lado de cá da cerca. É do lado de lá”, diz Paulo Solti, vice-presidente de Peças e Serviços da Stellantis para a América do Sul.
“Peças não-originais” são peças novas, produzidas por fabricantes independentes. Trata-se de um mercado que fatura mais de R$ 140 bilhões por ano. As montadoras concorrem aí com as peças novas originais, de concessionária.
Mas esse é praticamente um mercado de nicho. O público-padrão aí é a pessoa que tem um carro de zero a três anos. Nesse recorte, 75% dos clientes frequentam as concessionárias para cuidar da saúde do carro. Mas daí em diante essa parcela vai minguando. Quando chega ao segundo, terceiro dono, a maior parte dos carros já não sabe mais o que é parar numa oficina de concessionária.
Mas tem outro jeito de concorrer nesse mercado: com peças originais usadas. Trata-se de um mercado pequeno perto do de peças novas: fatura R$ 2 bilhões. Mas existe, e a Stellantis está se movimentando para pegar um pedaço dele.
Não é a primeira vez. O centro de desmontagem de Osasco é o primeiro na América do Sul desse tipo, operado por uma montadora. Mas é o segundo da Stellantis. Ela inaugurou um igual em Turim, na Itália, há dois anos. BMW, Mercedes, Renault, Toyota e Nissan também têm estruturas nessa linha.
Arquitetura da desconstrução
Ventoinha, cabeçote, coletor, turbina.
Radiador, condensador, intercooler, bobina.
Câmbio, atuador, bomba d’água, homocinética.
Alternador, pára-choque, sensor, parte elétrica.
Dá pra escrever um livro de poesia concreta com as peças reutilizáveis de um carro. São uns 400 itens. Mas a arte de transformar desmontagem em negócio tem sutilezas. Algumas peças sempre vão ter mais mercado do que outras.

Parte da “matéria prima” aí são veículos com diagnóstico de perda total que as seguradoras colocam em leilão. O primeiro passo é comprar esse material de forma eficiente.
Por exemplo: a porta do motorista desgasta dez vezes mais do que as portas traseiras, já que é acionada bem mais ao longo da vida. Logo, sempre vai haver mais demanda por portas dianteiras esquerdas no mercado de manutenção. Não vale a pena, então, comprar carro batido do lado esquerdo, veja só.
Outro requisito fundamental para o negócio é selecionar e precificar as peças de forma criteriosa. Cada uma vai apresentar seu nível de desgaste, afinal. Para separar o joio do trigo, a Stellantis usa uma escala de 1 a 9. Se a peça receber uma nota de 1 a 3, vai para descarte. Acima disso, passa por uma recauchutagem e vai para o mercado, a preços de acordo com a condição da peça.
As vendas acontecem no próprio centro de desmontagem, que tem o nome fantasia de Circular Autopeças. Eles também abriram uma loja online no Mercado Livre, com essa mesma marca.
Eterno retorno
A vida após a morte no universo dos carros vai bem além da parte de reaproveitar as peças. Aço, ferro, alumínio, cobre… Três quartos do peso de um carro estão na forma de metais recicláveis.
Nos EUA, 20% da produção anual de aço vem só de carros triturados. São 14 milhões de toneladas – dá quase metade do que sai das siderúrgicas brasileiras, para dar uma ideia melhor.
Pelo menos 95% dos veículos nos Estados Unidos acabam reciclados. Na Europa, quase isso: 90%. No Japão, praticamente 100%. Brasil? 1,5%. Mais sobre isso adiante.

Na desmontadora da Stellantis, cada tipo de metal é vendido para um parceiro diferente. A chapa das latarias, por exemplo, vai para a ArcelorMittal.
Até o fluido do óleo de motor, de câmbio, de freio pode renascer. O segredo aí é drenar tudo do carro e mandar para uma refinaria. Óleo não “gasta” com o tempo, só fica sujo. Quando refinam de novo, ele fica igual óleo virgem.
A Stellantis europeia mesmo lançou lá fora uma linha de lubrificantes feitos só com óleo “re-refinado”, em parceria com a Total Energies. A vantagem aí não é financeira, já que o processo custa caro. Mas existe um ganho de imagem óbvio.
O ponto é que carros são fartos em artigos recicláveis. E o mundo desenvolvido aproveita bem essa característica – diferentemente do Brasil, com seu diminuto 1,5%.

Isso acontece porque essa tarefa fica por conta de pequenos empreendimentos. São 7,3 mil desmanches – contando aí só os que operam na legalidade; os criminosos, que atuam como receptadores de carros roubados, são outra coisa: aí não é case de negócio; é caso de polícia.
Bom, olhando para os desmanches credenciados pelo Detran, vemos que a cadência de produção é baixa. Eles reciclam um ou dois carros por mês. O da Stellantis tem capacidade para 27 carros por dia em três turnos – 8,4 mil carros por ano trabalhando de segunda a sábado. Trata-se de industrializar um processo artesanal.
Ainda assim é uma gota no oceano da nossa frota de 50 milhões de carros, com 2,5 milhões de modelos novos saindo das montadoras a cada ano. E rigorosamente nenhum deles vai durar para sempre. No rol de negócios com potencial de crescimento no Brasil, lidar com essa vastidão de matéria prima para reciclagem certamente é um deles.