Cartagena (COL)* – A invasão chinesa na indústria automotiva vai além dos carros elétricos e dos impactos nas montadoras tradicionais. Por meio das carrocerias e autopeças vindas da Ásia, a indústria siderúrgica tem sofrido um efeito colateral: as importações de aço da China indiretamente.

No período de janeiro a setembro, as exportações indiretas de aço da China, ou seja, aquelas em que o metal está presente em produtos industrializados, cresceram 43% na América Latina na comparação a igual período de 2023, segundo dados da consultoria CRU. Quase um quarto desse volume chega ligado ao setor automotivo, que se tornou o principal vetor de expansão industrial chinesa fora da Ásia.

Executivos das principais montadoras instaladas na região afirmam que a competição com o país asiático deixou de ser apenas comercial, citando vantagens como crédito subsidiado, excesso de capacidade e apoio estatal à indústria chinesa.

“A China oferece crédito a [uma taxa de] 4% [ao ano] para suas indústrias. Aqui, é 15%. Essa diferença explica tudo”, afirmou Martin Galdeano, CEO da Ford na América do Sul, durante o congresso anual da Alacero, a associação que representa as siderúrgicas instaladas na América Latina.

Para o setor automotivo, historicamente um dos pilares da industrialização latino-americana, o cenário começa a se parecer com o da siderurgia: produtos chineses mais baratos, com forte apoio estatal, substituindo a produção local em todos os elos da cadeia — do aço às carrocerias.

As montadoras estimam que 10% do mercado brasileiro já é made in China. Alexander Seitz, chairman da Volkswagen para a América do Sul, prevê um crescimento ainda maior no Brasil: “Se nada mudar, a China pode chegar a 25% do mercado brasileiro em poucos anos.”

Jorge Oliveira, CEO da ArcelorMittal Brasil e presidente da Alacero, usou o caso da nova fábrica da BYD em Camaçari (BA) para ilustrar a mudança estrutural no comércio do aço. “Eles trouxeram tudo da China — o projeto, o aço para erguer os galpões e até as equipes de montagem”, disse.

O empreendimento, que ocupa o antigo complexo da Ford, foi construído sem usar um quilo sequer de aço brasileiro, um exemplo, segundo ele, de como o país “importa valor agregado” ao abrir mão de sua cadeia produtiva.

Industrializados

De acordo com o consultor John Lichtenstein, da World Steel Dynamics, a China passou a exportar cada vez mais aço de forma indireta — embutido em produtos acabados, como automóveis e autopeças, e não em chapas ou bobinas. No setor automotivo, essa fatia cresceu de 9% para 19% em uma década e deve alcançar 25% nos próximos anos.

Na América Latina, essa tendência é ainda mais evidente: quase metade do aço indireto importado pela região já tem origem chinesa, proporção que sobe para 65% sem o México, onde as regras de origem são mais rigorosas.

Esses números ajudam a explicar por que a pressão sobre a indústria local cresceu mesmo com os países da região erguendo barreiras comerciais. “A China não está apenas vendendo aço, mas exportando valor agregado”, diz Lichtenstein. “Cada carro ou peça fabricada lá carrega toneladas de aço subsidiado, e isso distorce o comércio global.”

A leitura é compartilhada por Jorge Guajardo, um ex-embaixador do México na China e analista de política comercial. Ele afirma que o país asiático transformou o excesso de capacidade industrial em instrumento de política externa. “A China usa o excedente como ferramenta de influência. Vende abaixo do custo até eliminar concorrentes e, depois, o mercado se torna dependente”, disse.

Para Guajardo, mesmo tarifas de 25% no Brasil ou 50% em outros países já se mostram insuficientes. “O aço chinês entra de forma indireta, disfarçado de carro, peça ou equipamento. É a segunda fase da mesma história”, reforça.

Desindustrialização 2.0

O avanço da China sobre a cadeia automotiva marca o início de uma segunda fase da desindustrialização latino-americana, como o InvestNews já mostrou. Se a primeira veio com as chapas e bobinas de aço baratas, esta agora chega sobre quatro rodas.

Executivos alertam que, sem uma reação coordenada, a região corre o risco de repetir o padrão já consolidado na indústria de base: exportar minério e importar produtos acabados, trocando complexidade produtiva por dependência tecnológica.

Bruce Mac Master, presidente da ANDI, que representa a indústria colombiana, diz que a América Latina “não define rumos, apenas reage” — um retrato de países que, segundo ele, seguem abrindo mercados sem uma política industrial capaz de proteger suas cadeias produtivas.

Entre as propostas discutidas por empresários e executivos do setor estão a criação de mecanismos regionais de defesa comercial, a agilização dos processos antidumping e regras de origem mais rigorosas, para coibir a triangulação de peças asiáticas via países intermediários. Como resumiu Mac Master: “não há política industrial possível sem coordenação política.”

O jornalista viajou a convite da Alacero.