Era uma casa muito engraçada. A lata de lixo produzia o gás do fogão; o fogão cozinhava o jantar. E as sobras geravam mais gás, num eterno retorno.

Parece só um exercício de imaginação, mas não é. 15% do gás encanado do Ceará é produzido a partir de um aterro sanitário na região metropolitana de Fortaleza.  

Quem faz a mágica de transformar lixo em energia é o biometano. Trata-se de metano puro, a mesma molécula do gás natural, que é um combustível fóssil. A diferença é que, em vez de tirar o gás debaixo da terra, você extrai o gás a partir da decomposição de restos orgânicos. Daí o “bio” do nome. 

Quando o aterro tem a estrutura necessária para fazer essa extração, ele se converte também numa pequena usina de gás natural – só que renovável, pois  o fluxo de lixo é como o tempo: não para. Um exemplo bem acabado de economia circular.

No Ceará, a produção de biometano fica por conta da GNR Fortaleza, uma companhia que desde 2018 injeta sua produção na rede da estatal Cegás, que faz a distribuição nos encanamentos cearenses.

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Ou seja: o biometano não é exatamente uma novidade. Mas a adoção dele ainda rasteja. Hoje, 11 usinas produzem o gás a partir de dejetos. Juntas, elas tiram 840 mil m³/dia. É pouco. Dá 1,4% da demanda de gás natural do ano passado, que foi de 61 milhões de m³/dia.

Os clientes do biometano são os mesmos do gás natural: termelétricas, a indústria que precisa de calor (como a de alimentos e bebidas, que faz pasteurização em escala estelar) e as residências com gás encanado.

Uma parte da matéria-prima do biometano, vale notar, vem do agro – são sobras da produção de cana (a “vinhaça”) e da criação de porcos. No interior de São Paulo, duas distribuidoras misturam uma fração de biometano extraído de vinhaça ao gás fóssil que mandam para indústrias e residências: a Necta (em Presidente Prudente) e a Comgás (em Piracicaba).

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Mas o grosso, 80%, vem mesmo do lixo comum depositado nos aterros. É o que os técnicos do setor chamam de RSUs (resíduos sólidos urbanos).

E o potencial é razoável. Como os aterros ficam próximos das cidades, também estão perto dos clientes finais. Já o gás natural fóssil é um pesadelo logístico – ele vem de plataformas do pré-sal, a centenas de quilômetros da costa; isso quando não chega importado da Bolívia, via gasoduto, ou dos Estados Unidos, embarcado em navios na forma de GNL (gás natural liquefeito).  

Mesmo assim, a produção de biometano ainda é pequena. Mas deve passar por um boom a partir deste ano. Por conta de um incentivo regulatório. Vamos a ele. 

Uma cota obrigatória

Estamos falando da “Lei do Combustível do Futuro” (nº 14.993/2024), sancionada em outubro do ano passado. Ela determina o seguinte: a partir de janeiro de 2026, todos os distribuidores terão de incluir pelo menos 1% de biometano misturado ao gás fóssil que vendem. Em 2027, 2%, em 2028, 3%… Até chegar a 10% em 2035.

A ideia é diminuir as emissões de gases-estufa. O gás que os aterros emitem não é metano puro, mas uma versão misturada com dióxido de carbono, chamada biogás. A fabricação de biometano, então, consiste em pegar o biogás e separar dele o dióxido de carbono. 

O biogás acabaria na atmosfera de um jeito ou de outro. Mas se você converte ele em metano, a demanda pela versão fóssil do gás diminui. Você desenterra menos gás fóssil. E a conta geral de gases-estufa diminui.    

Faz diferença para a atmosfera, e para o ambiente de negócios também. A Comgás, por exemplo, distribui 14 milhões de m³/dia. 1% disso dá 142 mil m³/d. 

Já é o dobro do que a empresa distribui hoje em biometano: 71 mil m³/d, naquele projeto de Piracicaba que injeta biometano de vinhaça no sistema.

Só que a Comgás já tem um acordo para alcançar sua cota de 2026, com sobras. É um com a Orizon, uma companhia que opera 17 aterros sanitários em 12 estados, e é responsável pelo tratamento de 11% do lixo coletado no país (e 20% daquilo que é destinado para aterros, em vez de lixões).

Usina de biometano anexa a um dos aterros da Orizon, em Paulínia (SP)

Duas novas usinas

Hoje, a Orizon produz 100 mil m³/d de biometano, a partir de um de seus aterros, o de Paulínia (SP). O gás vai todo para uma termelétrica da cidade. 

Agora eles estão terminando uma nova usina de biometano lá, capaz de fabricar 210 mil m³/d e que deve entrar em operação no segundo semestre. Ela custou R$ 450 milhões e foi feita em parceria com a Edge, do grupo Cosan. A Edge é uma trader de energia – faz a intermediação entre produtores e distribuidoras. 

Nesse caso, a ligação é entre a Orizon e a Comgás, que também faz parte da Cosan. A distribuidora vai injetar o biometano na rede que supre a região de Campinas.

E essa abrangência deve aumentar. A Comgás lançou em abril uma “chamada pública” em busca de mais fornecedores, para garantir o cumprimento de sua cota para os próximos anos. É basicamente um anúncio de “compro biometano, quem quer vender?”. Aí a distribuidora analisa as melhores propostas.  

A Orizon também tem mais planos. Ainda em 2025 estreia mais uma planta de biometano, desta vez em Jaboatão dos Guararapes (PE). Essa terá capacidade para 110 mil m³/d e vai alimentar a região metropolitana do Recife.

Com as duas novas usinas em operação, a produção de biometano da Orizon vai saltar de 100 m³/d para 420 mil m³/d. Mas ainda é pouco perto do que dá para fazer.

“A gente recebe 9 bilhões de toneladas de lixo por ano. Isso significa que eu poderia produzir 1,1 milhão de metros cúbicos de biometano por dia”, diz Milton Pilão, CEO da Orizon.

Milton Pilão, CEO da Orizon

Com a demanda alimentada pela lei nova, a ideia é seguir instalando usinas de biometano nos aterros nos próximos anos, até chegar aos 1,1 milhão de m³/d.

Somando todos os aterros do país, são 43 toneladas de lixo por ano. Caso todos passem a produzir biometano, então, teríamos 4,8 milhões de m³/d. 

Por outro lado, isso deixa claro que o biometano feito de lixo não tem como suprir toda a demanda por gás natural. Para isso, seria necessário ampliar a produção que vem da vinhaça, dos restos de cana.

O potencial para valer

Colocando os resíduos do agro na conta, o potencial é absurdo: 120 milhões de m³/d, o bastante para tornar o país um exportador de biometano.

Mas aí você precisaria combinar com os russos. O biogás da vinhaça já serve para mover pequenas termelétricas das fazendas, adaptadas para operar com ele. Nem sempre faria sentido abrir mão desse combustível barato e produzir biometano para o mercado de gás natural. Menos ainda nas fazendas que estão longe do grid de gás canalizado. Elas não teriam para quem vender. 

Mas, mesmo que a produção não chegue 120 milhões de m³/d, é factível que ela cresça o bastante para substituir as importações de gás natural. Dos 60 milhões de m³/d em gás fóssil que foram distribuídos em 2024, 13 milhões vieram da Bolívia e 5,1 milhões dos Estados Unidos, na forma de GNL. 

Só o potencial do lixo urbano já cobre a cota do GNL. E um crescimento robusto na fração de biometano que vem do agro poderia substituir um dia a parte que chega via gasoduto Brasil-Bolívia.

Nada disso vai acontecer da noite para o dia, porque o biometano tem um problema: o preço.  

O gás fóssil custa entre US$ 10 e US$ 12 o BTU. O biometano, entre US$ 14 e US$ 15, de acordo com o Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE). Em tempo: “BTU” é uma unidade de medida de calor; em metano, dá o equivalente a 27  metros cúbicos.   

Até agora, antes da nova regulamentação, o biometano só interessava para clientes industriais e distribuidoras que têm metas de descarbonização, e estão a fim de pagar um prêmio por isso. Com a lei que determina porcentagens mínimas, o mercado cresce.

Ruim para os clientes, que terão de pagar a diferença? Num primeiro momento, sim, já que não existe imposição governamental grátis. Por outro lado, o crescimento do mercado cria escala, e o preço tende a baixar. Pelos cálculos da CBIE, para algo entre US$ 8 e US$ 9 por milhão de BTUs – mais em conta que preço atual do gás fóssil, portanto.

E tudo sem perder sua maior vantagem. Enquanto o gás natural passa pelas sazonalidades da geopolítica, com eventuais gargalos na oferta internacional e o preço atrelado ao do barril de petróleo, o biometano tem um fluxo bem mais previsível, como resume Milton Pilão, da Orizon: “O lixo, afinal, é produzido 24 horas por dia, 365 dias por ano”.