“Diante de qualquer sinal de abertura de mercado ou inovação, surgem as ameaças de demissões em massa, fechamento de fábricas e o fim do mundo como conhecemos”, diz o texto da BYD. Em entrevista à Folha, Alexandre Baldy, vice-presidente da chinesa, foi ainda mais direto: “as montadoras fazem chantagem com o governo”.
A provocação marca um novo estágio na disputa por protagonismo no setor automotivo brasileiro — uma disputa que vai muito além das tarifas ou das fábricas, e envolve geopolítica, reindustrialização e o futuro da mobilidade global.
Atenciosamente,
A carta que motivou a reação da BYD foi assinada por representantes de quatro das maiores montadoras em operação no Brasil: Volkswagen, Stellantis, GM e Toyota. No documento enviado ao presidente Lula, as empresas expressam “preocupações quanto ao futuro da indústria automotiva brasileira” com a possível concessão de isenção tarifária à BYD para importação de veículos em regime SKD ou CKD. Na visão das signatárias, essa medida poderia desestruturar a cadeia de suprimentos local, inviabilizar a produção nacional e gerar demissões em larga escala.
Segundo as montadoras, a entrada facilitada de veículos elétricos chineses montados parcialmente fora do país poderia gerar um descompasso competitivo — especialmente num momento em que as empresas têm anunciado pesados investimentos em novas tecnologias e modernização industrial. Nos últimos anos, essas empresas anunciaram mais de R$ 100 bilhões em aportes até 2030 – por ora, são promessas.
Mas os termos do documento soaram como uma tentativa de pressão política. A BYD, que assumiu a antiga fábrica da Ford em Camaçari (BA), afirma estar apenas cumprindo os termos contratuais do seu acordo com o governo baiano — que já previa o uso temporário de SKD e CKD antes da nacionalização completa dos componentes.
Para Baldy, a reação das montadoras tradicionais escancara o incômodo de empresas acostumadas à pouca concorrência. “É uma gritaria dos barões estrangeiros que sempre entenderam o mercado brasileiro como uma propriedade de cada uma dessas companhias travestida em uma associação”, disse em referência à Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, a Anfavea.
Na carta, a BYD compara as reclamações e ameaças das montadoras tradicionais ao pavor dos dinossauros que veem o meteoro se aproximando – claro, a BYD seria o meteoro da metáfora.
A BYD argumenta que sua estratégia não é diferente da adotada por outras montadoras no passado — inclusive por algumas das que hoje a criticam. A importação em CKD – “completely knocked down” em inglês, ou seja, completamente desmontado – já foi usada amplamente como porta de entrada no país e, segundo a empresa, a instalação fabril na Bahia é apenas o primeiro passo de um plano mais amplo de industrialização e exportação a partir do Brasil para toda a América Latina.
Se por um lado as concorrentes acusam dumping – simplificadamente, seria vender no exterior por um preço artificialmente baixo para eliminar concorrentes – e deslealdade, por outro a BYD tenta reverter a narrativa: não é uma ameaça, diz ela, mas uma aliada da reindustrialização, com cronograma e investimento definidos. A empresa afirma que, até agora, já gerou mais de mil empregos diretos em Camaçari e que está comprometida com a cadeia produtiva nacional.
A lógica da desova chinesa
O embate atual reflete ainda as pressões que vêm de fora — e que atingem em cheio as montadoras tradicionais. Toyota, GM, Stellantis e Volkswagen enfrentam um cenário difícil não só no Brasil – onde as vendas de elétricos ainda são modestas – mas também nos principais mercados.
Além disso, a nova onda de eletrificação exige pesados investimentos em tecnologia, cadeias logísticas e redes de recarga, o que eleva ainda mais o custo da transição. No Brasil, essas marcas também tentam construir respostas locais: a Toyota, por exemplo, aposta num híbrido flex mais barato como arma para competir com os chineses.
Enquanto isso, as montadoras chinesas avançam em alta velocidade. A BYD, que já ultrapassou Tesla em vendas globais de carros elétricos, opera com cadeia verticalizada, produz internamente suas próprias baterias e domina tecnologias críticas. A empresa se beneficia de subsídios estatais e de uma política industrial agressiva por parte do governo chinês — fatores que impulsionam sua expansão global.
A tensão se acentua num momento em que a economia chinesa vive sua própria crise de crescimento. Com o colapso da bolha imobiliária, o consumo interno desacelerou e a produção das gigantes industriais começou a sobrar. Parar as fábricas não é uma opção. A solução, mais uma vez, é exportar — e o Brasil virou um dos principais destinos dessa “desova chinesa”.
Dados da OMC apontam que a América do Sul será a região com maior crescimento nas importações chinesas em 2025, e o Brasil, com seu mercado robusto e portas ainda entreabertas, é o destino preferencial. Segundo a Anfavea, 85% dos veículos elétricos importados hoje vêm da China.
Na balança
Para as montadoras tradicionais, o Brasil precisa decidir entre proteger o que restou de sua indústria local ou correr o risco de ser “invadido” por produtos cujas cadeias produtivas geram os melhores empregos bem longe daqui.
Para a BYD e outras montadoras chinesas “desafiantes”, o Brasil tem a oportunidade de abrir-se para um novo ciclo de investimentos.
O presidente Lula, que assinou 37 acordos bilaterais com Xi Jinping na última visita do presidente chinês ao Brasil, tenta equilibrar os pratos: acenar para a reindustrialização, mas também não perder o bonde da nova economia global.